Paul Winter e Carlos Lyra, e o culto da saudade

Conheci Paul Winter quando produziu um álbum para o grande Renato Braz, para o qual escrevi a contracapa. Grande saxofonista, sensível, emocionou-se com a definição de saudades, que não consta no dicionário inglês.

Seu amor pelas coisas do Brasil é antigo. Aqui um LP clássico, gravado com Carlos Lyra, um dos membros da santíssima trindade da bossa-nova – ao lado de Tom Jobim e Roberto Menescal. Ambos, Lyra e Winter, jovens, se preparando para conquistar o mundo.

E saudades de um Rio de Janeiro que não volta mais.

A contracapa foi escrita no auge do otimismo com a nova democracia social brasileira.

Saudade

A saudade é negra, a saudade é cafuza, a saudade é mulata, é a nostalgia branca do colonizador europeu pelas glórias perdidas, ou do colonizado brasileiro por lembranças impressentidas de tempos que jamais viveu.

É o sentimento comum, o fio invisível que costura todos os ritmos e raças que compõem a nação musical do Brasil, da batida do samba ao crepitar do frevo, da dolência da toada e do lundu, à cadência da marcha rancho.

Desde sempre, todos os ritmos brasileiros celebraram a saudade. E celebraram com tal intensidade que, quando  a música brasileira definitivamente se internacionalizou, o hino que anunciou os novos tempos dizia “Chega de saudade” e cantava “vai, minha tristeza”.

Nos anos 50, período de profundas transformações sociais e musicais no Brasil, João Gilberto foi a síntese do que de melhor a música brasileira havia produzido até então. Foi buscar Ary Barroso e Dorival Caymmi, Geraldo Pereira e Pedro Caetano, o samba sincopada e o samba-choro e apresentou-os à juventude dourada que, a partir de Ipanema, se lançava para o mundo. O ponto em comum era o ritmo, fazendo com que Brasil musical e continental se tornasse homogêneo pela batida do violão que simulava o surdo e os tamborins do samba. O Brasil daqueles tempos cabia no Rio de Janeiro.

Da síntese de João Gilberto nasceu, nos anos seguintes, a mais rica geração de compositores do país, os filhos de João e Tom Jobim que dominaram o cenário musical dali para frente.

Hoje em dia, o Brasil passa por transformações tão profundas quanto às dos anos 50, um Brasil mais robusto, menos desigual, com vários polos regionais de desenvolvimento econômico e musical e, provavelmente, a mais rica geração de música instrumental da sua história.

De todos os pontos do país emergem de novas formas musicais ao renascimento de gêneros clássicos, que se supunha extintos, como a canção semierudita, a toada mineira, o caipira paulista, a guarânia.

Nesse novo cenário, Renato Braz desponta como o João Gilberto do século 21, mais eclético, contemporâneo. Não apenas se tornou o melhor cantor brasileiro da atualidade, com uma extensão vocal e uma capacidade única de adaptar a voz a cada estilo de interpretação, mas também virou um centro de referência de um novo discurso musical, com características diversas dos anos 50.

O baiano João trouxe o Brasil para o Rio de Janeiro e deu-lhe uma feição carioca e universal. O paulista Renato celebra todos os Brasis do interior, com o sotaque musical adequado a cada região.

Do mesmo modo que João, neste CD Renato traz o melhor do rico período que vai do pós-bossa-nova até os tempos atuais, passando por alguns clássicos intemporais, como Noel Rosa e Zé do Norte.

Esse Brasil multifacetado está disperso na Internet, nos vídeos do Youtube, um universo caótico, apropriado a desses tempos em que a tecnologia multiplica e dilui as informações. Daí alguma dificuldade em se enxergar a nova revolução musical que se desenha no Brasil e terá em Renato um de seus pontos de referência.

 

Luis Nassif

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