O Samba Precário: escola de samba, escola de sociabilidade, por Clara Maurício

Enviado por Francy Lisboa

O Samba Precário: escola de samba, escola de sociabilidade

por Clara Maurício

Nas antigas instalações Cinodromo (local onde em outros tempos se faziam corridas de cachorro), tão insólito quanto galgos esguios correndo contra sua vontade e dignos senhores de gravata gritando por um pouco de sorte, hoje algo diferente irrompe o silêncio das margens urbanas do Rio Tevere – em seu trato menos elegante. É o batuque da bateria Samba Precário (link).

Em 2012, o Cinodromo foi ocupado e transformado no Acrobax Project, laboratório do precariado metropolitano (link). E é ali que, desde 2015, a bateria se reúne para o ensaio.

Às segundas-feiras, quem passa por lá, mesmo de longe, sente a presença da música, impossível de ignorar. Uma surpresa, um convite? É o feitiço do tambor, instrumento que bate no ritmo do coração, expressão primordial de nossas raízes ancestrais, comum a todas as culturas. E quem decide chegar, será bem-vindo.

O Samba Precário busca concretizar algo muito especial. Aprender e ensinar o samba brasileiro, experimentar novas formas de organização coletiva e sociabilidade e contribuir, diretamente, com o espaço que o acolhe, respeitando suas características e implementando sua filosofia – antirracista, antifascista e antissexista.

Um laboratório aberto e gratuito

Conforme o idealizador do projeto, o argentino Diego Rossini, o Precário é “uma resposta ao individualismo que prevalece em todas as esferas da vida cotidiana. Objetivamente, é uma oportunidade para qualquer pessoa que deseje participar de um grupo e tocar percussão o faça, sem que o custo seja um impedimento”.

Inspirado pela ideia do poeta Alejandro Jodorowsky (“ofereça o seu tempo fazendo algo que você sabe e gosta de fazer, grátis”) e Gandhi (“seja a mudança que você quer ver no mundo”), partiu nessa empreitada e encontrou, pelo caminho, apoio para concretizá-la. Sorridente e discreto, afeito às cumbias e aos asados, osteopata de profissão, Diego é original de Bahia Blanca, cidade portuária da província de Buenos Aires. Em Roma há quase 20 anos, jamais foi ao Brasil. Apesar disso, hoje conhece bem o samba e sua estrutura, e conta como os tambores marcaram a sua história: 

Nos anos 90, em Buenos Aires, vi um show de percussão brasileira e quis tocar aqueles tambores. Foi como uma paixão de verão, que dura muito pouco, mas é inesquecível. Passaram-se muitos anos até que eu pude fazer um curso de percussão, pela primeira vez (em 2005)”. Ao longo dos últimos 13 anos dedicou-se a aprender o samba, participou de diversos grupos, fundou o grupo Kirimba – também ativo na cena romana – e, em seguida, o Samba Precário.

Embora tenha a responsabilidade pela direção artística, ressalta que a figura do Mestre que centraliza as decisões  inexiste. Tudo é discutido e decidido em grupo: das cores da bateria (Amarelo, Verde e Roxo) aos eventos aos quais aderir.

A ideia na prática

O primeiro ensaio aconteceu em 21 de setembro de 2015; a primeira exibição pública, em 22 de novembro. Desde a criação, mais de 60 pessoas participaram do laboratório. A formação atual conta com cerca de 20 sambistas – homens e mulheres, entre 16 e 60 anos. A maioria é italiana, de diferentes estratos sociais.

Fruto de contribuições voluntárias, o patrimônio coletivo e auto-gerenciado supera 3.500 euros. Estão à disposição da comunidade 6 surdos, 8 caixas, 9 chocalhos, 5 repiques, 12 tamborins, baquetas e cintas. Uma técnica simplificada de notação musical é usada para apoiar a aprendizagem.

O repertório é composto das clássicas bossas, paradinhas e convenções das escolas de samba do Rio de Janeiro, mas também samba reggae, funk, maculelê, além de paradinhas próprias e ritmos originais, como o Saidi – derivado da levada do darbuka.

A fim de aprimorar a qualidade e técnica do grupo e prestar um serviço à comunidade sambista de Roma, 05 workshops abertos – com mestres brasileiros e italianos – foram financiados pelo laboratório.

Já realizou cerca de 40 apresentações, em vários bairros de Roma e cidades do entorno. Se apresenta em passeatas, festas de bairro e eventos de cunho social e político não-partidário. Contribui em particular com o movimento “Ni una menos”, participando das manifestações de enfrentamento a violência contra as mulheres e a discriminação.

Dentro do grupo não há distinção entre mulheres e homens percussionistas. As mulheres do Precário, de fato, assumem papéis menos tradicionais dentro de uma bateria e de maior protagonismo – como a direção, o repique e os surdos.

Colhendo frutos

Na divisão do trabalho, a ideia que a união faz a força encontrou nesse grupo terreno fértil. Tem quem sabe fazer flyer ou cozinhar para um batalhão, quem faz arte, promoção e divulgação, quem tem carro grande e transporta os instrumentos… Tem também, como em todo grupo, quem gosta muito é de reclamar… Mas no fim todo mundo dá, à sua maneira, uma contribuição.

Uma vez por mês, o grupo realiza um laboratório para cerca de 15 jovens de uma comunidade psiquiátrica da periferia de Roma. “I raggazzi dela communità” têm a oportunidade de tocar samba, mas também de conviver dentro da realidade do grupo, sem distinções.

Esse ano o grupo organizou pela segunda vez o “Carnevalone Precario”, evento que reúne os grupos de percussão de Roma, em um esforço de integração e união.

Talvez o adjetivo “precário” não defina bem este grupo: melhor força da cultura e da ação popular, pletora de alegria, horizonte de um mundo melhor! Chora cavaco!

 

 

 

 

Redação

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