Não-ficção

1812 – A marcha fatal de Napoleão rumo a Moscou, por Fábio de Oliveira Ribeiro

1812 – A marcha fatal de Napoleão rumo a Moscou

por Fábio de Oliveira Ribeiro

Finalmente criei tempo para ler o livro de Adam Zamoyski e confesso que fiquei surpreso. Há bastante tempo não lia um livro de história tão interessante.

Comprei meu exemplar de “1812 – A marcha fatal de Napoleão rumo a Moscou” em 2013. Desde então ele ficou esquecido numa pilha de livros de história que eu pretendia ler. Em geral, minhas leituras não seguem uma ordem rigorosa. Decidi retirar a obra de Zamoyski da pilha após rever uma das versões de Guerra e Paz. Fiquei surpreso e realmente satisfeito.

Escrito a partir de diversas fontes, mas com atenção especialmente aos relatos da guerra de soldados e oficiais que participaram do choque o império francês e o império russo, “1812 – A marcha fatal de Napoleão rumo a Moscou” coloca em evidência a missão impossível concebida por Napoleão: invadir a Rússia e se aliar ao czar para combater a Inglaterra.

O livro de Adam Zamoyski não deixa dúvidas quanto ao fracasso da operação desde o seu início. O exército multinacional comandado por Napoleão chegou em Moscou em frangalhos e se despedaçou durante a longa marcha de retorno. O que caracterizou a campanha do Grande Armée em 1812 foi a desorganização e o fracasso da logística francesa. A fome e a diarreia mataram milhares de soldados antes de Borodino. Os feridos na batalha não receberam tratamento e alimentação adequada e também pereceram.

A vitória de Napoleão em Borodino foi apenas aparente e ilusória, pois o exército russo recuou em boa ordem e rapidamente recuperou sua condição operacional. O imperador francês desperdiçou o sucesso militar ficando em Moscou mais tempo do que o necessário. A imprudência de Napoleão ao desprezar os avisos que recebeu acerca do rigor do inverno russo é imperdoável. Ele causou milhares de mortes desnecessárias ao retardar a retirada. Se tivesse ficado em Moscou talvez o Grande Armée tivesse sido salvo, pois ao contrário do que se acredita o incêndio não havia destruído totalmente os depósitos de alimentos da cidade.

Kutuzov, retratado como um comandante genial por Leon Tolstoi, quase colocou tudo a perder dando ordens contraditórias, instigando disputas mesquinhas entre seus subordinados e mentindo descaradamente para o imperador russo. Apesar dos soldados russos estarem em melhores condições durante o inverno eles foram impedidos de destruir o que restava do Grande Armée por causa da lentidão e do excesso de cuidado de seu comandante.

A campanha napoleônica de 1812 consistiu basicamente em duas grandes retiradas, uma imensa batalha campal (Borodino), uma batalha menor (conquista de Smolensk) e dezenas de escaramuças. No início da guerra, o exército russo se retirou em boa ordem após Napoleão atravessar o rio Nienen. No final da campanha, o Grande Armée em fragalhos foi perseguido pelo exército do czar Alexandre.

Uma distinção entre as duas retiradas merece ser feita aqui. Enquanto o exército russo recuou fronteira suprido do que era necessário e, após se recuperar da batalha Borodino, avançou perseguindo os franceses, o Grande Armée sofreu muito quando entrou na Rússia e mais ainda quando foi obrigado a recuar. Depois que atravessaram o Niemen,os franceses foram atormentados pela fome e pela diarreia. Ao recuar de Moscou, eles foram destroçados pelo frio e pela fome intensa.

“Henrich von Roos observou que, ao chegarem a um acampamento recentemente desocupado, a forma mais segura de saber se ele havia sido erguido por tropas francesas ou russas era procurar as latrinas, explicando ‘o excremento deixado pelos homens e animais do lado russo comprovavam um bom estado de saúde, ao passo que o nosso mostrava da forma mais clara possível que todo o Exército, os cavalos tanto quanto os homens, estava sofrendo de diarreia’.” (1812 – A marcha fatal de Napoleão rumo a Moscou, Adam Zamoyski, Editora Record, Rio de Janeiro-São Paulo, 2013, p. 192)

Durante a travessia do Berezinha os franceses conseguiram enganar os russos. Os ponteiros do Grande Armée que deram a vida nas águas geladas do rio para construir e reparar as pontes que salvaram dezenas de milhares de soldados deveriam ser simbolicamente enterrados no Panteão em Paris. Esse foi o único episódio durante a campanha em que Napoleão demonstrou sua genialidade. Mesmo assim milhares de franceses morreram porque preferiram descansar e ficaram apavorados quando os russos chegaram.

A narrativa dos sofrimentos experimentados pelos soldados franceses durante a retirada é impressionante. Nenhum filme ou documentário televisivo jamais conseguirá reproduzir as palavras dos próprios envolvidos, que viram seus camaradas devorando carcaças de animais mortos, cortando pedaços dos traseiros dos cavalos vivos e até se entregando ao canibalismo.

“Uma das coisas mais interessantes que emergem dos relatos escritos da retirada é que parece ter havido um limiar, sob o qual os homens trapaceavam, matavam e até mesmo comiam uns aos outros, e acima do qual eles se apegavam à dignidade humana, a um senso de dever, e aspiravam a felicidade. No mesmo momento em que milhares congelavam e alguns até se entregavam a atos de canibalismo nos arredores de Pleshchenitse na noite de 30 de novembro, um dos oficiais de plantão de Napoleão, que, por acaso, tinha uma boa voz para cantar, entretinha seus camaradas com um recital de canções enquanto eles tremiam nas ruínas de uma casa senhorial. De um lado, alguns morriam praguejando enfurecidos enquanto mordiam como cachorros famintos alguma carcaça; de outro, um jovem oficial foi encontrado duro como pedra por seus companheiros, tendo congelado enquanto contemplava apaixonadamente um retrato da esposa. Embora algumas circunstâncias obviamente tivessem um efeito maior, esse limiar não parece ter tido nenhuma relação com a sorte, e sim com o caráter.” (1812 – A marcha fatal de Napoleão rumo a Moscou, Adam Zamoyski, Editora Record, Rio de Janeiro-São Paulo, 2013, p. 469/470)

A desmoralização causada pelo estado de algumas unidades não afetou apenas o moral do Grande Armée. Até mesmo os soldados russos que viram os franceses naquela situação degradante foram afetados de maneira negativa.

“O general Langeron, que comandava a vanguarda do Exército de Chichagov, seguia os franceses que iam para Vilna.

‘O exército russo marchava no meio da estrada, escreveu ele, ‘e a cada lado dessa estrada marchavam, ou melhor, cambaleavam, duas colunas do inimigo sem armas’.

Os russos ignoravam-nos, visto que não conseguiam arrancar nada deles.

‘Eles não sabiam de nada, não lembravam de nada, não entendiam nada’, de acordo com o tenente Zotov.

A própria estrada estava coberta por cadáveres congelados, e aqui e ali grupos de soldados enlouquecidos roíam uma carcaça, humana ou animal.

‘Nasci para morrer a serviço da minha pátria, e desde o início me preparei para não temer nada, nem balas nem outros perigos’, escreveu o tenente Chicherin em seu diário, ‘mas não consigo me acostumar aos horrores e tormentos que se apresentam continuamente aos meus olhos ao longo do caminho.’” (1812 – A marcha fatal de Napoleão rumo a Moscou, Adam Zamoyski, Editora Record, Rio de Janeiro-São Paulo, 2013, p. 483).

A guerra não seria possível se o soldado de um exército não desumanizasse o inimigo. Entretanto, o limiar que separava seres humanos de homens animalizados no exército francês em retirada também pode ser visto no exército do czar Alexandre. Mas ele operou de maneira inversa. Observar o sofrimento e a bestialidade do inimigo causava horror e despertava piedade nos soldados russos. O que não significa que eles não tenham cometido barbaridades. Quando prendiam retardatários, os cossacos despiam-nos ou os vendiam aos aldeãos que queriam se vingar das atrocidades cometidas pelas tropas napoleônicas durante a invasão do território russo.

O sucesso de Napoleão pode ser creditado tanto à sua genialidade militar quanto à sua perspicácia política. Sempre que invadia um país, o imperador francês libertava os servos predispondo-os a lutar contra seus senhores e a defender os ideais da França revolucionária. Curiosamente, ao invadir a Rússia, Napoleão não fez isso. Ele não queria abalar os fundamentos do Império Russo porque acreditava poder fazer a paz com o czar Alexandre tornando-o um aliado na guerra contra a Inglaterra. Ao preservar a servidão do campesinato e obrigar suas tropas a confiscar alimentos nos vilarejos russos durante a invasão, o imperador francês colocou um prego no caixão do Grande Armée.

A linha que separa o fracasso do sucesso no campo de batalha é tênue. Apesar de seus equívocos e manias, Kutuzov venceu a guerra. Mas a verdade é que ela já estava perdida quando Napoleão atravessou o Niemen. Adam Zamoyski registra uma semelhança curiosa entre esses dois comandantes.

“A confusão que fizeram naquela operação provocou uma onda de recriminações e auto justificativas através de todo o Exército russo. Até o tenente Aleksandr Chicherin escreveu em seu diário no dia 1º de dezembro que ‘a atmosfera de intriga penetrou em todos os lugares’. Kutuzov rapidamente culpara todos os participantes por terem deixado Napoleão escapar. Ele achava ‘inacreditável’ e ‘imperdoável’ que Chichagov tivesse se permitido ser enganado.” (1812 – A marcha fatal de Napoleão rumo a Moscou, Adam Zamoyski, Editora Record, Rio de Janeiro-São Paulo, 2013, p. 477)

Antes desse episódio, porém, o temeroso Kutuzov havia deliberadamente perdido a oportunidade para cortar a retirada de Napoleão.

“Como de costume, Napoleão culpava os outros por seus róprios erros e pela sua imprecaução. Ele culpava Victor pela ‘falta vergonhosa de presteza’, culpava Shwarzenberg, culpava o clima e culpava os poloneses por não terem levantado grandes quantidades de ‘cossacos poloneses’ para substituírem a cavalaria que ele tão descuidadamente dissipara,” (1812 – A marcha fatal de Napoleão rumo a Moscou, Adam Zamoyski, Editora Record, Rio de Janeiro-São Paulo, 2013, p. 478)

Mas quando estava em Moscou, Napoleão caçoava de Caulaincourt, seu principal assistente, “…acusando-o de contar histórias sobre o inverno russo inventadas para ‘assustar crianças’. (1812 – A marcha fatal de Napoleão rumo a Moscou, Adam Zamoyski, Editora Record, Rio de Janeiro-São Paulo, 2013, p. 340)

Agora eu peço licença ao leitor para transcrever dois episódios da retirada narrados pelo autor:

“Grande parte das moedas perdera o valor. O doutor Heinrich Roos recordar-se-ia de ter visto um soldado de Württemberg sentado à margem da estrada nos arredores de Orsha com uma barra de prata no colo, implorando que alguém a trocasse por quaisquer migalhas de comida. Ninguém, entretanto, estava preparado para abir mão de rações que poderiam salvar suas vidas em troca de uma barra de prata que só teria valor quando retornassem para casa. A única reação que ele conseguiu suscitar nos homens que passavam por ele arrastando os pés foi uma torrente de piadas cruéis. Mesmo o último recurso das mulheres – a prostituição – tornara-se sem valor naquelas circunstâncias.” (1812 – A marcha fatal de Napoleão rumo a Moscou, Adam Zamoyski, Editora Record, Rio de Janeiro-São Paulo, 2013, p. 433)

“O coronel Seruzier da artilharia leve da 2ª Divisão de Cavalaria de Montbrun teve mais sorte que a a maioria. Ele foi capturado por cossacos no momento em que estava prestes a atravessar o Niemen de volta. Ele foi ferido, bem como despido e roubado, e forçado a marchar descalço nu pela neve num frio intenso. Queixou-se do tratamento que estava recebendo quando foi levado até Platov, mas recebeu uma repreensão desdenhosa. Felizmente para Seruzier, o filho de Platov apiedou-se dele, e, depois de enfaixar seus ferimentos, deu-lhe alguns trapos para vestir. Isso teria feito pouca diferença quando ele fosse despachado sob responsabilidade de guardas cossacos se não fosse por um golpe de extraordinária sorte que se lhe apresentou quando ele encontrou um coronel russo a quem havia aprisionado em Austerlitz sete anos antes e a quem tratara com cortesia. O coronel deu-lhe roupas e dinheiro, e recomendou-o pessoalmente, com ameaças, ao comandante do comboio.” (1. 812 – A marcha fatal de Napoleão rumo a Moscou, Adam Zamoyski, Editora Record, Rio de Janeiro-São Paulo, 2013, p. 513)

Tudo aquilo que os franceses pilharam em Smolensk e Moscou teve que ser abandonado no caminho de volta. Nem mesmo as carroças com o tesouro pilhado por Napoleão chegaram à França. Objetos de ouro e prata deixaram de ser valiosos, pois as únicas coisas que realmente tinham valor eram as roupas esfarrapadas, os agasalhos improvisados e a comida extremamente escassa. A compaixão de um inimigo tratado com gentileza no passado, por outro lado, transformou-se numa moeda extremamente valiosa.

As coisas cobiçadas por exércitos conquistadores (dinheiro, ouro, prata, petróleo, terras, etc…) não tem valor em si mesmas. Elas se tornam valiosas ou insignificantes de acordo com o contexto em que sua posse será desfrutada. A amizade e o respeito, por outro lado, podem fazer a diferença entre a vida e a morte quando se está a mercê da mais abjeta carência. Esses dois fragmentos do livro de Zamoyski sugerem uma reflexão importante sobre os limites da guerra como continuação da economia por outros meios.

Fábio de Oliveira Ribeiro, 22/11/1964, advogado desde 1990. Inimigo do fascismo e do fundamentalismo religioso. Defensor das causas perdidas. Estudioso incansável de tudo aquilo que nos transforma em seres realmente humanos.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Fábio de Oliveira Ribeiro

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  • Fico feliz em saber que você passou tanto tempo escrevendo um artigo sobre uma das páginas mais importantes da história da minha terra natal. Não tenho comentários sobre os fatos declarados - tudo corresponde aos fatos históricos.

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