Pássaros eletroacústicos, músicas esvoaçantes

Aconteceu neste domingo, 29 de julho, no Parque Água Branca, em São Paulo, mais um concerto do pessoal de música experimental do Nova Música Eletroacústica (NME). Foram dois concertos, um de improvisação, feito ao ar livre – com direito a crítica no jornal O Estado de São Paulo [j.mp/OFZDqG] –, outro com sete peças, na sala do Tattersal. Assisti apenas ao segundo. Antes de comentar o concerto (atenção! é comentário e não crítica, como a do João Marcos Coelho), falo um pouco do NME e da minha relação com ele.

O NME é capitaneado pelo músico Tiago de Mello e foi formado em agosto de 2011. Segundo a página do projeto [www.nmelindo.com], até antes do concerto de domingo, haviam sido “realizados 18 concertos entre as cidades de São Paulo e Campinas, e um concerto especial em Rio Claro. Nesses concertos, foram apresentadas 51 obras, de 34 artistas diferentes, entre músicos, videoastas, artistas plásticos e bailarinos. Músicas acusmáticas de diferentes formatos, bem como acompanhadas de vídeo, e até vídeo sem acompanhamento de música: a variabilidade técnica proposto pelo NME é também parte de uma variabilidade estética, onde não se procura privilegiar ‘escolas’, abrindo espaço para que compositores jovens ou experientes possam trocar”.

Conheci o projeto no final de 2011, quando fui a uma apresentação na Unicamp, para prestigiar uma amiga, Julia Telles. Até então, além de alguma coisa de Stockhausen, sabia de música eletroacústica apenas de ouvir falar – pela própria Julia. Para quem gosta de Sonic Youth, Mogwai, Sigur Rós e pós-rock em geral, além da chamada “música contemporânea”, não tive nenhum choque que alguém eventualmente limitado ao repertório da Orquestra Sinfônica de Campinas teria, não me perguntei: “isso é música?” Desde então, sempre que posso, vou aos concertos, não mais simplesmente para prestigiar amigos, mas pela música, mesmo.

O concerto de domingo era temático: “NME pássaro – pássaros eletroacústicos, músicas esvoaçantes”. Faço meu comentário pensando não em cada obra em particular, mas cada uma das sete em relação ao conjunto – depois, conversando com um dos compositores, Felipe Merker, ele havia comentado que, provavelmente por ser temático, sentira qualquer semelhanças entre peças, talvez um a mais nos agudos. Além disso, me senti avalizado para meu comentário de leigo, quando Felipe também comentou que julga interessante e importante o retorno de quem não é da área – não que os comentários técnicos não sejam importantes, mas vê valor de diálogo nas interpretações mais “poéticas”, mais livres das obras. Algo semelhante já me havia dito o ator e diretor Alexandre Caetano, alguns anos atrás.

Uma das coisas que mais chamou a atenção foi que (para mim!), apesar do tema – pássaros –, nenhuma obra caiu no bucolismo, numa apologia da natureza virginal e bela apenas enquanto intacta – um discurso fácil (de produzir e de ser aceito) nestes tempos de ânimos verdejantemente acirrados. O que senti nas obras foi desde uma tentativa de convivência entre cidade e pássaros até o afugentar destes por aquela, chegando a pássaros artificiais em um céu poluído de ondas de eletrostáticas – esse céu poluído para mim bem marcado em “E por isso hoje tenho consciência do céu, pois há dias em que não o olho mas sinto”, de Adriano Monteiro. Em nenhuma obra, de qualquer forma, vi (ouvi, na verdade) tentativa de propôr uma convivência harmônica: antes, a proposta de uma convivência em tensão – a relação entre homem e natureza como iminentemente política, por mais que pássaros sejam animais desprovidos de capacidade política. Nessa tensão, tecnologia, cidade, natureza, obras de arte “clássicas” se misturam, ora com um aspecto se sobrepondo, ora outro, ora conseguindo alguma sincronia, ora em completo diacronismo: não é por isso que deixam de conviver, que precisam da aniquilação do Outro. Ao fazer esta referência última, penso principalmente nas obras “Do Francisco e do Tiago para Schubert e os passarinhos”, de Franciso de Oliveira e Tiago de Mello, e “Chromasia”, de Ricardo Lira. Em menor grau – mostrando uma tensão mais violenta entre homem, arte e pássaros, com piano sendo tocado ao fundo, sons de pássaro e de gaiolas sendo fechadas (ou seriam abertas?) com estardalhaço –, “Gamayun”, de Henrique Chiurciu.

Em “Pássarosino”, de Gabriel Hidalgo, sinos fazem as vezes de pássaros, que sem serem fúnebres, não deixam de passar certa estranheza: onde estão os pássaros diante desses sons tão tipicamente urbanos?

Já “Pequena coleção de esboços”, de Felipe Merker Castellani e “Das trevas, sabiá”, de Rodolfo Valente, me fizeram lembrar – principalmente o início da primeira obra – algo do futurismo, numa toada mais Sol e aço, de Yukio Mishima, que possui uma verve menos panfletária, explosiva. As gravações de áudio de pássaros, presentes nas obras anteriores, são substituídos por sons eletrônicos que reproduzem o trinar de aves – no início da obra de Merker de maneira que soa bastante positiva, que no meio inverte a curva apologética desses pássaros metálicos, criando uma paisagem mais sinistra, desenvolvida com mais ênfase nessa direção por Rodolfo Valente.

O fato de sair do circuito universitário – algo que vem sendo feito desde o início do ano, ao menos em São Paulo – foi interessante, parece alcançar um público mais diverso, além da questão de passar a tarde num parque e depois assistir a um concerto é mais convidativo que ir a alguma universidade fazer o mesmo – até porque, as universidades brasileiras cada vez mais se reafirmam como grandes colegiões de terceiro grau, reservado só para os VIPs. O tema pássaros para um concerto no Parque também foi muito feliz, e o som externo que adentrava o anfiteatro casava bem com as músicas.

Talvez por estar me mais habituado à música eletroacústica, ou talvez ao estilo de cada compositor, talvez pelo concerto ter tido uma coerência que não teve nos demais, achei ele mais acessível – até mais do que o primeiro a que assisti, em que boa parte das músicas eram acompanhadas de vídeos. Acredito que entre as cerca de cem pessoas que foram à sala do Tattersal, no Parque Água Branca, devia haver aquelas que não conheciam música eletroacústica: tiveram uma ótima iniciação (certamente houve quem se decepcionou, como duas senhoras que entraram achando que seria um show de sertanejo e saíram na segunda música).

São Paulo, 01 de agosto de 2012.

ps: em comemoração ao aniversário do NME, além de concerto temático, o NME pretende também lançar um box com cedê, devedê, textos e outros etecéteras. Se alguém quiser contribuir com o projeto, pode fazê-lo pelo site: catarse.me/pt/projects/838-nmeaniversario.

 

blog pessoal: www.comportamentogeral.blogspot.com

Casuística: www.casuistica.net

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador