Quatro canções paradigmas, por Aderaldo Luciano

Quatro canções em quatro discos brilhantes detonaram minha vida. Detonaram não no sentido de terem me levado à lona financeira, ao chão da mendicância. Detonaram porque expandiram-me em mim mesmo, levaram-me além para meu próprio além. Foi assim que se deu: fui fazer um concurso em Campina Grande, levei o dinheiro de ir, voltar e, possivelmente, almoçar. Era um concurso importante, eu estava preparado, cheio de aprendizado, afiadíssimo, tudo estava na ponta da língua, na ponta do lápis. Eu seria o primeiríssimo lugar. Dentro de dois meses estaria muito bem empregado no Tribunal de Justiça, ganhando a grana que garantiria minha aposentadoria, coçando o pé da barriga, inflada de chopp e cana brejeira.

Peguei uma carona e poupei a passagem de ida. Tudo começara dando certo. Bom sinal. Aumentou minha certeza e minha positividade. A carona deixou-me ali no Bompreço. Ao invés de subir direto para a Praça da Bandeira, desci pelo beco e caí na rua que vai dar na rodoviária velha. Passaria na Olacanti pra paquerar um violão, subiria cortando até o Calçadão, tomaria um café com um pedaço de bolo e queijo de coalho, atravessaria a avenida e faria as provas no Alfredo Dantas. Mas Deus tem sempre um plano melhor para nossas vidas. Para a minha não tenho nenhuma dúvida. No Calçadão estava um cara com uma caixa com uns 100 lps. Era vinil a dar com o pau. Os urubus já em cima. E eu me aproximei.


Vi o primeiro disco: Manduka, Brasil 1500. Eu ouvira falar dessa música num congresso de estudantes secundaristas, no salão paroquial da catedral, quando D. Manoel Pereira da Costa entrou de surpresa e alguém chamou a polícia para prender a direção do Movimento. Foi um corre-corre terrível e terminei detido numa delegacia do Catolé. Mas isso já passara. Agora eu me deparava, frente-a-frente com o disco lendário, gravado no Chile pelo filho do poeta Thiago de Melo. Eu tremi. Essa canção, Brasil 1500, ficara me perseguindo. Falaram-me que era algo diferente de tudo que eu já pudesse ter ouvido. Como não poderia deixar de ser: desfalquei o dinheiro reservado aos gastos do meu dia fazendo o concurso.

Segurei Manduka debaixo do braço e segui catando os discos. Aí vi a capa maravilhosa de Cauromi de Eustáquio Sena, participação especial de Zé Ramalho na canção título. Poucos saberão quem foi Estáquio Sena e sua importância para a música brasileira. Autor de várias canções em trilhas sonoras da Rede Globo, produtor dos Novos Baianos, mineirinho bom do Jequitinhonha, cantava essa maravilha de letra, ode à brasilidade, duplando com Zé Ramalho, marcando bem as pancadas do violão e jogando a voz para não ficar atrás do paraibano, que já era o bam-bam-bam, depois de Avohai. A capa com uma moldura azul e um encarte luxuoso, disco novinho, com plástico e tudo protegendo o acetato, sem marcas de agulha. Veio fazer companhia a Manduka.

Daqui a pouco, Fernando Falcão, Memória das Águas, disco da capa preta com um peixe fatiado no centro. Eu já ouvira falar do autor, mas pouca coisa. Sabia que era um paraibano exilado e aquele disco intrigou-me por ter sido gravado em Paris, num mercado público. Muita ousadia para meu pequeno mundo musical. Olhei a contracapa, li a disposição das faixas, as pequenas letras da produção. Valia à pena arriscar. E valeu mesmo. A faixa Danado Cantador era e é um golpe de capoeira na tradição melódica. Uma espécie de berimbau malvado contracenando com algum teclado incorporado do outro mundo, uma coisa estranhamente apaixonante. E a voz que entra lá pelo final gritando: “Pobre de ti, ó, mísero poeta, quase alcagueta e quase profeta, danado e cantador… tens a tristeza dos que perderam tempo e a alegria dos que venceram a morte…”

O dinheiro do concurso minguava e a adrenalina aumentou quando vi Eugênio Leandro, Além das Frentes. Que capa linda: uma parede. E a canção sensacional Vento Aracati. Aqui pelo Rio de Janeiro alguém saberá o que é o vento aracati? Eu também nunca soube até o dia em que fui para uma estância perto de Cajazeiras chamada Brejo das Freiras, um antigo convento no alto sertão paraibano transformado em hotel. Na noite sertaneja, na roda de conversas olhando o céu, entrou por algum lugar uma brisa um sopro de vento, vindo de onde não sei, mas que alguém disse: “É o vento aracati!”. Essa história aconteceu tempos depois de eu estar ali no calçadão, em Campina Grande, gastando o dinheiro de ir e volta e almoçar e fazer um concurso para o judiciário. Por algum fator emocional fui péssimo nas provas. Não almocei e no final da tarde, desci para o Ponto de Cem Réis tentar um carona de volta com quatro discos vivos, se remexendo dentro dos encartes.

Fernando Falcão faleceu em 2002, Manduka em 2004 e Eustáquio Sena em 2007. Eugênio Leandro tá vivíssimo, cantando e povoando o éter de coisas boas. Encontrei com Manduka por volta de 1996 ou 1997 em João Pessoa, num bate-papo com os estudantes na UFPB, depois num show no Teatro Santa Rosa, estava cheio de vida e arte. Por enquanto, sigo ouvindo os 10 minutos de Brasil 1500, tão atual e tão viva. Naquele dia de 1989, eu já estava casado pela primeira vez, pai de um pequerrucho chamado Achiles. Durante muitas noites ele ouviu essas quatro canções, trilha mais que sonora. Quem quiser ouvi-las, vai lá no YouTube e busca uma por uma. Talvez não sinta nada, mas eu continuo sentindo, permaneço o mesmo, gastando a grana do almoço pra comprar alimento.

Redação

2 Comentários

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  1. 1-
    Eh mais atmosfera do que

    1-[video:https://www.youtube.com/watch?v=Usw7Tr6foXk%5D

    Eh mais atmosfera do que talento:  francamente, violao desafinado eh o beijo da morte pra mim.  E nem eh fazer pouco caso do album em si, que eh bom sim, eh uma experiencia e tanto o escutar.

    2-[video:https://www.youtube.com/watch?v=MOLkXD6NFwo%5D

    Compositor assim eh raro no Brasil!  E embora em estilos diferentissimos, ele me lembra demais de Suba.

    3-  Nao ha quase nada de Sena no youtube.

    4-[video:https://www.youtube.com/watch?v=X4JU5eqBlrc%5D

    Longa vida a Eugenio!

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