Mulheres negras devem ser livres

Emicida não conteve alguns suspiros de alívio quando venceu o segmento “Trepadeira” do show “O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui” no Sesc Pinheiros, na noite de 11 de setembro de 2013. Ficou mais solto após a canção que, como no disco, contou com a participação ao vivo de Wilson das Neves, sambista histórico e baterista de Chico Buarque. Pronunciou o termo “tensão” para descrever o momento anterior.

Isso significa que o rapper fugiu da raia da celeuma provocada pelo divertido e animado samba-rock? Não, muito pelo contrário.

Além de não se dobrar à sanha por retaliação e proibição que cerca a canção desde seu lançamento, ele transformou em manifesto o momento de interpretar “Trepadeira” ao vivo.

Nada pode ser melhor que reproduzir, palavra por palavra, o momento em questão. Eis aqui, em sua própria prosódia, o que Emicida falou na segunda e última apresentação de lançamento do Glorioso em São Paulo.

“Teve um grupo de meninas que disse que eu sou machista (DJ Nyack comenta que, na manifestação da noite anterior na porta do teatro, havia um cartaz que anotava “Fora Alckmin, Fora Femicida”). Povo estava cheio de espada-de-São-Jorge.

“A genete vive um tempo muito complicado, sabia? Porque a gente adora falar que na ditadura tanta coisa foi proibida, só que no primeiro momento que a gente se desentende duma ideia, a primeira coisa que as pessoas propuseram foi proibir uma música, sacou?

“Cê não tem que proibir. Cê tem que educar a sociedade pra falar sobre esse assunto, sobre machismo.

“Não se combate com silêncio, irmão. Tem que falar mesmo.

“Primeiro, vou repetir o que eu disse ontem, e se alguém discordar pode sair fora: todas as mulher tem o direito de ser trepadeira, certo, mano?, ser feliz, ser feliz sexualmente, ser livre, sem ninguém monitorar a vida dela, certo? E, segundo, todo mundo tem direito de cantar o que quiser, certo, mano?

“É isso. Agora, se vocês me permite, eu vou ler o bilhetinho que eu fiz ontem (tira do bolso e abre uma folha de papel), porque organizaram até um movimento aí, sei lá.

“Esse negócio que Nyack falou aí, fiquei mal, champ. Ô, truta, cê dá risada, irmão? Cê é louco, minha orelha queimando, as minas encheu meu saco, meu.

“Sabe o que eu acho mais foda, meu? Quando nós pagou do bolso pra ficar morando ca mina lá, ca Rosana, lá no meio da Vila Mimosa, pra mostrar que as prostituta devia ser tratada como ser humano, ninguém foi fazer polêmica. Pensei nisso quando vi.

“Aí depois eu lembrei de quando a gente fez o clipe da Ocupação Mauá. Não sei, eu acho que o personagem principal é uma mulher preta que tá segurando um rojão da história inteira, e nesse momento também a gente fez um corre pagando do bolso, independente, mano, acreditando no sonho da história que deve ser contada, pra mostrar a força dessas mulher, e ninguém foi fazer polêmica, sacou?

“Então, obviamente, mano, concordo quando o tema levantado é que o machismo deve ser combatido, e deve mesmo, certo? Mas tem uma coisa muito séria: desconsiderar tudo que a gente construiu nos últimos dez anos, cê tá desrespeitando muita coisa, tá ligado?

“Sem maldade, não é metendo a marra, não, tio. Ninguém faz o que nós faz, não, tio. Nós põe a vida nessa porra aqui, tá ligado? E nós não é igual aos bundalelê da televisão, não. Certo? Fui mesmo, já aproveitando o ensejo. Nós vai mesmo. Nós vai na TV, nós vai na porra que for. Mas nós vai sendo nós, bate no peito, chega lá e fala que é o que é mesmo. Mesmo bagulho que nós fez no Santa Cruz nós faz no Jô Soares, certo?

“Isso é ser foda, e é isso que nós precisa, cada vez mais, morou? Televisão é ferramenta, irmão. Problema é o conteúdo. Se nós puder mudar o conteúdo é uma bênção, colocar inteligência na cabeça do nosso povo, certo? E é isso que nós tá fazendo. Voltando ao poema.

“Não dá risada! Não dá risada, cê tira a seriedade do tema desse jeito…

“Tá desculpada porque é o lançamento. Depois você edita essa risada na gravação, viu?

“Vocês pode me ajudar nesse poema, porque tem um mote que se repete. O poema é assim:

“Mulheres devem ser livres pra escolha feliz, a sós ou não – do jeito que eu cantei em ‘Ela Diz

“Mulheres devem ser livres aqui, onde for, e bem cuidadas – eu cantei isso em ‘Vou Buscar Minha Fulô…

“Mulheres devem ser… (LIVRES) …pra ser feia ou bela, ser tudo –  eu falei sobre isso em ‘Eu Gosto Dela

“Mulheres devem ser… (LIVRES!) …sem esculacho, livre mesmo, se quiser até pra ser macho

“Mulheres devem ser… (LIVRES!) …de rocha, imagina, mãe, forte – daquelas que eu cantei em ‘Rotina

“Mulheres devem ser livres, pra ser puta ou pra ser santa, das que atrai, das que trai, mas também das que canta

“Mulheres devem ser livres, é quente, e sempre livre, champa, é mais do que um absorvente

“Mulheres devem ser… (LIVRES!) …pra dizer quando custa, seja na presidência ou na rua Augusta

“Mulheres devem ser… (LIVRES!) …das que inspiram o cântico – tipo as mulher preta que eu lembrei em ‘Crisântemo

“Mulheres devem ser… (LIVRES) …pra ser mina, mana, ser respeitada, porque antes de tudo é humana

“Mulheres devem ser LIVRES, soltas no mundo, e jamais virar brinquedo de vagabundo

“Mulheres devem ser livres, pra ser alma gêmea, candura ou pra descer no salto igual dona Jura

“Mulheres devem ser LIVRES, pra es-co-lher – e escolher, jamais pra encolher

“Mulheres devem ser LIVRES pra ser fraca ou guerreira – ser o que quiser, inclusive… ‘Trepadeira‘”.

Os aplausos, que percorreram todo o discurso, sobem mais alto. Emicida chama Wilson das Neves, que entra no palco todo na estica. Na melhor tradição batuque-samba-soul-rock-rap, o “novo” e o “velho” cantam juntos “Trepadeira”. Mesmo num país que aboliu a escravidão há pouco mais que o período de vida de um ser humano, homens e mulheres negras devem ser LIVRES.

Redação

7 Comentários

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  1. Poeminha do Feminismo sem

    Poeminha do Feminismo sem Demagogia para EMICIDA…

    Ouvi teu poema com som de canção
    Mas esta melodia não alivia meu coração
    Não adianta dizer que disse outrora
    Se o que me maltrata é o que cantas agora.

    Eu, assim como todas as mulheres, como você diz
    Merecemos respeito, merecemos uma vida feliz
    Por que cantastes então censurando nossa liberdade
    Vestindo de macho recalcado seu personagem?

    Por que cantas que merecemos apanhar ? Me diz?
    Por que cantas que merecemos ser envenenadas?
    Por que cantas que a mulher livre merece ser depreciada?
    Por que cantas se não acredita nesta moral infeliz?

    Não me venha com poeminha cheio de demagogia,
    Discurso bonito? Qualquer um pode fazer sobre a laje fria.
    O homem que nos romanceia, é o mesmo que nos mata,
    Queremos respeito, não suas rimas dissimuladas.

    Disseste que tens o direito de cantar sobre o quiser…
    Cantas! Grite ao mundo todo teu direito de oprimir!
    Deslize em suas melodias a opressão contra a mulher,
    Só não tente com hipocrisia do que cantas se redimir.

    https://www.facebook.com/FeminismoSemDemagogia/posts/510144432413839

    1. Beleza de letra, e diz tudo

      Emicida é um cara importante. Mas vacilou. Isso nao quer dizer que deva ser crucificado. Mas tb nao deve ser desculpado só por ser Emicida, ou por ser negro. Foi machista sim, deveria reconhecer, e bola para a frente. 

  2. Pedro Alexandre Sanches, você

    Pedro Alexandre Sanches, você está se saindo muito mal com este discurso de camaradagem para com o Emicida. É isto o que dá jornalista escrever sobre seu ídolo e amigo. Que falta de isenção ! Uma pena! Você já foi melhor !

  3. Pedro Alexandre Sanches, você

    Pedro Alexandre Sanches, você está se saindo muito mal com este discurso de camaradagem para com o Emicida. É isto o que dá jornalista escrever sobre seu ídolo e amigo. Que falta de isenção ! Uma pena! Você já foi melhor !

    1. “Trepadeira”

      Olá, Nilva. Por favor, não confunda as coisas com compadrios, de que não sou nem nunca fui adepto.

      Tenho de fato grande afeição pelo Emicida, mas sob relações estritamente profissionais – como crítico musical, não como “amigo”. Qualquer postura minha quanto à “Trepadeira” dele é jornalística, cultural, musical e política – embora seja contra qualquer espécie de sexismo, não concordo com a caça às bruxas em torno de uma canção que, na minha opinião, celebra a liberdade sexual feminina.

      Apoio as críticas que o Emicida tem recebido, nos pontos onde ele tenha se excedido, mas não apoio o ódio, ao meu ver racista, com que esse caso está sendo abordado. Não acredito em luta de minoria pisando em outra minoria. Acho racismo e sexismo (e homofobia) igualmente execráveis, e não consigo entender como tanta gente simplesmente se recusa em debater racismo nesse caso (ou erm muitos outros). 

      Deixo meus textos a respeito no FAROFAFÁ e no Yahoo, a quem interessar possa:

      http://farofafa.cartacapital.com.br/2013/09/06/reforma-agraria-na-mpb/

      http://farofafa.cartacapital.com.br/2013/09/06/la-vai-a-rapper-toda-toda/

      http://br.noticias.yahoo.com/blogs/blog-ultrapop/mashup-emicida-versus-yoko-ono-180510262.html

       

       

  4. Oi, PAS !
    Obrigada pelo

    Oi, PAS !

    Obrigada pelo retorno.

    Acompanho sua carreira há muitos anos, sempre fui sua fã e por isto penso que neste caso você não está agindo com a isenção que o caracteriza(va).

    Sou mulher, negra, já vivi na periferia (Vila Matilde) onde parte da minha família ainda mora, hoje moro no Itaim/Vila Olímpia e por isto posso falar de racismo, pois o senti e sinto, daí a defender esta música sexista e engolir as duas respostas do Emicida que, em momento algum assumiu que errou e quer fazer proselitismo usando para isto uma pretensa perseguição pelo fato de ser negro, o que alías você corrobora, vai uma grande distância.

    Desculpe-me mas isto está me parecendo culpa burguesa.

    Abração.

    Nilva

    1. Eu não sei se o Emicida pensa

      Eu não sei se o Emicida pensa que está sendo vítima de racismo, Nilva. É minha essa impressão, eu acho realmente que ele de terno e gravata na favela incomoda muita gente.

      De todo modo, não excluo e respeito absolutamente o teu modo de ver e sentir – mas peço o mesmo a você, ainda que não concorde comigo. Fico feliz de saber que você me acompanha, e torço pra não entrar no índex de ninguém por causa desse episódio. Aliás, torço pro Emicida exatamente pelo mesmo – acho o que ele significa importante demais, em um monte de sentidos, pra gente desperdiçar o cara simonalizando ele. Pô, ele é inteligente e vai entender e assimilar as críticas, principalmente se não vierem carregadas de ódio.

      Beijo, moça, bom poder debater amistosamente esse tema tão espinhoso!

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