O RADINHO DE BRECHT – 1, por Antonio Ozório Leme de Barros

Pode-se divergir acerca de quem terá sido a mais importante personalidade do teatro do século XX; poderiam ser colocados nesse patamar atores como Laurence Olivier ou Louis Jouvet, diretores como Constantin Stanislavski ou Jerzy Grotowski, teóricos como Antonin Artaud ou Eugenio Barba, autores como Luigi Pirandello ou Nelson Rodrigues; dificilmente, porém, Bertolt Brecht (1898-1956) deixaria de ser lembrado para ocupar esse espaço.

Artista genial, personagem do seu tempo, criador extraordinário, Brecht desenvolveu a sua obra em diversos campos da criação estética e deixou marcas na poesia, na música, na dramaturgia, na direção teatral, na teoria da encenação; a sua formação cultural e política, plasmada na efervescência do período entreguerras e no caldeirão ideológico da República de Weimar, produziu o homem definitivamente comprometido com as lutas dos trabalhadores contra a exploração a que eram submetidos, contra a opressão, contra o totalitarismo; sua obra fala-nos da solidariedade, da dignidade da vida e da liberdade como valores supremos a presidir a relação entre os seres humanos.

A obra de Brecht é formada por mais de cinquenta peças teatrais, centenas de poemas, dezenas de canções e incontáveis textos sobre a teoria do teatro; suas primeiras produções foram influenciadas pelas técnicas empregadas por artistas populares do cabaré musical alemão, de grande prestígio nos anos vintes; seus escritos sobre o conceito de teatro épico  — que se integrava a uma técnica de interpretação conhecida como distanciamento, na qual o ator é, a um só tempo, personagem e comentarista da ação que se desenvolve na cena — influenciaram artistas de todo o mundo, principalmente aqueles preocupados em fazer do teatro um espaço para a discussão de ideias.

Perseguido pelo nazismo, Brecht teve de buscar refúgio em muitos países: Tchecoslováquia, Suíça, França, Dinamarca, Suécia, Finlândia e Estados Unidos; depois do fim da II Guerra, colocado na lista de suspeitos do Comitê de Atividades Anti-Americanas da Câmara de Deputados dos EUA, retornou à Europa, passando a residir definitivamente em Berlim, cidade em que ajudou a criar uma das mais prestigiosas companhias teatrais do mundo, o ainda ativo Berliner Ensemble.

Na música, Brecht criou letras para canções de dois dos maiores compositores alemães do século passado, Kurt Weill (com quem fez uma das suas obras mais conhecidas, a Ópera dos três vinténs) e Hanns Eisler. Durante uma fase de sua carreira, Eisler compôs diversas lieder (a lied é a canção, situada num território entre o erudito e o popular, muito empregada por compositores alemães dos séculos XIX e XX, geralmente interpretada por um cantor solista acompanhado por um piano) que receberam letras de Brecht.

A canção apresentada no vídeo abaixo, que tem por título An den kleinen Radioapparat, é uma lied composta por Eisler e Brecht entre 1942 e 1943; trata-se de uma delicada homenagem a um pequeno aparelho de rádio cuja posse era tão vital a refugiados como Brecht, já que o artefato servia para que pudessem ter notícias sobre o seu país e o desenrolar da guerra, mesmo que as informações viessem pelas vozes dos seus inimigos.

A letra original da canção é a seguinte:

An den kleinen Radioapparat

Du kleiner Kasten, den ich flüchtend trug

Dass seine Lampen mir auch nicht zerbrächen

Besorgt von’ Haus zum Schiff, vom Schiff zum Zug

Dass meine Feinde weiter zur mir sprächen

An meinem Lager und zu meiner Pein

Der letzten nachts, der ersten in der Früh

Von ihren Siegen und von meiner Müh:

Versprich mir, nicht auf einmal stumm zu sein!

 

Segue uma tradução dessa letra, que fiz há algum tempo:

A um pequeno rádio

Tu, pequena caixa que transportei na fuga

Para que as tuas lâmpadas não me delatassem,

Na esperança — de casa para o barco e do barco para o trem —

De que os meus inimigos continuassem a falar comigo

No meu acampamento e para o meu sofrimento

No fim da noite, no início da madrugada,

Das tuas vitórias e das minhas ações

Promete-me que não deixarás de falar!

 

Singeleza, sensibilidade e delicadeza são atributos notáveis dessa pequena obra-prima que Eisler e Brecht nos legaram; com o recurso da prosopopeia, Brecht fala-nos da angústia do refugiado preocupado com a preservação da informação, que se mostra essencial para a determinação das suas ações; elo com o restante do mundo, o pequeno aparelho de rádio revela-se amigo, companheiro de jornada e de lutas, quase humano mesmo.

Nesta gravação, a lied é cantada por Dietrich Fischer-Dieskau, barítono alemão de belíssimo timbre, que nos deixou em maio de 2012; acompanhado ao piano pelo berlinense Aribert Reimann, Fischer-Dieskau nos oferece uma comovedora interpretação dessa pequena joia musical de Eisler e Brecht.

http://www.youtube.com/watch?v=ld3nk3Ha8FM

Redação

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