O samba e o seu poder de regeneração, por Yasmin Thayná

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Por Yasmin Thayná
 
Do Nexo Jornal
 
É claro que final de ano, parece que algo bate na gente: há uma tendência pela positividade, uma crença coletiva de que o ano que vem vai ser melhor, que as coisas vão melhorar

Toda quinta-feira no Bar Araponga, centro do Rio de Janeiro, pertinho da Praça Tiradentes, rola uma explosão: é a roda de samba “Independente dos bons costumes”. Quem é frequentador há mais tempo sabe que quinta é dia sagrado, tanto que, quando encontra algum frequentador assíduo na rua, pergunta: “e aí, vai pro culto hoje?” Eu, que fui pela primeira vez nessa roda na última e excepcional edição do ano, que aconteceu na sexta-feira (23), senti que algo aconteceu no meu coração e que, de fato, esse é um acontecimento respeitável.

Enquanto o tempo ia passando, a caipirinha de limão ia subindo, os sorrisos de desconhecidos me tocavam, o suor molhava meu rosto, senti o corpo entregue àquele ritmo que realmente leva a gente para outro lugar, sua cabeça vai parar em outra esfera, você entra em outro modo de espírito e mente. Lembrei da primeira roda de samba a que fui fora do ambiente familiar, na Pedra do Sal, a tradicional e, talvez, a mais conhecida do centro. Fiquei paradinha de longe observando toda a movimentação. Quando um conhecido me puxou pelo braço e disse: “olha aqui, sente esse batuque com o seu coração”. Não sei o porquê, mas não consegui sentir do jeito que todas aquelas pessoas sentiam. Não era culpa da roda, era uma questão de se permitir ser levada pelo ritmo. E é assim que o samba da vida acontece dentro da gente: quando a gente está aberta para receber o que está por vir.

É interessante pensar que essa é uma invenção afrobrasileira, que para existir, isto é, para contagiar centenas de corpos num grande transe e catarse coletiva (principalmente quando toca aquela: “Temporal”) não precisa de muita coisa: uma mesa com proteção e fé, cerveja, água, batuques, caixa para amplificar o som e um repertório afiado, tão afiado que é capaz de atender a pedidos e, no finalzinho, quando o público pede “mais um”, eles fazem mais cinco! Essa é a estrutura que notei da roda de samba “Independente dos bons costumes”, mas se sabe que tem samba que acontece num bar com uma caixa de fósforo ou um palito num casco de cerveja. O que faz o samba acontecer mesmo é a energia positiva, a energia de estar entregue a um ritmo que te balança de um lado para o outro, que você chora ao lembrar daquela história quando começa a tocar “como é que uma coisa assim machuca tanto e toma conta de todo o meu ser?”. Ou aquela que você vibra e sente forte: “quando eu não puder pisar mais na avenida. Quando as minhas pernas não puderem aguentar. Levar meu corpo, junto com o meu samba, o meu anel de bamba, entrego a quem mereça usar”.

Tenho notado por aí, conversando com amigos e lendo textos, observando os outros, ouvindo, que é tempo de regeneração. É claro que final de ano parece que algo bate na gente: há uma tendência pela positividade, uma crença coletiva de que o ano que vem vai ser melhor, que as coisas vão melhorar. Listas e listas de pedidos e mudanças são feitas, amores acabam, ciclos se fecham. É isso: essa eterna sensação de que o 1º de janeiro começa e o 31 de dezembro encerra. Há quem continue, quem aposte num projeto a longo prazo, e há também quem fecha e inicia grandes e pequenos ciclos o ano inteiro, tem de tudo. Mas o final de ano é o clássico ritual de passagem que concentra muita energia. E desconfio que essa energia pode também interferir no modo como as coisas vão acontecer.

Após este ano apocalíptico, vulgo 2016, é preciso aprender. E repensar: onde é que o samba quase morreu? E por quê? Pensar no que a gente quiser, sem muita cagação de regra, sem metodologia: o pensamento tem que ser livre, como um corpo numa roda de samba. Só vai, só pensa. Fechar este ciclo de 2016, depois de todas as experiências coletivas e individuais, me fez aprender a importância de pensar no ano que passou e no que se quer para o próximo. Fica claro, ou melhor, escuro, que a dimensão do autocuidado é valiosa. Cuidar da nossa cabeça é fortalecer o nosso guia. E que viver tempos dilatados pode ser uma boa escolha, sem pressa, como um baobá, que brota rápido na terra e leva um tempo precioso para ter galhos fortes e tronco firme.

E sobre tempo, impossível não lembrar de Tarkovski, no livro “esculpir o tempo”, no capítulo “o tempo impresso”, em que ele diz, bem no comecinho: “o tempo e a memória incorporam-se numa só entidade; são como os dois lados de uma medalha. É por demais óbvio que, sem o tempo, a memória também não pode existir. A memória, porém, é algo tão complexo que nenhuma relação de todos os seus atributos seria capaz de definir a totalidade das impressões por meio das quais ela nos afeta. A memória é um conceito espiritual!”

Vamos nos regenerar, acreditar em um bom ano, não perder a dimensão da luta, da continuidade, evocar boas energias, boas entradas! “Um amor calmo”, porque como diz no samba: “é disso que a gente precisa!”

Ainda que este ano encerre com preocupação política de todos os retrocessos e reformas injustas que vivemos em 2016, quero entrar no próximo na energia do samba, cantando no time dos que acreditam que, sim: “samba, agoniza mas não morre, alguém sempre te socorre antes do suspiro derradeiro”.

Yasmin Thayná  é cineasta, diretora e fundadora da Afroflix, curadora da Flupp (Festa Literária das Periferias) e pesquisadora de audiovisual no ITS-Rio (Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro). Dirigiu, nos últimos meses, “Kbela, o filme”, uma experiência sobre ser mulher e tornar-se negra, “Batalhas”, sobre a primeira vez que teve um espetáculo de funk no Teatro Municipal do Rio de Janeiro e a série Afrotranscendence. Para segui-la no Twitter:@yasmin_thayna

 

Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

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