A babá eletrônica virou um monstro, por Cesar Monatti

Imitação do desenho animado Peppa Pig

A babá eletrônica virou um monstro

por Cesar Monatti

Há alguns anos um pequeno aparato de som, destinado a monitorar o sono e o choro de bebês de colo instalados fora do quarto dos pais passou a fazer parte de listas de ‘chás de fraldas’ de famílias com poder aquisitivo suficiente para tal.

Em poucos meses o pequeno walkie-talkie modificado que, desde então, ganhou imagem e outras facilidades, costumava perder a utilidade e era substituído por sua versão máster, o televisor. Embora não seja propriamente uma forma de vigiar o bem-estar dos pequenos, a tevê ligada, como se sabe, entretém e, por isso, sossega por algum tempo a garotada que já têm certa autonomia.

Ocorre que os bebês e crianças da pré-escola desta segunda década do século XXI foram “contempladas” com as versões máster-plus das babás eletrônicas: os smartphones e tablets, como se pode comprovar abundantemente em locais públicos, como restaurantes e shoppings, e em cenas familiares.

Diferentemente da tevê, que limita o acesso a animações e programas infantis por conta da chamada grade de programação, esses aparelhos conectados à internet permitem o acesso irrestrito dos pequeninos às hipnotizantes imagens e temas que jorram aos borbotões da rede mundial de computadores, em especial, por meio do maior repositório de vídeos disponível, o YouTube.

Pelo menos uma breve reflexão sobre o quão longe estão indo os chamados trollers deve ter ocorrido a muitos daqueles que, entre dezenas de versões do famigerado “gemidão do zap”, receberam um inocente vídeo da série Peppa Pig que culmina com a conspícua gritaria pornográfica. Mas, infelizmente, o tema é muito mais grave e sombrio do que a eventual gaiatice de mau gosto de um grupo dedicado a trolagem nas redes.

O YouTube, ou melhor, as áreas do gigante da internet ainda conduzidas pela mão humana acusaram o golpe e encaminharam uma tentativa de solução para o crescente número de conteúdos impróprios ao alcance ou direcionados a crianças, naturalmente frágeis e impotentes diante de uma fonte intangível de abuso, violência e exploração comercial. No início de 2015 foi lançado o aplicativo YouTube Kids, reforçado por algoritmos de filtragem para oferecer apenas material apropriado para crianças.

O sucesso comercial da iniciativa é inquestionável, considerados os 11 milhões de acessos semanais ao acervo virtualmente infinito de clips. Não obstante, a suposta proteção das crianças contra conteúdos perniciosos é obviamente insuficiente.

Recente e extenso ensaio do escritor e artista James Bridle, debate em profundidade o tema, e sustenta que não se está tratando apenas com bandalheira de internautas entediados potencializada pelas redes.

Ele expõe abundantes evidências, e utiliza muitos exemplos de vídeos dirigidos a crianças que vão desde os mesmerizantes e, aparentemente, anódinos longos planos-sequência de mãos adultas simplesmente desembalando ovos de chocolate que contém pequenos brinquedos, até imitações grosseiras de personagens conhecidíssimos como a porquinha cor-de-rosa e sua família e inúmeros super-heróis em enredos abjetos parodiados de episódios originais.

Algo muito mais estarrecedor, contudo, é revelado no ensaio citado.

A geração de palavras-chave encadeadas, por mera “inteligência” robótica, de forma bizarra em longas sequências, tais como:

 “Halloween Finger Family & more Halloween Songs for Children | Kids Halloween Songs Collection”, “Australian Animals Finger Family Song | Finger Family Nursery Rhymes”, “Farm Animals Finger Family and more Animals Songs | Finger Family Collection – Learn Animals Sounds”, “Safari Animals Finger Family Song | Elephant, Lion, Giraffe, Zebra & Hippo! Wild Animals for kids”, “Superheroes Finger Family and more Finger Family Songs! Superhero Finger Family Collection”, “Batman Finger Family Song — Superheroes and Villains! Batman, Joker, Riddler, Catwoman”

e, mesmo, a possibilidade de produções baratas em estúdios automatizados, além dos números elevadíssimos e não auditáveis de acessos que ultrapassam aqueles dos canais das maiores celebridades internéticas, apontam para o início do pesadelo distópico dos filmes de ficção científica.

Há indicações consistentes que bots estão sendo utilizados para fazer muito dinheiro na web, pois cada visualização das animações e vídeos equivalem a difusão de anúncios (antes, durante e depois dos vídeos!).

A denúncia de Bridle é inquietante e assombrosa:

Alguém ou alguma coisa, ou ainda, uma combinação de pessoas e coisas está usando o YouTube para assustar, traumatizar e abusar de crianças sistematicamente, automaticamente e em grande escala…

Como esta situação cria o perigo, como alerta o próprio autor, de suscitar uma cruzada ultradireitista a favor de algum tipo de controle governamental sobre a internet é preciso que se afirme com veemência que, se por um lado, não será por intervenções da mesma ordem, isto é, soluções tecnológicas como outros algoritmos que filtrem conteúdos, que se resolverá a questão, muito menos o será por censura estatal de qualquer ordem.

É sempre um estímulo à resistência contra retrocessos, contra a opressão e contra a exploração, recorrer ao grande mestre Umberto Eco. Neste caso, no entanto, é imprescindível adaptar a proposta de sua “Guerrilha Semiológica”.

Não será possível, pela óbvia e natural vulnerabilidade dos espectadores, apenas estar ao lado dos pequenos mostrando a eles que é possível fazer uma “recepção crítica” das mensagens que chegam pelas telinhas às quais se mantém “grudados” por muitas horas.

Urge que adultos, pais e responsáveis (re)assumam seu papel de protetores e educadores de forma integral, pelo menos quanto aos conteúdos que são distribuídos, seja por quem ou o que for, via internet.

É forçoso que se dediquem a supervisionar, organizar previamente playlists adequadas às diferentes faixas etárias, além, é claro, a estabelecer limites de tempo e horários de acesso à web para bebês, crianças e adolescentes.

Redação

2 Comentários

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  1. Já existem ferramentas de controle

    Pouca gente sabe, mas já existem ferramentas de controle à internet, dentro de casa. Existe um site chamado ” open dns “, que você usa o número do IP no seu roteador, para bloquear os sites com violência, imoralidade, para que as crianças não possam ver nada de suspeito. O site também é conhecido por ” Family shield router “.

    O resultado, lógico fica parecendo uma internet ” das arábias ” onde quase tudo o que possa parecer suspeito fica bloqueado. Mas funciona. É interessante, para podermos ter uma idéia de como é a internet na Arábia Saudita, China, Irã, etc.

    Nem o blog do Nassif, GNN deixam passar no ” open dns “. Qualquer site ou blog, que faça apologia da nudez, ou sequer cite o assunto, ou cite artigos como liberação de drogas, etc, o ” open dns ” bloqueia.

    Se eu tivesse filhos iria bloquear a internet de casa com o ” open dns” , só liberaria o IP do meu PC para conteúdo geral.

    1. A armadilha dos algoritmos

      Pelo que pude depreender do artigo, os algoritmos que determinam os caminhos preferenciais para o acesso a conteúdos “aprenderam” quais os algoritmos que bloqueiam este mesmo acesso, como se pode ver na longa lista de palavras-chaves geradas por robots na qual só se encontram termos referentes a material muito conhecido produzido para crianças.

      Dessa forma, o YouTube Kids, por exemplo, embora tenha se esmerado para blindar todos os seus portões e portas, involuntariamente, se quer crer, entregou todos os moldes de gazuas e chaves aos bots ou grupos de pessoas dedicadas a isso, isto é, a possibilidade de decifrar seus algoritmos de bloqueio por meio de operações iterativas de exaustivas repetições por outros algortimos criados para esse fim.

      Em resumo, em vez de restringir as possibilidades de entrada de conteúdo nocivo, o YouTube Kids estimulou a sua produção e a busca por cliques para acumular seguidores – mesmo que outros bots – e visualização de anúncios.

      A armadilha dos algoritmos não está dirigida apenas a crianças indefesas, mas a todo nós. Nas palavras do autor do ensaio “lincado” no post, James Bridle: estamos vivendo num “tempo profundamente sombrio”.

       

       

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