Lista de Livros: Para a Crítica da Economia Política, de Karl Marx

“Enquanto nos séculos XVI e XVII a ganância universal pelo ouro arrastava povos e príncipes a cruzadas transoceânicas em busca do Santo Graal de ouro, os primeiros intérpretes do mundo moderno proclamavam como única riqueza o ouro e a prata, isto é, o dinheiro."

Seleção de Doney

Lista de Livros: Para a Crítica da Economia Política, de Karl Marx

Editora: Abril Cultural

Tradução: Edgard Malagodi

Opinião: bom

Páginas: 104

  

 “À primeira vista, a riqueza burguesa aparece como uma enorme acumulação de mercadorias, e a mercadoria isolada como seu modo de ser elementar. Mas toda mercadoria se apresenta sob o duplo ponto de vista de valor de uso e valor de troca.1

Em primeiro lugar, a mercadoria é, na expressão dos economistas ingleses, “uma coisa qualquer, necessária, útil ou agradável para a vida”, objeto de necessidades humanas, meio de vida no sentido mais amplo da palavra. Esse modo de ser da mercadoria como valor de uso coincide com sua existência natural palpável. Trigo, por exemplo, é um valor de uso particular que se diferencia dos valores de uso algodão, vidro, papel etc. O valor de uso só tem valor para o uso, e se efetiva apenas no processo de consumo. O mesmo valor de uso pode ser utilizado de modos diversos. Contudo, a soma de suas possíveis utilidades está resumida em seu modo de existência como coisa com propriedades determinadas. Além disso, o valor de uso é determinado não só qualitativa como quantitativamente. Segundo sua propriedade natural, diversos valores de uso possuem medidas diferentes, como fanga de trigo, resma de papel, vara de tecido.

Qualquer que seja a forma social da riqueza, os valores de uso formam sempre seu conteúdo, que é, inicialmente, indiferente a essa forma. É impossível comprovar pelo sabor do trigo quem o cultivou, servo russo, camponês parcelário francês ou capitalista inglês. Ainda que seja objeto de necessidades sociais, e estar, por isso, em contexto social, o valor de uso contudo não expressa nenhuma relação social de produção. Tomemos uma mercadoria, um diamante, por exemplo, como valor de uso. No diamante não se pode notar que ele é uma mercadoria. Onde quer que sirva como valor de uso, no colo de uma dama, onde tem uma finalidade estética na mão de um cortador de vidro, desempenhando uma função técnica, é sempre diamante e não mercadoria. Ser valor de uso parece ser pressuposição necessária para a mercadoria, mas não reciprocamente, pois ser mercadoria parece ser determinação indiferente para o valor de uso. O valor de uso em sua indiferença frente à determinação econômica formal, isto é, valor de uso em si mesmo, fica além do campo de investigação da Economia Política. Apenas entra em seu círculo quando é determinação formal. O valor de uso é diretamente a base material onde se apresenta uma relação econômica determinada – o valor de troca.

O valor de troca aparece primeiramente como relação quantitativa em que valores de uso são trocáveis entre si. Em tal relação formam eles a mesma grandeza de troca. Assim é possível que um volume de Propércio e oito onças de rapé sejam o mesmo valor de troca, apesar dos valores de uso incompatíveis do tabaco e da elegia. Como valor de troca, um valor de uso é exatamente tanto valor quanto o outro, bastando apenas estar a mão na porção certa. O valor de troca de um palácio pode ser expresso em determinado número de latas de graxa para botas. Inversamente, fabricantes londrinos de graxa têm o valor de troca de suas muitíssimas latas expresso em palácios. Totalmente indiferente, portanto, ao seu modo natural de existência, e sem consideração à natureza específica da necessidade para a qual são valores de uso, as mercadorias cobrem-se umas as outras em quantidades determinadas, substituem-se entre si na troca, valem como equivalentes e, apesar de sua aparência variegada, apresentam a mesma unidade.

Os valores de uso são imediatamente meios de subsistência. Mas, inversamente, esses meios de subsistência são eles próprios produtos da vida social, resultado de força vital humana gasta, trabalho objetivado. Como encarnação do trabalho social, todas as mercadorias são cristalizações da mesma unidade. É preciso considerar agora o caráter determinado dessa unidade, isto é, do trabalho que se apresenta no valor de troca.

Suponhamos que uma onça de ouro, uma tonelada de ferro, um quintal de trigo e vinte varas de seda sejam valores de troca de igual grandeza. Como tais equivalentes, nos quais se extinguiu a diferença qualitativa de seus valores de uso, apresentam volume igual do mesmo trabalho. O trabalho que uniformemente se objetivou neles deve ser ele próprio uniforme, sem diferenças, trabalho simples, para o qual é tão indiferente aparecer em forma de ouro*, ferro, trigo ou seda, como é indiferente ao oxigênio encontrar-se na ferrugem, na atmosfera, no suco de uvas ou no sangue dos seres humanos. Mas cavar em busca de ouro, extrair ferro da mina, cultivar trigo e tecer a seda são modos de trabalho qualitativamente diversos entre si. De fato, o que concretamente aparece como diversidade de valores de uso aparece em processo como diversidade da atividade que produz os valores de uso. Sendo indiferente frente a matéria particular dos valores de uso, o trabalho que põe o valor de troca é, por isso, indiferente frente a forma particular do próprio trabalho. Diversos valores de uso são além disso produtos da atividade de indivíduos distintos, portanto resultado de trabalhos individualmente diferentes. Mas, como valores de troca, apresentam trabalho igual, sem diferenças, isto é, trabalho em que a individualidade dos trabalhadores se extinguiu. Trabalho que põe valor de troca e, por isso, trabalho abstratamente geral.”

1: ARISTÓTELES. De República. Edit. I. Bekker Oxonii, 1837. Livro Primeiro, cap. IX – “Pois todo o bem pode servir para dois usos… Um é próprio à coisa como tal, mas o outro não o é, assim, uma sandália pode servir como calçado, mas também pode ser trocada. Trata-se, nos dois casos, de valores de uso da sandália, porque aquele que troca a sandália por aquilo de que necessita, alimentos, por exemplo, serve-se também da sandália como sandália. Contudo, não é este seu modo natural de uso. Pois a sandália não foi feita para a troca. O mesmo se passa com os outros bens.

*: O ouro era a moeda conversível da época de Marx, posto hoje ocupado pelo dólar.

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“O âmbito das mercadorias nunca se fecha definitivamente, mas, ao contrário, se expande constantemente.”

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“A análise da mercadoria através da redução desta a um trabalho de dupla forma (de um lado, a redução) do valor de uso a trabalho real, isto é, à atividade produtiva aplicada a um fim, de outro, do valor de troca a tempo de trabalho, ou seja, a trabalho social igual, é o resultado crítico final de mais de século e meio de pesquisas da Economia Política clássica.”

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“A principal dificuldade da análise do dinheiro é vencida quando se compreende que o dinheiro tem a sua origem na própria mercadoria. Desse pressuposto, apenas resta conceber nitidamente as idades que lhe são próprias, o que é dificultado em certa medida pelo fato de que todas as relações burguesas aparecem transformadas em ouro ou prata, aparecendo como relações monetárias. E a forma dinheiro parece possuir, por conseguinte, um conteúdo infinitamente variado que lhe é estranho.”

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“Enfim, o processo de circulação efetivo aparece não como totalidade de metamorfoses de uma mercadoria, não como o seu movimento através de fases opostas, mas sim como mero agregado de numerosas compras e vendas, processando-se casualmente uma ao lado, ou depois, da outra. Assim, a determinidade formal desse processo está completamente apagada tanto mais quanto todo ato individual de circulação, por exemplo, a venda, é simultaneamente o seu contrário, a compra e vice-versa. Por outro lado, o processo de circulação é o próprio movimento das metamorfoses do mundo das mercadorias e deve, por isso, refleti-lo, reproduzi-lo na totalidade de seu movimento. Como se dá essa reprodução, veremos na próxima seção. Aqui cabe apenas observar que em M-D-M* os dois extremos M não estão na mesma relação formal com D. O primeiro M é uma mercadoria particular e relaciona-se com o dinheiro, como mercadoria geral, enquanto o dinheiro é a mercadoria geral e se relaciona com o segundo M que é uma mercadoria individual Daí ser possível traduzir M-D-M para o plano da lógica abstrata na forma silogística P-G-I em que a particularidade constitui o primeiro extremo, a generalidade o termo médio, e a individualidade o último extremo.”

*: M = Mercadoria; D = Dinheiro.

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“Se a troca de forma das mercadorias aparece como mera troca de lugar do dinheiro e se a continuidade do movimento de circulação fica inteiramente a cargo do dinheiro, pois a mercadoria não dá nunca mais de um passo em direção oposta ao dinheiro, enquanto este empreende constantemente o segundo passo pela mercadoria, e diz B onde a mercadoria disse A, todo movimento parece partir do dinheiro, embora seja a mercadoria que, na venda, puxe o dinheiro de seu lugar e que faz, portanto, o dinheiro circular do mesmo modo que, na compra, ela circula por ação do dinheiro. Além disso, como o dinheiro sempre se defronta com ela no mesmo relacionamento como meio de compra, mas como tal só movimenta as mercadorias através da realização de seus preços, o movimento total da circulação aparece de tal forma que o dinheiro troca de lugar com as mercadorias, realizando os seus preços simultaneamente, seja em atos de circulação particulares que se processam um ao lado do outro, seja sucessivamente, quando a mesma peça de moeda realiza diferentes preços = mercadorias, um após ao outro. Se considerarmos por exemplo, M-D-M’-D-M”-D-M’” – etc., sem levar em conta os movimentos qualitativos que se tornaram irreconhecíveis no processo de circulação efetivo, só constataremos a mesma operação monótona. D, depois de ter realizado o preço de M realiza sucessivamente os de M’-M” – etc., e as mercadorias M, M’, M” etc. colocam-se sempre no lugar abandonado pelo dinheiro. Parece, portanto, que o dinheiro faz circular as mercadorias ao realizar seus preços. Nessa função de realizar os preços, o próprio dinheiro circula continuamente, ora trocando simplesmente de lugar, ora percorrendo um trajeto da circulação, ora descrevendo um pequeno círculo, onde coincide o ponto de partida com o ponto de chegada Como melo de circulação, o dinheiro tem sua própria circulação. Por isso, o movimento de forma das mercadorias em processo aparece como o próprio movimento do dinheiro, movimento mediador da troca das mercadorias imóveis por si mesmas. O movimento do processo de circulação das mercadorias se apresenta, portanto, no movimento do dinheiro como meio de circulação – no curso do dinheiro.

Como os possuidores de mercadorias apresentaram os produtos de seus trabalhos privados como produtos do trabalho social ao transformarem uma coisa, o ouro, no modo de ser imediato do tempo de trabalho geral e, por isso, em dinheiro, o próprio movimento generalizado de seus trabalhos privados, pelo qual estes operam seu metabolismo, surge agora para eles como movimento próprio de uma coisa, como circulação do ouro. Para os possuidores de mercadorias, o próprio movimento social é, por um lado, uma necessidade exterior e, por outro, um processo mediador puramente formal que permite a cada indivíduo retirar, em troca do valor de uso que lança na circulação, outros valores de uso da mesma dimensão de valor. O valor de uso da mercadoria começa com sua saída da circulação, enquanto o valor de uso do dinheiro, como meio de circulação, consiste em que circule. O movimento da mercadoria na circulação é apenas um momento fugidio, enquanto o incessante deslocar-se em torno dela converte-se na função do dinheiro.”

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“O dinheiro, diferente de moeda, é o resultado do processo de circulação na forma M-D-M e constitui o ponto de partida do processo na forma D-M-D, isto é, a troca de dinheiro por mercadoria, para trocar mercadoria por dinheiro. Na primeira forma, é a mercadoria e na segunda, é o dinheiro que constitui o ponto de partida e o ponto final desse movimento. Na primeira forma, o dinheiro atua como mediador da troca de mercadorias, na segunda, é a mercadoria que serve ao dinheiro como mediador de seu próprio processo de vir-a-ser dinheiro. O dinheiro que aparece na primeira forma como simples meio, aparece na segunda como meta final da circulação, enquanto a mercadoria, que na primeira aparece como meta final, na segunda forma aparece como simples meio. Se o próprio dinheiro já é o resultado da circulação M-D-M, na forma de D-M-D, o resultado aparece ao mesmo tempo como seu ponto de partida. Enquanto é em M-D-M que se dá o metabolismo das mercadorias, é o modo de ser formal da própria mercadoria resultante desse primeiro processo que constitui o conteúdo efetivo do segundo processo D-M-D.

Na forma M-D-M ambos os extremos são mercadorias de idêntica grandeza de valor, mas ao mesmo tempo são valores de uso qualitativamente diferentes. A troca M-M é o metabolismo efetivo. Na forma D-M-D, ao contrário, ambos os extremos são igualmente ouro de mesma grandeza de valor. Trocar ouro por mercadoria, para trocar mercadoria por ouro, ou, se consideramos o resultado D-D, trocar ouro por ouro parece um absurdo. Mas se traduzimos D-M-D na fórmula: comprar para vender, o que não significa outra coisa do que trocar ouro por ouro, valendo-se de um movimento mediador, reconhece-se logo a forma dominante da produção burguesa. Todavia, na prática não se compra para vender: compra-se barato, para vender mais caro. Troca-se dinheiro por mercadoria para trocar em seguida a mesma mercadoria por uma quantidade maior de dinheiro, de tal forma que os extremos D-D, se não são diferentes qualitativamente, ao menos o são quantitativamente. Uma tal diferença quantitativa pressupõe a troca de não-equivalentes. Além do mais, mercadoria e dinheiro em si nada mais são que formas opositivas da própria mercadoria: são portanto, modalidades distintas da mesma grande valor. O circuito D-M-D oculta portanto, sob as formas de dinheiro e mercadoria, relações de produção mais desenvolvidas, e constitui dentro da circulação nada mais do que um reflexo de um movimento superior.”

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“Enquanto nos séculos XVI e XVII – a infância da sociedade burguesa moderna – a ganância universal pelo ouro arrastava povos e príncipes a cruzadas transoceânicas em busca do Santo Graal de ouro, os primeiros intérpretes do mundo moderno, os promotores do sistema monetário do qual o sistema mercantil é apenas uma variante – proclamavam como única riqueza o ouro e a prata, isto é, o dinheiro. Expressavam, corretamente, a vocação da sociedade burguesa para fazer dinheiro, isto é, formar, do ponto de vista da circulação simples de mercadorias, o eterno tesouro, o qual não roem nem a traça nem a ferrugem. Dizer que uma tonelada de ferro ao preço de 3 libras esterlinas é uma grandeza de valor igual a 3 libras esterlinas de ouro não constitui uma resposta ao sistema monetário. Trata-se aqui, não da grandeza do valor de troca, mas de sua forma adequada. Se o sistema monetário e mercantil distingue o comércio mundial e os ramos particulares do trabalho nacional, que desembocam diretamente no comércio mundial, como as únicas fontes autênticas da riqueza ou do dinheiro, é necessário ter em conta que nessa época a maior parte da produção nacional se movia sob formas feudais e constituía para os próprios produtores a fonte imediata de subsistência. Os produtos, em grande parte, não se transformavam em mercadoria, nem, portanto, em dinheiro; não entravam no metabolismo social geral; não apareciam, portanto, como objetivação do trabalho geral abstrato, e, de fato, não criavam riqueza burguesa. O dinheiro, como finalidade da circulação, é o valor de troca ou riqueza abstrata, e não um elemento material qualquer da riqueza que constitui o fim determinante e motivo animador da produção. Como era de se esperar, no limiar da produção burguesa, aqueles profetas desconhecidos estavam agarrados à forma sólida, palpável e brilhante do valor de troca, a sua forma de mercadoria geral em oposição a todas as mercadorias particulares. Naquela altura a esfera da economia burguesa propriamente dita era a esfera da circulação de mercadorias. Assim do ponto de vista dessa esfera elementar que julgavam todo o complicado processo da produção burguesa e confundiam dinheiro com capital. A luta incessante de economistas modernos contra o sistema monetário e mercantil provém de que esse sistema propaga de um modo bastante ingênuo o segredo da produção burguesa, ou seja, o fato de que esta se encontra sob o domínio do valor de troca. Ricardo observa algures, ainda que seja para fazer disso uma aplicação falsa, que mesmo nas épocas de fome se importam cereais, não porque a nação passa fome mas porque o negociante de trigo ganha dinheiro. Na crítica que faz ao sistema monetário e mercantil, a economia política moderna erra ao combater esse sistema como se fosse uma simples ilusão, uma teoria falsa, não reconhecendo nele a forma bárbara do seu princípio fundamental. Além disso, esse sistema não só preserva seu direito histórico como também seu pleno direito de cidadania em determinadas esferas da economia moderna. Em todas as etapas do processo burguês de produção, nas quais a riqueza reveste a forma elementar da mercadoria, o valor de troca assume a forma elementar do dinheiro, e em todas as fases do processo de produção a riqueza volta a revestir continuamente, ainda que seja por um momento, a forma elementar geral da mercadoria. Mesmo na mais desenvolvida economia burguesa as funções específicas do ouro e da prata como dinheiro, diferentemente de sua função como meio de circulação, e em oposição as demais mercadorias, não são anuladas, mas apenas restringidas; por isso o sistema monetário mercantil preserva o seu direito. O fato católico do ouro e da prata, como encarnação imediata do trabalho social, e por isso, como modo de ser da riqueza abstrata confrontarem-se com as demais mercadorias profanas, fere naturalmente o pudor protestante da economia burguesa que, por temor aos preconceitos do sistema monetário, perde, por muito tempo, a faculdade de julgar os fenômenos da circulação monetária.”

Redação

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