O Imbróglio sobre os primeiros discos de João Gilberto

Estes discos representam um dos maiores patrimonios da musica do Brasil.

Valor Econômico – 25/11/2011

 

A afinação do músico João Gilberto vai ser julgada pelos ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Cabe a eles decidir se um dos maiores nomes da música mundial tem o direito a impedir as gravadoras EMI Music e Gramophone Discos de comercializar em CD os três primeiros LPs e um compacto em vinil do inventor da bossa nova.

“Eu preferia que eles chegassem a um acordo”, admite ao Valor o ministro Sidnei Beneti. Relator do processo, ele revela que já pensou em chamar o músico e a gravadora para que chegassem a uma solução consensual, mas as chances de alcançar acordes harmoniosos parecem distantes, sobram apenas notas dissonantes. “Espero que as partes se entendam porque esse disco é uma joia na mão de todos em termos artísticos e comerciais”, diz.

Os discos foram gravados num período efervescente da cultura brasileira – entre 1958 e 1962 – e são considerados verdadeiros clássicos da música nacional. Mesmo com tantas credenciais, estão indisponíveis para o público. O primeiro, “Chega de Saudade”, foi lançado em 1959 pelo selo Odeon, mais tarde adquirido pela EMI. O elepê – que contém a mítica gravação de “Desafinado” – é considerado o marco zero da bossa nova e permaneceu em catálogo por 31 anos consecutivos. Em 2007, quase 50 anos depois de seu lançamento, foi classificado como o quarto melhor disco brasileiro de todos os tempos pela revista “Rolling Stone”.

Nos autos do processo, músico reclamou de ofensa e desvirtuamento de sua obra, no que teve apoio de Caetano Veloso e Paulo Jobim

João Gilberto promoveu “um corte brusco e estrutural na linha evolutiva da MPB da chamada era de ouro dos vozeirões como o de Francisco e Alves e Orlando Silva”, escreve o crítico de música Tárik de Souza, em texto publicado na página 8.

O segundo disco, “O Amor, o Sorriso e a Flor”, foi lançado um ano depois de “Chega de Saudade”. Trouxe outros tesouros: “Samba de uma Nota só”, “Corcovado”, “Meditação” e “O Pato”. O terceiro álbum é “João Gilberto”, de 1961, que traz as inesquecíveis “O Barquinho”, “Insensatez”, “Amor em Paz” e “Este Seu Olhar”. O compacto é “Orfeu da Conceição”. Todos foram reunidos num CD chamado “João Gilberto – O Mito” e lançado pela EMI no começo dos anos 1990, à revelia de João Gilberto.

Nas mãos dos ministros da 3ª Turma do STJ está uma tarefa tão difícil quanto a de decidir o destino dos discos inaugurais da bossa nova, se o público terá o direito de adquiri-los e a forma pela qual eles serão vendidos e o músico será remunerado. Os ministros vão discutir uma questão essencial para o direito autoral no Brasil, que pode ter repercussões para milhares de obras e de processos semelhantes em tramitação na Justiça. Trata-se da possibilidade de modificar a obra de um autor para relançá-la. De um lado, há o direito de a humanidade ter acesso a um trabalho artístico e, de outro, o de o autor preservar a fiel reprodução de sua obra.

No caso de João Gilberto, houve a remasterização dos discos. Nos autos do processo, o músico reclamou de ofensa e desvirtuamento de sua obra. Os problemas, segundo João Gilberto, são vários, como a reposição dos sons, a altura do violão e dos tambores da bateria. Além disso, duas músicas foram reduzidas de modo a incluir o conteúdo de três LPs e de um compacto num único CD.

Para dificultar a tarefa dos ministros do STJ, a obra remasterizada da EMI ganhou prêmios internacionais e teve boa aceitação da crítica especializada. Por outro lado, o processo conta com uma perícia longa em que há um depoimento de Caetano Veloso, afinado com João Gilberto. Ele conclui que a remasterização prejudicou a obra original. Paulo Jobim, filho de Tom, fez um laudo em que atestou ter havido alteração na altura da voz de João Gilberto, prejudicando a obra original. Segundo Paulo, que esteve presente em algumas sessões em que seu pai gravou as primeiras músicas da bossa nova com João Gilberto, a edição da EMI aumentou o som da bateria e das cordas em detrimento da voz e do violão.

De posse dessas informações, Sidnei Beneti conclui que as músicas de João foram alteradas, sem a autorização do autor: “Entendi que ofenderam a identidade da obra”. Com isso, João teria direito a ser indenizado em valor ainda pendente de definição. Por outro lado, o ministro reconhece que seria impossível retirar os CDs que já circularam no mercado. Essa decisão seria, segundo ele, inexequível.

Para o ministro, a questão desse processo envolvendo João Gilberto é absolutamente nova no Brasil. “É o alcance do direito moral do autor sobre a obra”, define. Ele comparou a uma pintura: “Seria como pegar um quadro e acrescentar algo à paisagem”.

Na busca de uma solução para o caso, o relator analisou precedentes de outros países referentes a mudança de obras artísticas para efeito de reedições ao longo do tempo. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte concluiu que é possível a colorização de filmes antigos.

Já em relação à música, o ministro verificou que, depois do surgimento do CD, nos anos 80, a Justiça passou a entender que havia a necessidade de nova autorização do autor para a reedição dos discos. De maneira geral, prevaleceu em vários países a noção de que, como o CD tem maior potencial comercial do que o antigo LP, é necessária nova anuência dos músicos. Basicamente, o que se verificou é que a venda de CDs se dá em quantidade muito maior do que a de vinis. Por isso, haveria o direito a uma nova forma de remuneração.

Beneti não encontrou essa nova anuência de João Gilberto nos autos do processo. De fato, o músico notificou a EMI, em 1963, da não intenção de renovar o contrato. Mesmo assim, a gravadora continuou a lançar a obra e a realizar pagamentos. Essa situação permaneceu até 1988, quando houve a rescisão do acordo de João com a EMI. No processo, consta a informação de que a gravadora pediu ao jornalista Nelson Motta que atuasse como intermediário na busca de uma solução, mas não obteve sucesso.

O caso foi julgado inicialmente na 28ª Vara Cível do Rio de Janeiro, que condenou a EMI a pagar 18% dos royalties recebidos com os CDs e a uma indenização pelo uso de “Coisa mais Linda” em uma propaganda comercial. Ambas as partes apelaram ao Tribunal de Justiça do Rio, que manteve a decisão da 1ª instância. Com isso, o caso subiu para o STJ, em Brasília, onde os ministros estão em busca da melhor solução. Eles já discutiram a possibilidade de permitir o lançamento com uma tarja preta indicando que não houve a autorização do autor, mas a melhor saída seria um acerto entre as partes.

O Valor procurou a EMI, que optou por não se pronunciar sobre nenhuma questão relacionada a João Gilberto. A assessoria do músico também foi procurada, sem sucesso.

Beneti apresentou o seu voto em 30 de agosto, quando o julgamento foi suspenso por pedido de vista do ministro Massami Ueda. Ainda faltam os votos dos ministros Ricardo Cueva, Paulo de Tarso Sanseverino e Fátima Nancy Andrighi. A 3ª Turma julga mais de 60 mil processos por ano relativos a questões de direito civil e comercial. Agora, seus ministros terão de decidir o futuro do disco inaugural da bossa nova, mais de 50 anos depois do lançamento. A partir desse julgamento será dado um marco para o direito autoral no Brasil.

Redação

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