A onda lambendo o rabo d’arraia. A estrela triscando a perna da morena de minissaia. A lua alumiando a praia… O disco parou de rodar. Pendurada lá no alto da parede parece luzir a chama da candeia, de quem tanto dela, nas letras que lá estão, eu ouvi falar. A música está em mim. A emoção busca passagem. A lágrima desce ligeira. Com a alma embarcada em pensamentos distantes, não oponho resistência a nada…
A voz de Dori Caymmi entranhou-se em mim. Os versos de Paulo César Pinheiro me fizeram refém. Sou, por breves compassos, escravo dos que me cativaram. Devo a eles a emoção. As músicas que gravaram em “Dori Caymmi – Poesia Musicada” (Acari Records) chegaram a tal ponto de mim que preciso de um tempo para voltar à sala onde estou…
Paulinho Pinheiro é hoje o grande decifrador do que vai pela alma dos compositores. Generoso, dá sua pena certeira a centenas de parceiros, conhecidos ou não do público. Fala por eles como se ele próprio os fosse. Traduz para eles o que com suas melodias, ritmos e harmonias já deixaram antever. Poeta que clareia com versos o que muitas vezes não têm clareza de sentir o que, de fato, sentem. Um trovador que assume tristezas alheias como se fossem dele; que avoca para si as alegrias de outrem e as transforma em versos que eternizam a fantasia da criação da beleza eterna.
Dori Caymmi é, ao lado de Tom Jobim e Edu Lobo, um dos nossos maiores melodistas. Suas harmonias têm o dom de privar da intimidade das músicas erudita e popular. Suas orquestrações são ricas em fraseados que seu violão antecipa com precisão. Sua voz grave vai buscar no fundo da garganta o jeito de bem cantar o mar e as canções praieiras, elas que são tanto dele quanto de Dorival. Todos Caymmi, graças a Deus!
Dori Caymmi – Poesia Musicada comemora os 42 anos da parceria do baiano com Paulinho. Numa sequência avassalante, as treze músicas do CD têm verdade e beleza entontecedoras. Os arranjos de Dori exalam uma simplicidade que os faz geniais: a conduzi-los, basicamente, estão o seu violão e o contrabaixo de Sisão Machado.
Mas, por exemplo, em “Estrela de Cinco Pontas”, dois cellos (Vana Bock e Julio Cerezo Ortiz) se juntam ao violão e ao baixo para tocar a bela canção. Outro é “Projeto de Vida”, quando o acordeom de Marcelo Caldi dá amplitude ao som do baixo e do violão. Os cavaquinhos de Luciana Rabello e Ana Rebello choram para acalentar “Música no Ar”, assim como as flautas em sol e de madeira de Teco Cardoso ornam os preceitos de “Estrela Verde”.
Porém, apenas o violão conduz “Velho do Mar (meu pai)”, cuja letra é um sopro de saudoso amor: (…) Na rede estendida/ Nas verdes palmeiras/ Cantigas praieiras/ Começa a cantar./ E fica pra sempre/ Na praia do sonho,/ No colo moreno/ De outra Iemanjá.
Finda a audição. Quem sou eu agora? Prisioneiro do espanto, não sei mais se é noite ou se já veio a aurora. Só me vem à luz dramas de outrora, e a saudade explode em meio à vasta dor que se fez senhora.
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