Lista de Livros: Marx, manual de instruções (Parte III), de Daniel Bensaïd

"A crise é, dessa forma, “o estabelecimento pela força da unidade entre momentos (produção e consumo) levados à autonomia”, mas que são “essencialmente um só”."

Seleção de Doney

Lista de Livros: Marx, manual de instruções (Parte III) – Daniel Bensaïd

 

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-351-6

Tradução: Nair Fonse

Ilustrações: Charb

Opinião: muito bom

Páginas: 192

Sinopse: Ver Parte I

 

Crises de ontem e de hoje

Muitas coisas mudaram desde a época de Marx: técnicas de produção, fontes de energia, organização do trabalho, grande distribuição, formas de crédito, globalização do mercado. No entanto, a lógica da crise que ele analisou está no cenário da crise atual. Ela não explode no comércio varejista, mas “no comércio atacadista e nos bancos”. Começa na esfera financeira pela “insolvência que interrompe bruscamente a aparente prosperidade”, para depois atingir o que a vulgata jornalística chama de “economia real”. O capital comercial e bancário que inicialmente contribuiu para mascarar a crescente desproporção entre produção e consumo torna-se o elo mais fraco:

Apesar do caráter autônomo que possui, o movimento do capital mercantil nada mais é que o movimento do capital industrial na esfera da circulação. Mas, em virtude dessa autonomia, o capital mercantil move-se até certo ponto sem depender dos limites do processo de reprodução e por isso leva este a transpor os próprios limites. A dependência interna e a autonomia externa fazem o capital mercantil chegar a um ponto em que surge uma crise para restaurar a coesão interior.[7]

Nos anos 1970, a taxa de lucro estava corroída pelos ganhos sociais obtidos no período de crescimento do pós-guerra. A contrarreforma liberal, iniciada por Margaret Thatcher e Ronald Reagan, visava a destruir esses ganhos (indexação relativa dos salários aos ganhos de produtividade, sistemas de proteção social, taxa de desemprego moderada) para impor o que Frédéric Lordon chamou de “capitalismo com baixa pressão salarial”. Visava sobretudo a modificar a divisão do valor agregado em detrimento dos salários, a aumentar a produtividade pela diminuição do custo do trabalho, a reduzir a proteção social, a melhorar a política fiscal vigente para empresas e altos salários.

Entre 1980 e 2006, a parte dos salários no valor agregado das empresas efetivamente diminuiu de 67% para 57% nos quinze países mais ricos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Disso decorreu uma redução relativa da demanda solvente, compensada por um incremento de crédito e de despesas militares, além do crescimento espetacular da desigualdade de rendimentos. O “salário” dos nababos e de outros paraquedas dourados são a demonstração mais ostensiva. Por mais chocante que possa parecer, essa desigualdade também é funcional: estimula o consumismo de luxo de uma casta que compensa em parte a restrição do consumo de massa, entretanto sem poder substituí-lo. A redução relativa das transações, consequência da ruptura do “círculo virtuoso” que liga a evolução dos salários aos ganhos de produtividade, traduziu-se por uma desaceleração dos investimentos produtivos, ao mesmo tempo que o capital disponível acumulado, em busca de ganho rápido e fácil, inflou a bolha dos investimentos financeiros. Comparado a um coeficiente 20 em 1960, o lucro das sociedades financeiras atinge 160 em 2006. Entusiasmados, os bancos chegaram a emprestar quarenta vezes mais do que seus fundos próprios poderiam garantir.

Nos anos 2000, nos Estados Unidos (mas também em países como a Espanha), o crescimento foi sustentado por um boom imobiliário, estimulado pelo crédito a uma clientela pouco ou nada solvente. Durante o verão de 2007, esses créditos com juros inicialmente baixos mas variáveis, sem tributos nem garantias, exceto uma hipoteca sobre o bem comprado, atingiram a massa crítica de 1,3 trilhão de dólares nos Estados Unidos. Entre 1975 e 2006, o índice de endividamento das famílias dobrou e atingiu 127% da renda disponível. Em tal patamar, os credores não são apenas incompetentes ou irresponsáveis, mas escroques e criminosos que encorajam deliberadamente o endividamento de pobres inadimplentes, na tentativa de encobrir dívidas duvidosas e apagar seus traços na opacidade da securitização. No fim da estrada, há milhões de famílias sem-teto.

Concedamos generosamente o benefício da dúvida. Suponhamos que não tenham sido meramente cínicos, mas ofuscados pelos sortilégios do fetichismo monetário, e que tenham acreditado no inacreditável, no milagre do dinheiro que se autoengendra sem passar pela fecundação da produção. A hipótese é plausível, pois Jean-Claude Trichet[x] em pessoa se deslumbrava no Financial Times de 29 de janeiro de 2007: “Existe atualmente tanta criatividade em matéria de novos instrumentos financeiros sofisticados que não sabemos mais onde estão os riscos”. Caríssima criatividade! O guru dos anos loucos, Alan Greenspan, submetido a um duro interrogatório por uma comissão da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, confessou, com ar contrito, ter pensado que o egoísmo dos banqueiros seria um regulador suficiente: “Cometi um erro ao presumir que o interesse pessoal fosse tamanho que se empenhariam em proteger os acionistas”. E o oráculo deposto concluiu: “É um pilar essencial da economia de mercado que acaba de ruir. Estou pasmo, ainda não entendi como isso pôde acontecer”[8]. Se é o que ele diz…

“Em forte contradição com esse refinamento […], a especulação inglesa voltou para sua forma mais primitiva de fraude”, escreveu Marx em 26 de setembro de 1856. Na Grande Exposição de Londres, a construção do Crystal Palace contemplou, com efeito, a circulação de 4 mil falsas ações. A especulação liberal das últimas décadas conduziu a “pura escroqueria” a píncaros jamais galgados. O escândalo Madoff é apenas o mais visível. Ao exigir retorno sobre investimento na faixa de 15% ou mais, para um crescimento em média três vezes inferior, subjugados pelo “fetiche capitalista” do “valor criador de valor” e pelo mistério do “dividendo cuja fonte é o próprio capital”, os acionistas foram tão cegos quanto os banqueiros. Entretanto, o prodígio era mais assombroso do que a multiplicação bíblica dos pães. A cavalgada desse crescimento a crédito não poderia durar indefinidamente. Estouro da bolha financeira, queda das Bolsas, restrição ao crédito: o estrondo põe brutalmente fim à alucinação. Ao chamar o virtual à ordem, o real confirma o aviso de Marx: “o movimento do capital financeiro nada mais é do que o movimento do capital industrial na esfera da circulação”.

Contrariamente à fórmula de que a crise financeira se propagaria e contaminaria a indevidamente chamada “economia real” (como se a esfera financeira fosse irreal!), ela revela principalmente uma crise latente de sobreprodução, há muito (excessivamente) adiada pelo incentivo ao crédito e que irrompe agora à luz do dia nos setores da construção e automobilístico. Os vendedores, apavorados com a possibilidade de ficar com a mercadoria parada, reduzem preços, liquidam, vendem abaixo do custo. Mas isso não basta. Antes vilipendiado, o Estado é chamado ao socorro, como última garantia e derradeiro recurso. O mito liberal de uma regulação mercantil pura e de uma expansão ilimitada da esfera financeira desaba, em conjunto com seu corolário, a utopia de uma “empresa sem indústria”, propagada outrora pelo presidente da Alcatel, Serge Tchuruk. Ele sonhava com firmas que subcontratassem ou terceirizassem todas as atividades de produção, para conservarem apenas as atividades financeiras. Nessa “nova economia” virtual, o capital manteria a ilusão de prosperar sem intervenção do trabalho[9]. Mas a realidade vingou-se. O sonho absurdo do capital sem trabalho, do “enriquecimento sem causa” e da globalização beatificada (cara a Alain Minc) “despedaçou-se”, confessou Nicolas Sarkozy em seu discurso de 25 de setembro de 2008, em Toulon. Virou, inclusive, um pesadelo.

No momento de pagar a conta do desastre financeiro, as responsabilidades esvaem-se no anonimato do “se” misterioso, de um social killer tão anônimo quanto as sociedades de mesmo nome: “esconderam-se riscos cada vez maiores…; fingia-se acreditar que a gestão global de riscos os anulasse…; permitiu-se aos bancos especularem no mercado, em vez de cumprirem sua função…; financiaram-se especuladores em vez de empreendedores…; deixaram-se agências de classificação de risco e fundos especulativos sem nenhum controle…; submeteram-se os bancos a normas contábeis sem qualquer garantia de gestão de riscos…”, invectivou Nicolas Sarkozy. E seu primeiro-ministro repetiu como um eco: “O mundo está à beira do abismo por culpa de um sistema irresponsável” (François Fillon, 3 de outubro de 2008). Como se os partidos políticos, de direita e de esquerda, não tivessem despendido muita força e resolução, durante um quarto de século, para largar as rédeas desse capitalismo financeiro, que não é uma forma velada de capitalismo, mas sua própria essência. “Todos querem a concorrência sem as consequências funestas da concorrência. Todos querem o impossível, quer dizer, as condições de vida burguesa sem as consequências necessárias dessas condições…”, escreveu Marx a seu correspondente Annenkov.

A crise é, dessa forma, “o estabelecimento pela força da unidade entre momentos (produção e consumo) levados à autonomia”, mas que são “essencialmente um só”. Essa violência é, antes de tudo, a violência social das famílias jogadas na rua pelo não pagamento de dívidas, das demissões em massa, do fechamento de empresas e deslocalizações, das filas diante dos restaurantes populares, dos sem-teto que morrem de frio, das míseras economias em detrimento da saúde. É também a criminalização da resistência social, o aumento do poder do Estado penal em proporção inversa ao do Estado social, a instauração de um estado de exceção irrestrito sob pretexto de antiterrorismo. É, enfim, a guerra pelo acesso aos recursos energéticos, pela segurança das vias de abastecimento de gás e petróleo, por uma nova distribuição de territórios e zonas de influência.

A crise atual, a crise do presente, não é uma crise a mais que se acrescentaria à dos mercados asiáticos ou à da bolha da internet. É uma crise histórica – econômica, social, ecológica – da lei do valor. A medida de tudo pelo tempo de trabalho abstrato tornou-se, como Marx anunciara em seus manuscritos de 1857, uma medida “miserável” das relações sociais. Além da crise de confiança evocada pela vulgata jornalística, a fé no todo-poderoso mercado foi mortalmente abalada. Quando se deixa de acreditar no inacreditável, agrega-se à crise social uma crise de legitimidade ideológica e moral, que acaba por atingir a ordem política: “Um estado político em que alguns indivíduos ganham milhões enquanto outros morrem de fome poderá subsistir se a religião não estiver mais lá, com suas esperanças fora deste mundo, para explicar o sacrifício?”, perguntava Chateaubriand às vésperas das revoluções de 1848. Ele mesmo respondeu profeticamente:

Tente persuadir o pobre quando ele souber ler e não tiver mais crença, quando ele possuir a mesma instrução que você. Tente persuadi-lo de que deve se submeter a todas as privações enquanto seu vizinho possui mil vezes o supérfluo: como último recurso, terá de matá-lo.

Sob a luz ofuscante da crise, milhões de oprimidos terão de aprender a ler.”

[7] Ibidem, cap. 18.

[x] Alto funcionário francês, ex-presidente do Banco Central europeu. (N. T.)

[8] Le Monde, 25 out. 2008.

[9] Ver Jean-Marie Harribey, “L’entreprise sans usines ou la captation de la valeur”, Le Monde, 3 jul. 2001; La démence sénile du capital: fragments d’économie critique (Bègles, Éditions du Passant, 2002).

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“Nos manuscritos de 1857-1858 surge um esboço de crítica do que se chamaria hoje de produtivismo, com a noção de fuga para a frente da produção pela produção e de um desenvolvimento do consumo que não é mais função de novas necessidades sociais, mas de uma lógica autômata do mercado. A produção dominada pela busca do lucro máximo, e não pela satisfação de necessidades, conduz a um “círculo sempre ampliado de circulação”. A tendência à criação de um mercado mundial é, assim, “imediatamente dada no próprio conceito do capital”. Porém, a “produção do mais-valor baseada no crescimento e no desenvolvimento das forças produtivas” exige também a “produção de novo consumo”. Exige que:

o círculo de consumo no interior da circulação se amplie tanto quanto antes se ampliou o círculo produtivo. Primeiro, ampliação quantitativa do consumo existente; segundo, criação de novas necessidades pela propagação das existentes em um círculo mais amplo; terceiro, produção de novas necessidades e descoberta e criação de novos valores de uso. […].[d]

Em uma época em que o enorme “acúmulo de mercadoria” está bem longe da dimensão de nossos shopping centers e outros hipermercados, Marx, em antecipação aos críticos da sociedade de consumo, compreende que a lógica do lucro e da produção pela produção gera inevitavelmente um consumo quantitativamente ampliado, que diverge do desenvolvimento das necessidades humanas. A busca legítima de “novas qualidades úteis das coisas” ocorre sob forma de exploração – a palavra é cuidadosamente escolhida – desenfreada da terra, como se fosse uma oferta grátis a apetites desmedidos e passível de trabalho sem fim.

Apoiado em uma pesquisa teórica de grande fôlego, o discurso de Marx no aniversário do People’s Paper, em 1856, não é uma incursão fortuita na preocupação que seria hoje chamada de ecologista:

Hoje, tudo parece carregar em si a própria contradição. Máquinas dotadas da capacidade maravilhosa de encurtar e tornar mais fecundo o trabalho humano provocam a fome e a fadiga do trabalhador. As fontes de riqueza recém-descobertas transformam-se por estranho malefício em fontes de privação. Os triunfos da arte parecem obtidos às custas de qualidades morais. Ao mesmo tempo que o domínio da natureza se torna cada vez maior, o homem se transforma em escravo de outros homens e de sua própria infâmia. Mesmo a límpida luz da ciência não pode brilhar sobre o fundo tenebroso da ignorância. Todas as nossas invenções e progressos parecem dotar as forças materiais de vida intelectual, ao mesmo tempo que reduzem a vida humana a uma força material bruta.[e]”

[d] Idem, Grundrisse, cit., p. 332-3. (N. T.)

[e] Idem, “Discours à l’occasion de l’anniversaire du People’s Paper”, 14 abr. 1856. (N. T.)

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“Em que pensa Marx? Em seu inimigo jurado, é óbvio. 

E como pensa? Como bom especialista em perfil criminal, invade o disco rígido desse social killer para reverter contra ele sua própria lógica e exterminá-lo. Desconcertante tal estratagema para um espírito francês acostumado a perambular pelos jardins geométricos de Le Nôtre. A considerar, desde Descartes, que o homem é “mestre e dono” da natureza. A celebrar, com Auguste Comte, a superioridade do positivo sobre o negativo. A só admitir alternativas simples, o princípio da não contradição, a lógica binária do terceiro excluído. A repetir, com qualquer jornalista ou ministro do Interior, que fatos são fatos, são obstinados e falam por si.

Eis que um indivíduo lhes diz que os fatos nunca falam por si. Que tudo depende do olhar, da luz que os ilumina, do contexto, da perspectiva do todo. Que as aparências não são o reflexo fiel da essência, tampouco um simples véu, porque são o parecer do ser. Que não há o acaso de um lado e a necessidade do outro, separados comportadamente, mas que a necessidade tem seus acasos e o acaso, sua necessidade. Que o produtor também é um consumidor, que o salário, que parece ao capitalista individual um puro custo de produção, também é, para o capital em geral, uma demanda solvente. Que não existe oposição irredutível entre grevista e usuário, porque o usuário de hoje é o grevista de amanhã e vice-versa.

Enfim, é exasperante esse barbudo que, quando tudo parece simples, afirma ser mais complicado. E que, como nos contos da tradição judaica, responde às perguntas com outras perguntas.”

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“Por ocasião da crise econômica estadunidense de 1857, o reencontro “acidental” de Marx com a lógica hegeliana o incita à elaboração de “uma concepção científica própria”. À escuta dos espasmos e lapsos do capital, essa concepção não tem a missão de dizer a verdade derradeira, mas de empreender um trabalho incansável de desmistificação – do Estado, do Direito, da História, da Economia. E da própria Ciência! A crítica é esse trabalho reflexivo incessante da consciência contra suas próprias representações religiosas, suas próprias ilusões e seus próprios erros.

Na superfície enganosa do processo de circulação, na praça movimentada do mercado, onde tudo se troca e se equivale, o capital aparece como Kapitalfetisch – o fetiche capitalista do capital fetichizado. Como capital portador de juros, em que dinheiro parece fazer dinheiro, ele assume sua forma mais característica e “mais alienada”. Resulta uma mistificação levada ao extremo, uma coisificação generalizada das relações sociais. Um mundo encantado onde os seres andam de ponta-cabeça, onde o senhor Capital e a senhora Terra dançam fantasticamente em sua ronda macabra. Esse mundo, em que os agentes da produção se sentem em casa em suas “formas ilusórias” de todos os dias, é o reino da personalização das coisas e da coisificação das pessoas, o da religiosidade diabólica da vida cotidiana moderna.

Esse fetichismo não é um simples travestismo da realidade. Se fosse esse o caso, seria simplesmente uma imagem malfeita do real, e um bom par de óculos bastaria para corrigir a vista e desvendar o objeto tal como é. A ciência comum bastaria para perscrutar a verdade oculta. Mas a representação fetichizada entretém em permanência, no espelho deformante de sua relação, a ilusão recíproca do sujeito e do objeto. Não é mais questão de se contentar com uma ciência que dissipe de uma vez por todas a falsa consciência e garanta a soberania lúcida do indivíduo racional, mestre e possuidor da natureza tanto quanto de si mesmo. Porque essa ilusão não nasce apenas na mente. Ela resulta de relações sociais reais. Enquanto estas perdurarem, a alienação poderá ser combatida na prática, mas não vencida. Em um mundo atormentado pelo fetichismo mercantil generalizado, não há saída da ideologia dominante pelo arco triunfal da Ciência. A crítica reconhece a própria incapacidade de possuir a verdade e declarar, de uma vez por todas, a verdade derradeira. Seu combate sempre reiniciado contra as ervas daninhas da loucura e do mito conduz unicamente a clareiras, onde o evento rasga temporariamente o véu da obscuridade.

Para a crítica, portanto, nenhum repouso. Ela nunca está quite com a ideologia. O melhor que pode fazer é resistir, afrontar, zombar e ironizar, criando condições para um desencanto e uma desilusão. A sequência não mais se desenrola na mente, mas na luta. Lá onde a crítica das armas substitui as armas da crítica. Onde a teoria se torna prática. E a razão, estratégica.”

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“Para Marx, suas descobertas “científicas” originais residem:

·        na demonstração das formas gerais ainda indiferenciadas do mais-valor e do duplo caráter do trabalho;

·        na compreensão do capital como relação social;

·        na compreensão de que o valor de uso não se anula no valor de troca, mas conserva sua importância específica.

Essas descobertas desnudam a importância:

·        da forma geral (da estrutura) em relação ao caos da “macedônia” empírica;

·        da relação social inscrita na totalidade do movimento.

Sua “crítica da economia política” inaugura, assim, outra maneira de “fazer ciência”, irredutível tanto à fundação de uma nova ciência positiva da economia quanto ao retorno a uma filosofia especulativa. Teoria revolucionária do fetichismo, enfrenta miragens para vencer sortilégios.

Marx pratica uma lógica dinâmica das determinações, e não uma lógica estática e classificatória das definições. Não procura colar etiquetas sobre as coisas para arrumá-las em um dicionário, e sim captar as relações entre os fenômenos sociais inscritos em uma totalidade em movimento. Ele é bem claro sobre este ponto: “não são definições em que se classificariam as coisas, mas funções determinadas que se exprimem em categorias determinadas”. Para descartar qualquer equívoco, Engels explica insistentemente aos leitores que procurariam a qualquer preço, nos textos de Marx, definições simples e tranquilizadoras, “lá onde, na realidade, ele desenvolve”:

De uma maneira geral, tem-se o direito de procurar em seus escritos definições claras, válidas e conclusivas. É evidente que, no momento em que as coisas e suas influências recíprocas são concebidas não como fixas, mas como variáveis, os próprios conceitos também estão sujeitos a variações e mudanças. Nessas condições, não estarão contidos em uma definição, mas desenvolvidos conforme o processo histórico de sua formação.[h]

Advertência àqueles que tentam questionar Marx para que reconheça uma definição atemporal de classes ou de trabalho, e que se prendem eles próprios nos grilhões de definições rígidas. ”

[h] Friedrich Engels, “Prefácio”, em O capital, Livro III. (N. T.)

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“Apesar da função social da fotografia e da mise-en-scène, a iconografia de Marx em vida mantém certo grau de familiaridade e intimidade, revestido ulteriormente de uma espécie de crosta pela grosseira iconografia e fanática hagiografia stalinistas, que orquestraram a difusão internacional de um novo culto. No universo “politicamente correto” da burocracia vitoriosa, a santa imagem do pai fundador deveria ser ao mesmo tempo tranquilizadora, ameaçadora e imaculada. Por esse motivo, as biografias purificadas de qualquer alusão a um provável filho bastardo não reconhecido, a discrição pudica a respeito dos gracejos machistas de Marx ou o silêncio sobre os deslizes homofóbicos de Engels[2]: apesar de inovadores e audaciosos teórica e politicamente, eram homens de seu tempo e de seus preconceitos, porque a verdade é que mentalidades não mudam no mesmo ritmo que leis e técnicas.

A sacralização burocrática de indivíduos humanamente falíveis produziu a estatuária e as imagens pitorescas de um Marx Júpiter olímpico, autoritário, dominador, portador de novas Tábuas da Lei, imitando o ar severo e a barba emaranhada do Moisés de Michelangelo, cujo olhar de pedra aterrorizou Freud em pessoa. Quantos cartazes e vinhetas, panos de fundo dominando as tribunas de congressos pletóricos, peitos cobertos de condecorações, desfiles comemorativos e berloques kitsch ornaram a sacrossanta procissão dinástica – Marx-Engels-Lenin-Stalin! Esses perfis sobrepostos conferiam uma legitimidade genealógica inspirada no Gênesis bíblico de Adão a Noé: Marx teria gerado Lenin, que teria gerado Stalin, tal como Adão gerou Seth, que gerou Enoch, que gerou Kenan. E assim por diante, sem ruptura nem descontinuidade, até o paraíso reconquistado ou o fim dos tempos.

A destruição dos ícones burocráticos e a derrubada dos ídolos de gesso são uma redenção: uma maneira de libertar Marx dos dogmas que o mantiveram acorrentado durante quase um século.

Sua obra aberta, sem limites, revolve em profundidade o espírito de uma época. Crítica em movimento de um sistema dinâmico, O capital, apesar das múltiplas remodelagens de seu plano inicial, era inacabável. Não porque a vida de seu autor tenha sido demasiadamente curta, mas porque era uma vida humana, e o objeto de sua crítica, em perpétuo movimento, sempre o conduzia mais longe. (…)

A atualidade de Marx é a do próprio capital. Porque, se ele foi um excepcional pensador de sua época, se pensou com seu tempo, também pensou contra seu tempo e além dele, de maneira intempestiva. Seu corpo a corpo, teórico e prático, com o inimigo irredutível, o poder impessoal do capital, transporta-o até nosso presente. Sua inatualidade de ontem faz sua atualidade de hoje.

A (re)descoberta de um Marx desvencilhado de seu culto e seus fetiches é ainda mais necessária porque uma parte essencial de sua obra (nada menos que os manuscritos parisienses de 1848, A ideologia alemã, os manuscritos de 1857-1858, as Teorias da mais-valia, os Livros II e III de O capital e uma abundante correspondência) foi publicada a título póstumo. A recepção estende-se por décadas, na cadência de traduções frequentemente tardias e imperfeitas. Desse modo, desconhecida pelo movimento trabalhista francês renascente sob o Segundo Império, a primeira tradução francesa do Manifesto Comunista só foi divulgada em 1872, em O Socialista, jornal de língua francesa publicado… nos Estados Unidos [3]!

Ora, a herança de uma obra, principalmente se for dirigida à ação prática, é irredutível a seu texto. É a história de suas interpretações e recepções, inclusive das infidelidades, que por vezes são a melhor maneira de lhe permanecer fiel. Como também escreve Derrida: “A herança não é um bem, uma riqueza que se recebe e se guarda no banco; a herança é a afirmação ativa, seletiva, que pode ser às vezes reanimada e reafirmada mais por seus herdeiros ilegítimos do que pelos legítimos”[4].

É, de certo modo, uma herança sem proprietários nem manual de instruções.

Uma herança à procura de autores.”

[2] Ver principalmente a carta de Engels de 22 de junho de 1869: “Os pederastas começam a se contar e pensam que formam um poder dentro do Estado. Só falta a organização, mas parece que ela já existe secretamente. E, como eles têm homens importantes em todos os velhos partidos, sua vitória é inevitável. Guerre aux cons, paix aux trous-du-cul [Guerra aos imbecis, paz aos bundões], diz-se agora […]. Para os que tomam a dianteira, como nós, com nossa atração ingênua pelas mulheres, as coisas não correrão bem”.

[3] Ver Philippe Videlier, La proclamation du Nouveau Monde, seguida do Manifeste du Parti Communiste (Vénissieux, Paroles d’Aube, 1995).

[4] Jacques Derrida, Marx en jeu (Paris, Descartes & Cie., 1997).

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“O florescimento desses “mil marxismos” aparece como um momento de liberação, em que o pensamento se evade de seus grilhões doutrinários. Significa a possibilidade de recomeçar, após as experiências traumáticas de um século trágico, mas sem fazer do passado uma tábula rasa. Plurais e atuais, esses marxismos comprovam uma viva curiosidade. Porém, sua expansão interroga se, apesar das diferenças e fragmentações disciplinares, podem constituir um programa de pesquisas que compartilhe o mesmo nome. Em outras palavras, pode-se ainda falar de marxismo no singular ou é melhor se contentar, conforme a fórmula do filósofo catalão Fernández Buey, com um Marx sem “ismos” ou um marxismo desconstruído? “Qual é o consenso mínimo”, pergunta André Tosel, “para que se possa chamar uma interpretação de legitimamente marxista?” A pluralidade dos “mil marxismos”, presentes e futuros, coloca a “questão do acordo teórico mínimo em um campo de desacordos legítimos”, para que essa generosa multiplicação não conduza a um esmigalhamento do núcleo teórico e à sua dissolução no caldo de cultura pós-moderno.

O longo jejum teórico do período stalinista aguçou apetites legítimos de descoberta e invenção. As amarras do marxismo de Estado e as excomunhões inquisitoriais também alimentaram uma aspiração legítima à liberdade de pensamento, de que foram precursores os “grandes hereges” do período precedente (Ernst Bloch, o Lukács tardio, Jean-Paul Sartre, Louis Althusser, Henri Lefebvre e Ernest Mandel). O risco agora parece inverso: que mil marxismos coexistam polida e consensualmente em uma paisagem pacificada. Esse perigo de ecletismo caminha junto com a reabilitação institucional de um Marx conivente com as civilidades de uma marxologia acadêmica sem alcance subversivo. Em Espectros de Marx, Derrida alertou contra essa tentação de “jogar Marx contra o marxismo, a fim de neutralizar e ensurdecer o imperativo político na exegese tranquila de uma obra catalogada”.

O fundamento dessa ameaça reside na discordância entre o ritmo do renascimento intelectual e a lentidão da remobilização social, na cisão perpetuada entre teoria e prática, que há muito tempo caracteriza o marxismo ocidental[5]. Consequentemente, ao reivindicar sua unidade, o marxismo se submete a um duplo critério de julgamento. Se não foi seriamente refutado no plano teórico, foi incontestavelmente desgastado por graves derrotas políticas do movimento trabalhador e das políticas de emancipação do século passado. Seu programa de pesquisas continua sólido. Mas só haverá futuro se, em vez de se refugiar na clausura universitária, puder estabelecer uma estreita ligação com a prática renovada dos movimentos sociais e com a resistência à globalização imperialista.

Aí efetivamente se exprime, com grande impacto, a atualidade de Marx: sua crítica da privatização do mundo, do fetichismo da mercadoria como espetáculo, da fuga mortífera na aceleração da corrida pelo lucro, da conquista insaciável de espaços submetidos à lei impessoal do mercado. A obra teórica e militante de Marx nasceu na época da globalização vitoriana. O progresso dos transportes foi, à época, o equivalente da internet: o crédito e a especulação tiveram um desenvolvimento impetuoso; foram celebradas as bodas bárbaras do mercado e da tecnologia; surgiu uma “indústria do massacre”… Mas, dessa grande transformação, nasceu também o movimento trabalhador da Primeira Internacional. A “crítica da economia política” é o deciframento indispensável dos hieróglifos da modernidade e o ato inaugural de um programa de pesquisas sempre fecundo.

A crise agora exposta da globalização capitalista e a derrocada de seu discurso apologético constituem o fundamento da renascença dos marxismos[6]. Esse florescimento responde frequentemente às exigências de uma pesquisa livre e rigorosa, mesmo que se acautele contra as armadilhas da exegese acadêmica. Mostra a que ponto os espectros de Marx rondam nosso presente e como seria errôneo contrapor uma idade de ouro imaginária nos anos 1960 à esterilidade dos marxistas contemporâneos. O trabalho molecular da teoria é provavelmente menos visível do que antes. Não traz aos mestres pensadores de hoje a mesma notoriedade dos antigos. É certamente mais denso, mais coletivo, mais livre e mais secular. Se os anos 1980 foram razoavelmente desérticos, o novo século promete ser bem mais do que um oásis.

Fernand Braudel disse que, para acabar com o marxismo, seria necessário um incrível policiamento do vocabulário. Queiramos ou não, o pensamento de Marx agora pertence à prosa da nossa era – por mais que desagrade àqueles que, como o célebre burguês, fazem prosa sem saber[a]. Ser fiel a essa mensagem crítica é sustentar que nosso mundo da concorrência e da guerra de todos contra todos não pode ser reformado somente com alguns retoques, que é necessário subvertê-lo, e com mais urgência do que nunca. Para compreendê-lo a fim de mudá-lo, em vez de simplesmente comentá-lo ou denunciá-lo, o pensamento de Marx e o “trovão” de O capital, pouco audível em sua época, são não um ponto de chegada, mas um ponto de partida e de passagem obrigatório à espera de ser transposto.”

[5] Ver Perry Anderson, Considerações sobre o marxismo ocidental/Nas trilhas do materialismo histórico (São Paulo, Boitempo, 2004).

[6] Dão testemunho os trabalhos de Robert Brenner e Mike Davis nos Estados Unidos, uma intensa atividade editorial na Ásia e na América Latina, uma rica produção na própria França, com pesquisas militantes sobre a lógica da globalização. Sob o impulso de David Harvey, a exploração de um “materialismo histórico-geográfico” retoma as pistas abertas por Henri Lefebvre sobre a produção do espaço. Estudos feministas alimentam a reativação da reflexão sobre relação de classes sociais, gênero e identidade comunitária. Os trabalhos de John Bellamy Foster, Mike Davis, Paul Burkett conferem fundamento teórico ao ecossocialismo. Estudos culturais, ilustrados principalmente pelos trabalhos de Fredric Jameson nos Estados Unidos e Terry Eagleton na Grã-Bretanha, abrem novas perspectivas para a crítica das representações, ideologias e formas estéticas. A crítica da filosofia política recupera o fôlego com os estudos de Domenico Losurdo e Ellen Wood sobre o liberalismo e o colonialismo, com a redescoberta de grandes personagens como György Lukács e Walter Benjamin; com a investigação de uma historiografia crítica sobre a Revolução Francesa; com as leituras renovadas do corpus marxista de jovens filósofos; com as interrogações de juristas práticos e universitários sobre as metamorfoses e incertezas do direito; com as controvérsias, inspiradas principalmente pela ecologia social, sobre o papel das ciências e das técnicas e sobre seu controle democrático; com uma interpretação original da psicanálise lacaniana; com a confrontação da herança marxista com obras como as de Hannah Arendt, Habermas e Bourdieu.

[a] Alusão a Molière, O burguês fidalgo. (N. T.)

Redação

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