Afinal, qual é “A cara da Morte?”, por Claudio Santana Pimentel

Afinal, qual é “A cara da Morte?”: leitura de um estudo sobre o imaginário de sepultadores em São Paulo

por Claudio Santana Pimentel

Aproxima-se o Dia de Finados, originalmente, tempo de reflexão sobre o limiar entre a vida e a morte; para nós, pretensamente laicos, apenas mais um feriado, a nos aliviar do peso dos compromissos cotidianos. Na verdade, apenas a adiá-los. Talvez a reflexão seja mais ainda necessária, sobretudo em tempos onde tudo parece desmoronar, certezas parecem inexistir. A única certeza a persistir, entretanto, parece ser justamente a certeza da Morte.

Retomo a leitura de A Cara da Morte: os sepultadores, o imaginário fúnebre e o universo onírico, resultado da pesquisa de Mestrado de Clarissa de Franco no Programa de Ciência da Religião da PUC-SP. Clarissa doutorou-se no mesmo Programa com instigante tese sobre o ateísmo contemporâneo, que espero ver publicada em futuro próximo. Atualmente, tem se dedicado a temas como a laicidade e o feminismo islâmico, revelando-se uma pesquisadora competente, sensível e respeitosa com os participantes de seus estudos.

Em sua primeira obra relevante, Clarissa, psicóloga por formação e ofício, investigou as representações de sepultadores em cinco cemitérios na cidade de São Paulo. Diante de um universo tão amplo quanto o que a humanidade pensa sobre a morte, escolheu um caminho original e criativo, que se revela mais importante ainda ao trazer, para primeiro plano, a visão daqueles que, estando presentes aos últimos momentos de tantos, trabalhando, são invisibilizados, como em geral o são os trabalhadores que cumprem as funções mais humildes. Aspecto que não escapou à autora.

Vale a pena retomar sua hipótese inicial: “o fato de os sepultadores trabalharem diretamente com a questão da morte do outro faz com que tenham uma atitude religiosa e ideológica peculiar frente à morte. Supunha-se inicialmente que eles vivenciassem em seu íntimo uma exacerbação dos sentimentos, medos e angústias em relação à morte, o que não necessariamente corresponderia à sua atitude exterior. E o campo do imaginário seria o espaço em que acreditávamos poder perceber essas divergências de discursos e percepções” (p. 8).

Dividida em quatro capítulos, a obra se inicia com um estudo sobre o imaginário de morte na antiguidade, privilegiando a dimensão simbólica, partindo de um referencial teórico de base junguiana, dialogando com a Antropologia e a História, o que lhe permitiu perceber modulações, diferenças, transformações e rupturas nos símbolos elaborados para lidar com a morte. Sobretudo, interessa-lhe as narrativas construídas sobre a morte, no Egito antigo, na Grécia e em Roma, e entender como estas contribuíram para uma concepção da relação vida-morte: “pode-se dizer que existe uma ênfase no processo pós-morte, nos ambientes para onde a alma se destina, no processo de preparação para a outra vida” (p. 75).

No segundo capítulo, enfrenta o imaginário cristão medieval sobre a morte, fundamental para se compreender as concepções ocidentais sobre o tema. A ideia do julgamento, que não se refere somente ao Juízo Final, mas abre-se para o julgamento individual de cada um. Concepção que se desenvolveu lentamente, e que, pode-se dizer, é fundamental para compreender as origens da moderna noção de individualidade e de liberdade. Enfrenta o tema do medo, dos horrores do inferno e do temor de um Deus punitivo, e como isto deu origem a uma pedagogia da morte, uma arte do morrer, que consistia numa aprendizagem sobre como se deve viver e morrer. Se a individualidade está sendo gerada e estruturada no Medievo, ainda há uma forte demanda social e coletiva sobre pensamentos e ações, que se manifesta no esforço da Igreja ocidental para adaptar as concepções populares sobre o além-vida às suas próprias. Chegando à modernidade europeia, destaca o impacto da secularização e da morte vista cada vez mais como questão individual.

O terceiro capítulo enfrenta a transposição do imaginário popular tardo-medieval ibérico para o Brasil, influenciado pelas concepções indígenas e africanas. O escravizado africano morria duas vezes, considerando-se a travessia do Atlântico uma primeira morte. Devido à importância dos antepassados para sua concepção de mundo, a imposição do cristianismo foi também nesse aspecto uma violência terrível, retirando-lhe a possibilidade de cultuá-los, ao menos publicamente. Teve o escravizado africano que adaptar-se às possibilidades que a sociedade colonial oferecia. A afetividade com os santos, característica da religiosidade brasileira popular, talvez fosse incompreensível se desvinculada da concepção africana de ancestralidade. A dimensão de afeto não pode ser reduzida à relação hierárquica medieval de senhor-vassalo. Por sua vez, a ritualística mortuária indígena permitia reorganizar aquela sociedade diante da perda sofrida. A morte no Brasil colonial e imperial fazia parte da vida, do cotidiano, como percebe a autora ao discutir a presença e a intervenção dos mortos no mundo dos vivos, recurso constante em narrativas populares e na literatura de folhetos, ou cordel. Poderia ter explorado o fato que mesmo um autor brasileiro contemporâneo erudito, como Érico Veríssimo, trouxe os mortos para o convívio dos vivos, em seu Incidente em Antares, onde mortos insepultos voltam para acertas as pendências da vida. Encerra o capítulo apresentando os cemitérios paulistanos em que realizou a pesquisa de campo.

O capítulo final coloca o leitor diante do imaginário dos sepultadores, a partir de seus relatos. Percebe-se a relação ambígua com o tema da morte, presença diária em seu ofício, mas ao mesmo tempo evitado no discurso. “Quando a gente sai do cemitério, a gente não pode ficar pensando em morte, se não, não vivemos” (p. 174). O desconforto é percebido pela pesquisadora diante das indagações que lhes faz. A autocompreensão e a explicitação dos preconceitos que sofrem por sua profissão também aparecem em suas falas. O estudo de Clarissa ofereceu a essas pessoas a rara oportunidade de reivindicarem sua humanidade, diante de uma sociedade que não os reconhece e, quando o faz, parece não se importar. Ao indagar por suas convicções religiosas, apreendia-se o predomínio de uma visão cristã, ainda característica do Brasil urbano contemporâneo, com opções entre o catolicismo, o pentecostalismo e a indefinição religiosa ou a declaração de não pertencimento religioso. Mesmo esses, no entanto, apresentavam em suas concepções traços da religiosidade cristã. Por outro lado, católicos ou pentecostais, organizavam suas convicções religiosas a partir de sua experiência pessoal, comportamento tipicamente moderno. Especialmente importante para a compreensão dessas concepções são os relatos de sonhos e de suas sensações: “a dificuldade de abordar o tema da morte mostra a sua contrapartida inconsciente e simbólica: seus sonhos trabalham para representar essa morte sem cara, silenciosa, da qual não se pode falar. Seus medos e angústias vestem a roupa onírica e falam, no único espaço que possuem para se manifestar” (p. 230). Questão que a autora coloca ao final, sem rodeios, como é sua característica: ao desumanizar o sepultador, reduzindo-o ao seu ofício e negando-se a vê-los como pessoas, a sociedade transfere para estes o lidar com a morte. Não somente o sepultar, mas livra-se também do ônus que o pensar a morte exige de nós. Numa relação moderna, capitalista, é como se, ao remunerarmos alguém para trabalhar com a morte, transferíssemos todos os encargos, não somente os físicos, mas sobretudo os simbólicos, que no caso são muitos e muitíssimos pesados, nos isentando, nessa troca, de qualquer responsabilidade.

Clarissa deixa-nos diante do rosto, ainda que encoberto, da cara da morte. Cara que pretendemos a todo custo evitar. Face que, modernos e laicos que pretendemos ser, desaprendemos como lidar. Se o enfrentamento da morte foi, como sugere Clarissa em seu livro, fundamental para o desenvolvimento simbólico da humanidade, reencarar a morte parece condição necessária se quisermos nos reumanizarmos.

FRANCO, Clarissa de. A cara da morte: os sepultadores, o imaginário fúnebre e o universo onírico. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2010.

Redação

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