Quando o choro foi jazz

A evolução do choro, no Brasil, foi marcada por saltos de forma que modernizaram o som sem provocar a ruptura do estilo. O primeiro, no início do século quando Callado, Chiquinha Gonzaga, Patápio, Aristides, Bonfiglio e, especialmente, Nazareth começam a dar forma e a sofisticar sua linguagem.

O segundo, no início dos anos 30, quando passam a convergir as duas maiores linhagens de música do país: a nordestina, de forte influência ibérico-árabe, através dos Turunas da Mauricéia, que vão beber nos sons do sertão; e a negra, através de Pixinguinha, que vai nadar nas ondas do jazz, juntando com o samba e o choro.

A revolução seguinte do choro ocorre a partir dos anos 40, fortemente influenciada pela música que vinha dos cassinos. Era período de guerra e grande parte do turismo internacional europeu baixa no Brasil. Há forte movimento de capitais que ajuda a criar infra-estrutrura de hotéis, cassinos e balneários que ainda hoje sustenta o turismo em muitas das estâncias hidrominerais brasileiras. Era esse circuito dos balneários que criava a escala permitindo a vinda de orquestras de fora e a proliferação de músicos nacionais.

Nos Estados Unidos o jazz começa a se sofisticar e tem início a fase de ouro das “big bands”. O “chic” da época era os bailes em imensos salões, com os distintos cavalheiros de fraque e as damas de branco.

No Brasil esse período é um dos mais férteis e, paradoxalmente, dos menos conhecidos da história do choro e da MPB. Vai do início dos anos 40 até a bossa nova e produziu a mais sofisticada geração de músicos brasileiros da história.

Nos anos 30 a música foi liderada por compositores intuitivos. Nos anos 50 e 60 pelos jovens que tocavam violão como João Gilberto. No período dos festivais por jovens que só depois viriam a aprender a tocar violão como João Gilberto.

Nos anos 40 até meados dos 50 quem mandou no som foram maestros, arranjadores, músicos com formação internacional e com conhecimento sofisticado de harmonia, liderados pelo som maior de Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto.

Em São Paulo ajudaram a engrossar esse movimento músicos como Esmeraldino no cavaquinho, Orlando Silveira no acordeom, Portinho na clarineta. No Rio, além dos violonistas da rádio Nacional o intemporal Radamés Gnatalli e seu Quinteto produziram peças clássicas.

Dentre os músicos do período, poucos foram tão fundamentais como o maestro Severino Araújo, líder da lendária e até hoje atuante Orquestra Tabajara.

Severino nasceu em nasceu em Limoeiro, em 1917. Passou pelo enorme celeiro musical de João Pessoa, Paraíba onde, em 1933, havia sido fundada a Orquestra Tabajara, no padrão das “big bands” norte-americanas. Quatro anos depois o maestro ingressou na orquestra, junto com outra mito do choro, o saxofonista potiguar K-Ximbinho. Logo depois Severino tornou-se o dono da banda.

A formação da Tabajara incluía o maestro, cinco saxofonistas, quatro trombonistas, quatro trumpetistas, dois bateristas, dois percusionistas, um pianista, um baixista, um guitarrista e dois crooners. O “som” da banda, influenciado por Glenn Miller, consistia na justaposição de saxofone com clarinete, instrumento do mestre.

Em 1945 Severino e a sua Tabajara mudaram-se para o Rio de Janeiro. Mas sua base cultural sempre seria a imbatível escola de arranjadores do frevo, o movimento que brota dos becos de Olinda e Recife e se espraia por todo o Brasil.

No Brasil não houve orquestra que chegasse perto do balanço da Tabajara. Quando o maestro subia ao palco com seu porte pequeno e sua clarineta e começava a reger, ninguém parava quieto. Seu som era tão amplo que nele cabiam todos os sons, dos sambas ao choro, do samba-canção à gafieira, do baião a Sinatra. Por sua orquestra passaram “crooners” do nível de Elizeth Cardoso e Jamelão, ao lado de Hélio Paiva, Cila Fonseca, Déo e Bidú Reis.

Ao mesmo tempo em que ajudava a alargar a cabeça musical brasileira para os novos sons, Severino produziria a maior inovação do choro no período, uma revolução harmônica e melódica brilhante, em que a imprevisibilidade da melodia, as quebradas, o vai-não-vai que já encantara o mundo através das produções de Walt Disney atinge paroxismos que não envergonhariam Benny Goodman. “Espinha de Bacalhau”, maior música do mestre, é um clássico desse estilo.

Profundamente brasileira, a orquestra jamais perdeu a gana da internacionalidade. “No dia em que a Orquestra Tabajara deixar de ser internacional eu acabo com ela”, disse o maestro em entrevista a Wellington Farias. Não há melhor definição para a geléia geral que moldou a música brasileira do que auto-definição de Severino Araújo: “No Nordeste eu era o maior ‘swingueiro’. Pegava a música brasileira e transformava em swing, que era a moda. Quando cheguei aqui para fazer baile, o coração bateu mais forte, o espírito patriota. Aí peguei a música estrangeira e tocava em ritmo de samba”.

Para cadastrar na Crônica Semanal

Ouça aqui “O Clarinete Gostoso”, de Severino, com ele e a Orquestra Tabajara.

Luis Nassif

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