Os reis sem coroa do Pagode de Viola

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Enviado por Adir Tavares

Do Obvious Mag

OS REIS SEM COROA DO PAGODE DE VIOLA
 
POR PROFETA DO ARAUTO
 
“Amor que não tem raiz, dura pouco, quase nada. Nasce na boca da noite, pra morrer de madrugada”. Tião Carreiro
Suas letras apresentam as entrelinhas dos sábios sertanejos moldados pela quentura da terra; e para entender seus sentimentos, prosa e viola; de sentimentos, prosa e viola, a sensibilidade auditiva dos perfumados pelos tufos de fumaça das megalópoles, na quentura da terra, tem que se moldar!

Essa seleção é uma pequena, ínfima abordagem da extensa carreira musical da dupla. Fora as letras que ilustram e desencadeiam as rimas pobres nas muitas estrofes, os repiques das violas denotam a estilização da composição; porém, as músicas “Na barba do leão e Pagode do Ala” é algo arrebatador, principalmente no tocante à velocidade no dedilhar e os repiques que entrecortam os acordes e notas. Para eles, na gramática da música sertaneja não havia plural, apenas singularidades dos gênios da viola!

É prazeroso ler, papear, degustar, perder tempo escrevendo sobre aquilo que nos compraz. Arrisco a dizer que o leitor também curta tal clímax, tal ejaculação platônica, que é retirar de si gotículas de gozo, ao fazer o que gosta. Por que inicio o texto enaltecendo a oportunidade de sairmos do comum, da mesmice, do habitual, do ganhar rios de dinheiro fazendo tudo igual? Resposta simplista e direta: para que possamos reviver, soprar a centelha, dar vida aos que calçaram as alpercatas, tomar como exemplo os que multiplicaram os pães, pregaram a paz e cobriram as cabeças com os chapéis da humildade. São poucos, quase únicos, claro, mas eles habitaram a Terra e deixaram seus legados. Passemos à mais uma lição.

Embora a viola não seja originária do Brasil, Tião Carreiro e Pardinho musicava as brasilidades de um Brasil caboclo, para quem tivesse no sangue e na alma a redundância de ser brasileiro. Cultivadores do centeio patrimonial, não perdiam tempo em fazer música para inglês e falsos brasileiros ouvir.

Por longos e invernosas décadas o sertanejo (destruindo a cultura de uma época, de um povo que foi os esteios na construção e progresso do país, dizem que é de raiz, para diferenciar do barulho bate-palmas enaltecedor do adultério feito pelos urbanóides do concreto que respiram petróleo) foi considerado música para incultos, caipiras, desqualificados e broncos. Ora, quanto desconhecimento e desconsideração com os talentos que primavam pelas suas raízes, valorizavam suas origens e davam voz aos esquecidos dos grotões. Competentes e conhecedores dos problemas sociais e dos elementos da Natureza, com suas belezas e dádivas, na maioria das vezes eram os próprios músicos que assinavam pelas composições.

A viola e o pagode também entendiam de questões sociais e maus governos: […] “o salário sobe de escada e os preços de elevador”. […]“a coisa tá feia, a coisa tá preta e quem não for filho de Deus, está na unha do capeta”. Como cantavam compunham, arranjavam e interpretavam, indiscutivelmente, eles foram artistas completos da música caipira/sertaneja.

Não, eles nunca usaram coroa, (pela simplicidade de usarem botinas nos pés, chapéis ajustados às cabeças, camisas amarrotadas até os punhos, cintos com o cavalo alazão afivelando a cintura, pela liberdade de criticar as efemeridades cotidianas e o apreço pelas raízes do sertão, jamais se interessaram por tal quinquilharia) mas Tião Carreiro e Pardinho formaram a melhor, a mais respeitada dupla sertaneja de todos os tempos. O estilo genuíno, inovador, puro, autêntico e honesto, ora cadenciado, ora agalopado de dedilhar as violas, fizeram deles os reis do pagode; e outra dupla como os dois, só quando eles voltarem ao país do esquecimento e adulteração… aqui corrompem tudo, até o trabalho e a cultura de quem levou décadas e mais décadas para criar, primordialmente singular, as peculiaridades de um estilo musical.

Os experimentalismos, as vivências, os dias de sol, as noites enluaradas, a chuva repentina, a alma lavada, o cheiro de relva molhada, o sabiá que trina o amor desejado, a cigarra que tapa os ouvidos pra não ouvir o seu cantar e o sofrimento tão sentido por aqueles que construíram o mundo, tornavam-os sensíveis, politizados, poetas e filósofos, a ponto de um simples fato cotidiano, ser motivo e estímulo para criação de letras e melodias fora-de-série. Isso ocorreu com várias duplas sertanejas, porém a revolução no sertanejo tradicional, se deu com Tião Carreiro e Pardinho.

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José Dias Nunes, o lendário violeiro Tião Carreiro nasceu em Montes Claros, Minas Gerais, estado embrionário da revolução, em 1934. Aprendeu desde cedo que toda revolução começa com trabalho, suor, pés estrada e ainda criança, malhava a enxada contra o solo seco para dela, retirar a sobrevivência. Para o pássaro que não possui minhoca alguma, uma perna de grilo faz a diferença e tapa uma greta na pança vazia.

Muda com os pais para o interior de São Paulo. Mudança apenas de ares e aspectos citadinos, porque no dia a dia, tudo igual: fazenda; canto de galo; engenho; estribo; montarias; manada de bois; terra; enxada e o vociferado: “toca o berrante seu moço, que é eu ficar ouvindo”. Qualquer ruído do sertão soava-lhe desabafo de sertanejo. Nasceu e morreu sob os desígnios de Deus, da viola e das coisas da terra. Era naturalista de mente e canções.

Amante incondicional das cordas, aos 8 já dedilhava um violão; instrumento que lhe desfazia o nó, tanto do saco de linhagem que servia de mala, quanto da garganta, extirpava-lhe a agrura e crueza da vida. Sem saber o caminho da escola, aos 13 anos, se largou nos corredores das incertezas, indo parar no circo. No início, seu amigo era o violão, até quando o proprietário do circo abriu-lhe a cabeça, cobrando-lhe que caipira que se preza, tinha que tocar viola.

Sempre à frente e exercendo liderança, Tião formou dupla com muitos, inúmeros violeiros. Porém, sua alma gêmea foi Pardinho e uma vez afinadas as violas, as lonas dos circos inflavam sob os acordes do pagode de viola criado por eles.

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Antonio Henrique de Lima, o Pardinho, era paulista de São Carlos – São Paulo. Sua história é semelhante a do Tião e precocemente, já saiu à caça de dias melhores. Frequentar escola? Tocar viola: sabia como poucos; e quem sabe tocar viola, não frequenta escola! Inquieto de atitudes, foi outro fugitivo das doidices dos professores e sem um pingo de medo das armadilhas da vida, com mais ou menos 13 anos se enrolou na lona do circo que fazia espetáculos em sua cidade e partiu para o que desse e viesse. Contando com um pouco mais de sorte do que Tião, o circo permitia que ele fizesse algumas apresentações ao final das jornadas.

Em meados do século passado, Pardinho formou dupla com Zé Carreiro para a disputa de um concurso de viola promovido pela extinta rádio Tupi. Inconfundíveis, a dupla venceu o festival e como galardão, foram convidados para gravar um LP pelo selo Colúmbia. Foi nesse evento que Antônio Henrique adotou o nome artístico de Pardinho; e consequentemente, ganhou notoriedade no meio dos violeiros.

Formando dupla com vários violeiros, vagou por muitos cantos e tendas e ao se ver sozinho, recorreu a Teddy Vieira, que era influente no meio musical. O produtor e compositor apresentou-o a Zé Mineiro, codinome artístico de José Dias Nunes. E como toda renovação exige uma nova roupagem, José mudou seu pseudônimo para Tião Carreiro. Estava decretado o casamento da dupla mais autêntica dentre todas as duplas; e a música sertaneja nunca mais foi a mesma.

Em 1959, a dupla se apresentava no interior do Paraná. Casa cheia composta por produtores, violeiros, críticos, empresários. Alarido ensurdecedor. Apresentação bem ao estilo Tião Carreiro e Pardinho. Microfones na altura das bocas, letras enaltecendo o regionalismo, dando vida e voz ao homem do campo, fazendo críticas mordazes à política do governo. As violas se desdobravam para acompanhar a agilidade dos dedos e mãos. Por certo, ninguém mais tinham dúvidas da genialidade e afinada parceria entre os dois.

A plateia assistia de queixo caído, ouvia assombrada o espetáculo, o qual Tião Carreiro estreava uma variação constante no ponteado da viola, enquanto Pardinho fazia o contra-tempo no violão. Show sem precedentes. Arrebatador. O mentor do casamento da dupla estava presente e não contendo a emoção esfuziante, o êxtase da ejaculação precoce, disse que aquilo era uma mistura da cadencia da catira com a expressão acelerada do recortado mineiro; e a fusão de ambos, só poderia resultar em um “Pagodão” de viola, como chamou o concerto.

Aludido a Quincas Borba, personagem de Machado de Assis, que criou o Humanitas para ironizar o existencialismo humano, ao dizer: “Ao vencedor as batatas”, prevendo o futuro da música sertaneja, a dupla escarnecia os modernistas, dizendo que eles (a dupla) morreriam um dia, mas deixariam a fama do pagode de viola e este daria trabalho e importunaria muita gente. Batuta: a maioria dos novos (hilários, brincando com as palavras, cantam: “você diz que é cantador, teve professor, mas é um fracasso”) tenta copiá-los, mas ninguém consegui! Os caipiras, mas nem tanto, sabiam tudo e mais um pouco dos sofrimentos da viola nas mãos de maus tocadores (Daniel é um deles) do instrumento.

“… o fim do artista, é o começo da vaia”. Não canso de dizer: gênios desvalorizados que nasceram no país certo, para tocar, desfraldar o pagode de viola para o povo errado! Também puderas: somos filhotes, restos de portugueses tentando se encontrar na América, sobretudo, totalmente perdidos: nem cultos de primeiro mundo e nem cão desnutrido e sarnento que caiu da mudança. Sabendo desse pequeno-grande detalhe antropológico, as letras dos pagodeiros ironizavam inexoravelmente a ruína cultural, artística, de origens, costumes, hábitos e superficialismos do brasileiro.

P.S.: para homenageá-los, se quiser fazê-los felizes no paraíso, basta um cantinho, um casebre humilde, com pessoas especiais, sorrindo a honestidade de canto a canto na boca; sobretudo, deveras, a simplicidade de palavras e leveza de coração e atos é melhor que mansões abastadas, com tristezas ajardinadas e depressão avarandadas. Esse é o legado, o ensinamento propagado pelos violeiros, pelos pagodeiros de viola, pelos compositores e praticantes que estiveram nos circos e terreiros, onde o chapéu de palha, o carro de boi e o milho moído pela pedra mó estavam. E ao cair a tarde, momento em que a aragem desce sobre o condado para prosear com as flores e o vagar da lua virgem à noite negra enamora, tome a competência do pagodão de viola, pelos ouvidos afora…!

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Redação

4 Comentários

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  1. gostei bastante do texto

    Eu assisto e sempre gostei de moda de viola, me sinto orfão da Inezita Barroso e foi atraves do Viola minha viola que conheci os verdadeiros sucessores desta dupla fenomenal. Os irmaos mineiros Zé Mulato e Cassiano sao legitimos continuadores da obra do Tiao Carreiro/Pardinho,  embora apostem em repertorio proprio de excelente qualidade melodica e com letras muito espirituosas e com cheiro de roça. Vejam que beleza este pagode composto pelo genial Zé Mulato, que nada fica a dever ao mestre Tiao.

    https://www.youtube.com/watch?v=TU2F2FGa2ME&list=PL1cUrlkxF13btMMKqx80UcqwUN_YybuyW

  2. Realmente, Tião Carreiro, o

    Realmente, Tião Carreiro, o criador do pagode sertanejo, foi um músico genial. O maior violeiro do Brasil jamais será superado.

  3. Raízes Sertanejas
    Comecei a ouvir moda de viola graças à Bruna Viola e à dupla Mayck e Lyan (os três resgatam músicas de Tião Carreiro e Pardinho). E realmente, existem letras belíssimas, que nos reconectam com a natureza e com tudo que há de mais sagrado na vida: família, humildade, fé, esperança, amor… Enfim, um brinde às nossas belas raízes musicais❣ Que elas perdurem!

  4. Raízes Sertanejas
    Comecei a ouvir moda de viola graças à Bruna Viola e à dupla Mayck e Lyan (os três resgatam músicas de Tião Carreiro e Pardinho). E realmente, existem letras belíssimas, que nos reconectam com a natureza e com tudo que há de mais sagrado na vida: família, humildade, fé, esperança, amor… Enfim, um brinde às nossas belas raízes musicais❣ Que elas perdurem!

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