O homem triste que cantava alegre, por Jota A. Botelho

Ignácio Jacinto Villa Fernandez (1911-1971), foi um fenômeno artístico singular, que passaria para a história da música cubana e internacional como Bola de Nieve, levando Andrés Segovia a dizer que “quando ouvimos Bola, parece que estamos testemunhando o nascimento conjunto da palavra e a música que ele expressa”. Assim, nesta abertura, mostraremos este homem triste que cantava alegre acompanhado numa homenagem da nossa excelente cantora Fabiana Cozza a este grande pianista, cantor e compositor que fez enorme sucesso desde o México, passando pela América Latina e a Europa, chegando até a China de Mao Tse-Tung.

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A BIOGRAFIA DE BOLA DE NIEVE


Bola de Nieve e sua “inventora” Rita Montaner.

Ignácio Jacinto Villa Fernandez nasceu na vila ultramarina de Havana de Guanabacoa – de uma tradição musical da maior relevância, pois também foi lá o local de nascimento de Rita Montaner, Ernesto Lecuona e muitos outros não menos famosos – em 11 de setembro de 1911. A mãe, segundo as crônicas, era negra, mulher fértil e festiva, que deu à luz treze crianças. Tinha a graça da tradição oral, o espírito das dançarinas inveteradas na folia até o amanhecer nas festas do bairro, talentosa nos toques improvisados da rumba com bastões e latas, foi educada pelo pai, um capataz das docas, entre congos e carabalíes. É neste ambiente de danças ancestrais que foi crescendo o futuro Bola de Nieve.

Graças a uma tia, ele começou seus primeiros estudos em uma escola particular e, também encorajada por ela, aos 12 anos de idade, começou lições de música e teoria da música. Primeiro, eles pensaram na flauta, que era de fácil entrada em qualquer conjunto e resolvia as necessidades, mas foi o piano que decidiu o seu destino. Ele se matriculou então no Conservatório Mateu, em 1923. Sua aspiração era ser médico em Pedagogia e em Filosofia e Literatura, mas quando matriculou-se em 1927 na Academia Normal para Professores, a crise que causou o governo de Gerardo Machado o fez dedicar-se à música para viver.

Numa entrevista concedida poucos dias antes de sua morte, em 1971, Bola de Nieve disse: “Eu não sei se me iniciei na arte ou se me iniciaram, eu não poderia dizer: eu quero ser. Eu era um aspirante à universidade, quando estourou uma revolução em Cuba. Foi na época de Machado, anos 1930, e eu tocava piano, sabia música, tinha noções sobre o que era a música popular, e era o que sempre fiz, mas então era necessário comer e me dediquei ao piano em um cinema, acompanhando uma cantora…” E continuou: “…nunca tive plano de me iniciar para viver da arte. Eu tive foi a sorte de conhecer uma de nossas mais relevantes figuras do teatro naquela época. Se chamava Rita Montaner”.

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Para as irregularidades da história, que sempre misturam lendas, folclores e pesquisas de críticos e musicólogos, há uma contradição no surgimento do apelido de Bola de Nieve. Para muitos, foi criada por Rita Montaner em uma noite de performance no hotel Havana em Sevilha no ano 30 ou 31, quando a acompanhou ao piano em El Manisero e Siboney. Para outros, a ideia foi de um médico de bairro. O último diz que Ignácio ficou mortificado pelo apelido justamente no momento em que ele ainda não era famoso e esperava na entrada de um teatro no bairro para expressar sua arte por um peso quando faltava o pianista no show, ou quando acompanhava os filmes mudos no cine Carral. Os meninos do bairro, com zombaria gritaram “Bola de Fango” e “Bola de Trapo”. Mas claro, não há dúvida de que foi graças a Rita que este apelido incisivo tornou-se famoso. Dizem que ambos chegaram no México, o grande cantor os colocou no cartaz: “Rita Montaner e Bola de Nieve”.

De acordo Ignácio Villa, Rita Montaner achou divertido ao vê-lo raspado e tão negro, que e em público o chamou de Bola de Nieve. As pessoas presentes gostaram do apelido e foi o suficiente para perpetuá-lo. “Eu era o acompanhante de Rita porque não havia outro que o fizesse naquele momento, sem qualquer idéia de que seria solista, nem muito menos. Tudo isso sem que ninguém me conhecesse, sem saber se era bom, ruim, regular… se era um artista ou não. Eu era o pianista de Rita Montaner único e exclusivamente. E fomos para o México, e chegando lá continuei sendo seu pianista e o apelido de Bola de Nieve se popularizou”.

E continuou narrando Bola que Rita, em certo momento, adoeceu, por razões de clima, indisposição ou fadiga, e retornou a Cuba, enquanto que ele permaneceu no México acompanhando outros cantores em uma revista de teatro. Então uma noite eles o empurraram para o palco e disseram: “Por que você não faz para o público o que você faz para brincar e se divertir?” Aturdido, nervoso, sem saber o que para fazer, cantou Vito Manué, tú no sabe inglé, de Grenet e Nicolás Guillén. O resultado foi aplausos gerais de mais de quatro mil pessoas que lotavam o Politeama do México. E Bola de Nieve então afirmou que o México era sua segunda pátria, porque naquela noite nasceu pela segunda vez. Tinha 22 anos de idade. Corria o ano de 1933 e, embora fosse popular na terra asteca, ninguém o conhecia em Cuba.


Bola de Nieve com o poeta Nicalás Guillén e Fidel Castro, que contou com o apoio de
Bola de Nieve na Revolução Cubana.

Esse passo ele daria depois de se encontrar com Ernesto Lecuona (autor de Siboney, Andaluzia, Malagueña  e outros), que realmente gostava das performances de Bola e contou-lhe sobre trazê-lo para a ilha. “Eu vim para Cuba e fiz minha estreia, e foi minha sorte que eles não me jogaram pedras nem laranjas, nem nada, me aguentaram. E eu segui abusando das pessoas e até hoje estou trabalhando nisso”, contou humildemente o carismático artista em 1971.

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E em quantos lugares ele esteve? Desde sua estreia no México nos anos 30, ele passou sua simpática presença  e sua arte por Buenos Aires, onde, nas mãos de Lecuona (ele pertencia à companhia do grande músico), ele compartilhou em 1936 com Esther Borja; Santiago do Chile, Lima (local de nascimento de Chabuca Granda, de quem interpretou magistralmente Flor de Canela); Bogotá, Caracas (em Maracaibo, onde se abraça com Libertad Lamarque); Rio de Janeiro (onde ele ganha o sotaque brasileiro nos sambas de Ary Barroso ou nas canções marítimas de Dourival Caymi); Montreal, Estados Unidos, onde ele deixa sua marca e uma constelação de aplausos no Hall da Fama, o Carnegie Hall de Nova York (onde foi chamado nove vezes no palco e o New York Times o comparou com luminares como Nat King Cole e Maurice Chevalier), na Academia de Música da Filadélfia (ali, o tenor Paul Robenson o ouve na Café Society, e o retribui cantando no seu camarim). Na Europa, Bola é conhecido em Paris, Cannes, Nice, Florença, Copenhague, Milão, Roma, Moscou, Leningrado, Praga, Sofia, Bucareste. E também Ásia: Pequim, Pyongyang, etc.

Mas, apesar de toda a sua fama e sucessos em tantas latitudes, ele sempre voltou para Cuba e, como todos os grandes cubanos disseram: “Sinto-me eminentemente latino-americano, e como latino-americano eu não tenho nacionalidade no continente”. Sua felicidade máxima era, como ele próprio disse, ter entendido seu povo.

A asma e diabetes o perseguiram. Em janeiro de 1969, se detecta uma cardiopatia aterosclerose. Em 1970, sofre um infarto cardíaco. Mesmo assim, ele teve o humor para declarar: “os distúrbios que a diabete está me causando não me impedem de continuar atormentando o piano e meu público”.

Ao mesmo tempo, ele estava entusiasmado com uma homenagem preparada no Peru por Chabuca Granda e outros amigos e admiradores. Sua última entrevista na ilha, antes de viajar para os Andes, foi concedida para a Rádio Habana Cuba.

Ele partiu para o México, com escala em Lima, e morreu às 5 horas da manhã do dia 2 de outubro de 1971. Falecia, curiosamente, na mesma cidade onde nasceu para o mundo da arte como Bola de Nieve.

O homem que era em si uma espetacular e efetiva síntese de personalidade, voz e piano. Aquele a quem sua magia, que nascia de forma natural dentro de si mesmo, e que havia sido sempre inigualável, imprescindível. O homem que, em um momento de confissões, diria: “tudo é bom na vida é quando alguém crê ou se engana acreditando que está fazendo arte”, e, em outro momento, “eu não tenho fanáticos, devotos são os que tenho. Por que? Porque eu sou a canção; eu não canto canções nem as interpreto. Eu sou a própria canção”. E com muita razão concordamos com o Senhor Bola de Nieve.

O DOCUMENTÁRIO BOLA DE NIEVE


O Restaurante Monseigneur, o preferido de Bola de Nieve em Havana. Ao lado, o pôster
do filme de José Sánchez Montes “Bola de Nieve, o homem triste que cantava alegre”.

O documentário Bola de Nieve, de José Sánchez Montes, realizado em 2003, nos mostra um músico que enfrentou os preconceitos de sua cor negra e por ser homossexual, mas foi pró-revolucionário da Revolução Cubana de Fidel Castro e que se tornou um dos ícones da música latino-americana do século XX. O seu gênio impressionou a personagens como Edith Piaf, Andrés Segovia, Pablo Neruda e muitos outros. No entanto, era um ser atormentado que repetia “eu sou um homem triste que canta alegre”. Bola de Nieve e a época na qual viveu são os protagonistas deste filme acrescido de outro especial realizado em Cuba em sua homenagem.

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Referências: Cultura 3
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Jota Botelho

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