Raul, um maluco que soube conviver com a beleza de grandes músicas

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Sugestão de jns

Do Jornal do Sudoeste

O Rei do Rock Brasileiro

Publicado em 26/08/2012

Amigo relembra bons e maus momentos ao lado de Raul Seixas

Na semana do aniversário de morte do “Rei do Rock Brasileiro”, pastor em Paraíso fala sobre sua vida ao lado do cantor

Ralph Diniz | SAO SEBASTIAO DO PARAISO

Manhã de segunda-feira, dia 21 de agosto de 1989. Raul Santos Seixas, 44, era encontrado morto em sua cama, no hotel Aliança, na zona oeste de São Paulo. Do outro lado da metrópole, o produtor Cláudio Luiz Pereira, 25, saia de uma oficina mecânica quando ouviu pelo rádio o anúncio do falecimento do amigo “Maluco Beleza”. A notícia que entristeceu o País mudaria para sempre a vida do fã que se tornou íntimo do cantor. Hoje, pastor evangélico, ele se recorda dos tempos em que participava de forma ativa do dia a dia daquele que foi considerado por muitos o “Rei do Rock Brasileiro”. Morador de São Sebastião do Paraíso há alguns anos, Cláudio, hoje com 48 anos, conta ao “JS” histórias pouco conhecidas do ídolo, amigo e sócio, com quem compôs mais de uma centena de canções.

RAUL POR CLÁUDIO

“O Raul foi um ‘maluco beleza’, mas poucas pessoas sabem que ele foi um maluco que soube conviver com a beleza de grandes músicas. Ele tinha seus problemas pessoais, mas ele tinha o lado bom como ser humano”, define. Para Cláudio, o maior defeito do amigo foi ter nascido no Brasil. “Se fosse ele norte-americano, Bob Dylan e John Lennon ficariam para trás. Suas músicas foram compostas há 40 anos e, mesmo assim, falam a linguagem de hoje. O problema é que no Brasil ninguém valoriza isso”.

“Raul cantava ele mesmo”. O rótulo de roqueiro, dado pelas gravadoras, não condizia com a realidade do artista, que afirmava que cada um tinha sua própria luz. “Ele era rebelde porque queria fazer aquela mistura de ritmos. Era uma verdadeira metamorfose ambulante e dizia que o sistema queria robotizar o povo”, lembra.

Cláudio conta também que o medo de ser morto pela ditadura militar em cima de um palco fazia com que Raul Seixas não gostasse nem um pouco de se apresentar em shows. “Todo mundo ouvia Raul Seixas, mas ninguém o conhecia de verdade. Só o conheciam pela capa do disco”. Em 1976, depois de cantar em um evento que contou com a presença de Rita Lee e outros artistas, o defensor da “Sociedade Alternativa” foi convocado a prestar depoimento no DOPS (Departamento de Ordem Política e Social). “Disseram que ele tinha falado demais e foi ‘convidado’ a deixar o Brasil”.

Exilado, o artista mudou-se para uma cidade no estado da Georgia, nos Estados Unidos. Lá, se casou pela primeira vez e teve duas filhas. “Certo dia bateram na porta dele. Era o cônsul brasileiro pedindo para ele voltar, pois era considerado um patrimônio nacional. Naquela época, ele deixou até o Roberto Carlos para trás, mas Raul duvidou. Achou que alguém iria matá-lo. Ele voltou, mas, mesmo assim, ficou com um pé atrás, pois os militares o odiavam. Ele só subia no palco sob o efeito de drogas”, conta.

O INÍCIO DA AMIZADE

A amizade nasceu quando o rapaz ainda era um adolescente e encantou o artista ao falar sobre obras literárias ligadas ao misticismo. “Li em uma reportagem que ele gostava de uns livros de esoterismo e procurei ler essas obras. Meses depois tive a oportunidade de me encontrar com ele e contar que havia lido Lobsamp Rampa e ele se assustou. Disse que eu era muito novo para ler aquilo, mas, mesmo assim, me deu o número de seu telefone e pediu para que eu ligasse”, conta. Raul reclamava abertamente que as pessoas só buscavam se aproximar dele por causa de seu trabalho e não pela pessoa que era.

Dias depois, Cláudio comprou várias fichas telefônicas e entrou em contato com o ídolo. Convidado para visitá-lo em sua casa, ele confessa que a ansiedade pelo encontro lhe tirou duas noites de sono. “Cheguei e ele estava comendo maionese, com a barba toda suja. Eu estava ao lado do Raul Seixas, queria abraçá-lo, tirar fotografias, mas não podia demonstrar muita coisa. Queria que ele me visse como amigo e não como fã”.

Durante a conversa, o jovem disse que desejava criar um fã-clube e que gostaria de contar com o apoio do cantor. Seixas apoiou a ideia e doou alguns objetos para chamar a atenção das pessoas. Estava fundado o “Raul Mania”. Quando apenas o aval já parecia o suficiente para realizar o desejo de Cláudio, Raul fez mais e surpreendeu a todos que prestigiavam o recém-inaugurado espaço dedicado a ele. “Nós estávamos na galeria quando apareceu um cara de cueca, um chapéu de bruxo e uma corda amarrada na cintura. Era o Raul. Ele se emocionou e o lugar encheu de gente. Lá foi o nosso batismo”, recorda.

A afinidade entre os dois era tão grande que Cláudio era solicitado pelo artista toda vez que jornalistas queriam saber sobre sua vida pessoal, Raul dizia à imprensa: “Meu nêgo (forma carinhosa com que Cláudio era tratado) sabe da minha vida melhor do que eu”.

SUCESSO E DINHEIRO

O “Raul Mania” crescia a passos largos graças à dedicação de Cláudio em vasculhar sebos em busca de publicações que falavam de Raul. “Em dois anos, eu montei um acervo incrível”. O sucesso foi tão grande que o nome do fã-clube chegou a estampar a capa de um dos discos do astro que, tempos depois, o convidou para ser seu sócio em uma gravadora batizada de Raul Mania Disco Clube Ltda. “Montamos essa empresa com uma visão: atrair todos os fãs para aquele lugar. Dizíamos que gravaríamos e venderíamos tudo lá”. Cláudio tinha certeza que poderia ficar rico com o novo projeto, porém suas ambições esbarravam no “anticapitalismo” de Raul. “Ele me disse: ‘O bicho, você quer ganhar dinheiro em cima disso, mas a coisa não é assim. ’ Ele não ligava para essas coisas. Não tinha um carro bom nem uma casa boa”.

Na mesma época, o pastor conheceu o escritor Paulo Coelho, outro grande amigo de Raul e propagador do misticismo e do ocultismo. “Certa vez, durante um café, ele me pediu para ajudá-lo a divulgar ‘O diário de um mago’, que ele acabara de publicar”. Mais tarde, a obra se tornou um best seller mundial.

A DECADÊNCIA DE UM MITO

Mesmo com a resistência de Raul, o negócio da dupla prosperou e Cláudio ganhou muito dinheiro. Porém, a mesma facilidade que ambos tinham de enriquecer, também possuíam para gastarem tudo o que ganhavam com drogas e álcool. “Nós chegamos a passar por um momento muito difícil, de almoçar em um restaurante e não ter dinheiro para pagar”.

Já nos últimos anos da década de 1980, Raul estava cada vez mais longe da mídia e a dependência do álcool fez com que sua mulher, Kika Seixas, o internasse a força em uma clínica de reabilitação. Segundo Cláudio, esse fato deixou o artista muito constrangido. “Ele já não era mais o mesmo. Às vezes, chegava a urinar nas calças e mal conseguia segurar a guitarra nos poucos shows que ainda fazia”, relembra com semblante entristecido. O fiel escudeiro cita uma passagem ocorrida durante uma apresentação na cidade de Caieiras, em que o artista foi tido pelos fãs e organizadores do evento como impostor. “Se tinha uma pessoa que não parecia com Raul era o próprio Raul”.

Em 18 de agosto de 1989, sexta-feira, o cantor telefonou para a casa da mãe de Cláudio e pediu para que ele fosse até o seu apartamento. Com o carro na oficina mecânica, o amigo disse que não poderia atender seu pedido, mas Raul insistiu. “Ele queria assistir a uma fita VHS do Elvis Presley que eu tinha conseguido. Cheguei lá e o vi muito abatido. Deixei o vídeo e fui embora. Na segunda-feira fui buscar meu carro. Quando liguei o rádio, estava tocando “Metamorfose Ambulante” e eu achei bom. Mudei de estação e tocava “Maluco Beleza”. Ótimo! Ao terminar, o locutor informou que o Rei do Rock Brasileiro tinha acabado de morrer. Parei o veículo e comecei a chorar. Tive muita dificuldade para chegar na Raul Mania Disco Clube, pois tinha muitos jornalistas e fãs reunidos naquele lugar. Só lá eu dei conta que ele realmente havia morrido”, lamenta.

A VIDA APÓS A MORTE DO AMIGO

Cláudio ficou responsável por administrar todo o material fonográfico inédito deixado por Raul. Explica que a quantidade de músicas era tão grande que teria condições de gravar mais de 20 discos com as canções. No início da década de 1990, ele e a mãe do cantor, Maria Eugênia, decidiram produzir aquela que é considerada pelos fãs a coletânea mais rara da carreira do rei do rock brasileiro: “Eu Raul Seixas”.  “Fiz uma seleção e gastei muito dinheiro com a produção, porque queríamos algo incrível. Conseguimos fazer um acordo com as principais gravadoras onde ele havia gravado suas músicas e montamos um grande disco”.

Durante dois anos, Cláudio e Maria Eugênia Seixas trocaram cartas quase que semanalmente para tratar dos negócios deixados por Raul. A afinidade entre eles se estreitou a ponto da mãe o tratá-lo como “filho paulista”. Pouco depois, Kika Seixas o processou e os LP’s deixaram de ser produzidos.   “As últimas duas mulheres dele (Lena Coutinho foi a quinta esposa do cantor) não gostavam muito de mim. Oito meses se passaram e ele morreu. mas nenhuma delas foi ao velório. Depois que produzi o disco, a Kika abriu um processo contra mim e a mãe dele. Ficamos muito tristes, pois fui acusado de ser ladrão”.

Decepcionado, ele se afundou nas drogas. Perdeu dinheiro, bens e a família. “Tudo o que era do Raul que não foi para as gravadoras ficou comigo, mas eu não soube aproveitar. Perdi tudo para as drogas. Quando estava drogado, eu sentia que ele estava comigo. Hoje sei que aquilo era uma coisa maligna, que queria ceifar a minha vida. Minha esposa foi embora com a minha filha, pois elas não suportavam me ver daquele jeito. Tudo o que eu conquistei ao lado dele virou pó. Pó da cocaína. Me tornei mendigo, deixei o cabelo e barba crescerem. Virei o Raul Seixas”.

O RECOMEÇO

Tido como morto pela maioria daqueles que seguiam Raul, Cláudio encontrou na fé um novo motivo para viver. Líder espiritual de uma igreja evangélica em Paraíso, ele diz que gostaria de voltar no tempo para levar a palavra de Deus para o amigo e afirma que sente a mesma dor da fatídica manhã de 21 de agosto de 1989. “Sinto por não ter tido a oportunidade de ter falado de Jesus para ele. Nós andávamos na escuridão, na mentira, na ignorância. Se eu pudesse voltar no tempo, diria que Jesus é maravilhoso”, conclui.

Jornal do Sudoeste | Publicado em 26/08/2012

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

4 Comentários

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  1. Se…

    Quando alguem te chamar por estar angustiado, vá. Pode ser a última vez que vc vai ver esta pessoa.

    No caso do Raul, não ia adiantar nada falar de Jesus, Raul ja conhecia a história toda, afinal ele nasceu há dez mil anos.

    O que conta é que Raul continua aí. Eu ainda ouço suas canções como se fossem inéditas.

    Poucos artistas conseguem este feito.

  2. Ainda bem que o Raul nasceu

    Ainda bem que o Raul nasceu no Brasil, para azar dele  sorte nossa e dos americanos. Se Raul tivesse

    nascido nos EUA certamente teria o sonho de ser brasileiro , ou não seria o  Raul.

  3. Fico muito agradecido por

    Fico muito agradecido por reproduzirem a minha matéria e dar os devidos créditos. Um ano depois de conceder essa entrevista, o pastor Cláudio faleceu após complicações durante uma intervenção cirúrgica. Coisas da vida. 

    Grande Abraço

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