Trivial de Assis Valente, 100 anos do triste carnavalesco

Caymmi (esq.), Carmen e Assis

A sensacional regravação de “Tem francesa no morro” por Zeca Baleiro vem confirmar a atualidade da produção do compositor Assis Valente, cujo centenário de nascimento se comemora este mês.

Embora tenha nascido no Recôncavo  Baiano, suas composições revelam uma verve tipicamente carioca, cultivada desde que mudara para a Cidade Maravilhosa aos 16 anos. Para  Ricardo Cravo Albim, “Assis foi o primeiro baiano que se transformou em carioca de alma. Ou seja, um cronista – admirável, por sinal – das ruas, da alma e do cotidiano da cidade. Diferentemente de seu conterrâneo Caymmi, que sempre permaneceu baianíssimo em alma e obra e a quem Assis, aliás, estendeu a mão generosa quando ele aqui aportou em 1938.”

 

Carmen, a musa

Na seara carnavalesca, legou uma das crônicas definitivas do carnaval brasileiro, “Camisa listrada”, em que narra o périplo momesco de um sujeito  que “tirou o seu anel de doutor para não dar o falar” e, fantasiado de Antonieta, foi “dançar no Bola Preta” até o sol raiar”. Detalhe importante: quem narra a farra, em um tom entre o desolado e o divertido, é a mulher do tal sujeito.

A canção faria grande sucesso em 1937 na voz da intérprete favorita de Assis: Carmen Miranda. A parceria entre os dois se iniciara cinco anos antes, com “Goodbye, boy”, em que o compositor critica, com humor, a mania de se valer de expressões em inglês para parecer “chique” – tema que Noel Rosa e Lamartine Babo também explorariam e que, pelo jeito, continua atual.

Na voz de Carmen alcançaria o sucesso popular  em uma sequência de pequenas obras-primas, como  “Uva de caminhão”, com sua metralhadora giratória de frases de duplo sentido e de alusões sexuais, “Recenseamento”,  que sozinha vale uma tese sobre a cooptação da música popular pelo Estado Novo getulista, e a deliciosamente maliciosa e muitas vezes regravada (por Caetano Veloso, Adriana Calcanhotto e outros) E o mundo não se acabou…

 

Grandes intérpretes

Mas, para além do repertório da cantora que logo deixaria o Brasil rumo ao sucesso (e à morte) nos Estados unidos, outras composições de Assis foram gravadas por grandes intérpretes do período: o Orlando Silva da fase áurea gravaria os sambas “Não é proceder”, “Já é de madrugada” e, da parceria com Durval maia,  “Alegria” (“Minha gente era triste, amargurada/Inventou a batucada/Pra deixar de padecer/Salve o prazer, salve o prazer”).

É, ainda, da lavra de Assis uma das mais cultuadas músicas da jovem Aracy de Almeida  – que artistas do quilate de Paulinho da Viola e Vinicius de Moraes reputam como a melhor cantora de samba da história -, “Fez bobagem”, desolado relato de uma cabrocha que, em sua ausência,  foi traída em seu próprio barracão. Nara Leão e Olívia Byington estão entre as que regravaram a canção.

Dentre as diversas canções juninas que compôs, Assis deixou ao menos um clássico, “Cai, cai, balão”, cuja gravação original, nas vozes de Francisco Alves e Aurora Miranda, data de 1933. Além disso, ele é o autor de um clássico natalino inconteste, o tristíssimo “Boas festas”.

 

Trajetória acidentada

Esse artista profícuo – compôs mais de 150 músicas – capaz de se expressar através do humor mais rascante e da tristeza mais sentida, teve uma vida conturbada. Ainda criança, foi afastado à força da família e viveu em regime de semi-escravidão. Num esforço de superação, consegue tornar-se protético e como tal se muda pra o Rio de Janeiro, entrosando-se no ambiente musical da época.

Mas sua vida pessoal segue atormentada: seu casamento dura pouco mais de dois anos – com uma tentativa de suicídio no meio -, ele tem episódios de depressão, acumula dívidas, tenta se matar uma segunda vez. No centro desses problemas estaria o conflito entre sua homossexualidade (não assumida) e o moralismo do Brasil dos anos 30/40 – mas este tem sido um tema sobre o qual a maioria dos historiadores da MPB tem se omitido, embora haja relatos de contemporâneos de Assis e uma série de indicações a respeito.  Mas não são provas definitivas: aguarda-se uma biografia à altura do personagem e que esclareça melhor as relações entre sua vida pessoal e o quadro depressivo.

 

Questões em aberto

 Outro aspecto ao qual os historiadores têm prestado pouca atenção é na influência do legado de Assis, particularmente no que sua produção musical teria exercido sobre Chico Buarque: enquanto os nomes de Noel Rosa e de Wilson Baptista têm sido citados de forma recorrente como os modelares, despreza-se o quanto são caudatárias de Assis a verve cronista maliciosa que Buarque apresenta em canções como “Flor da idade” e “Meu caro amigo”, em que muito do humor vem do jogo de palavras;  a habilidade de se utilizar de outro idioma para construir ironias e duplos sentidos (como em “Pivete” ou em “Joana Francesa”) ou mesmo de construir a canção a partir de um ponto de vista feminino (que Wilson Baptista também experimentou, mas não tantas vezes e de forma tão diversificada quanto Assis).

Um terceiro ponto a ser melhor esclarecido pelas pesquisas sobre música popular diz respeito à relação entre Assis e Carmen Miranda. Há relatos de que ele teria ficado desolado com a ida dela para os EUA e está bem documentado que, numa de suas voltas ao Brasil, a recusa em gravar “Brasil Pandeiro” teria desencadeado um dos surtos depressivos de Assis, pulando do Corcovado (sua queda seria amparada pelo arvoredo). Em 1958, aos 47 anos, deprimido e afastado da música, prefere não se arriscar e toma formicida com guaraná, em sua terceira e bem-sucedida tentativa de suicídio.

Mas a história lhe faria justiça: “Brasil Pandeiro” seria um grande sucesso não uma, mas duas vezes: na gravação original dos Anjos do Inferno e, em 1972, na inovadora regravação pelos Novos Baianos, tornando-se um dos clássicos da música brasileira.

Por Alexandre Porto

Luis Nassif

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