2016 foi o ano da submissão do Direito, “só a vergonha nos libertará”, diz Streck

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Por Lênio Streck

No Conjur

A substituição do direito pela moral (ou por opiniões pessoais, ideológicas) tem enfraquecido sobremodo a democracia. Há um livro interessante de Kyame Appiah, O Código de Honra, em que mostra como algumas práticas foram abandonadas e o valor do constrangimento. Em um parafraseio da tese de Appiah, é possível afirmar que foi o constrangimento a arma mais poderosa. Com efeito, ele diz que a causa do fim dos pés atados das chinesas foi a honra (no sentido da desonra provocada pela prática em relação ao observador externo) e não a lei ou a religião.

Durante mais de mil anos os pés das meninas chinesas eram atados, para que não crescessem e ficassem pequenos e delicados, em torno de 7,5 cm. A prática durou mais de mil anos e acabou em 20. Appiah pesquisou e descobriu que outros países estavam se inteirando desse hábito chinês e o repudiavam. Isso constrangeu enormemente os chineses.  E foi decisivo. Assim também ocorreu com os duelos na Inglaterra. Se a prática de atar os pés era vergonhosa, a dos duelos passou a ser vista como ridícula. E ambas acabaram. Ele diz também que no Brasil, a escravidão no início era normal, depois, num curto período ficou “menos normal” e, em seguida, algo abjeto, a ponto de netos não entenderem como seus avôs foram capazes de escravizar. No século XIX, um funcionário chamado Kang consegue convencer o establishment chinês de que a prática de atar os pés era, além de todos os males, ridícula e envergonhante. E o fez comparando outros povos que não amarravam pés.

Talvez no Brasil as péssimas práticas de não levarmos a sério a Constituição possa um dia ser revertida porque ela — essa prática — nos envergonha e, porque, para outros povos, soa como ridícula. E esse deverá nos causar constrangimentos tais que abandonaremos essa prática. O mesmo se diga em relação ao patrimonialismo. Quem sabe? Não esqueçamos que “a prática” de substituir o direito por juízos morais também, já por si, é uma visão moral, por mais (imoral e) paradoxal que isso possa parecer. E essa “prática de substituir o direito pela moral” deve ser enfrentada. Democracias se fazem com leis e constituições feitas na esfera pública e respeitadas pelos aplicadores. Não existe democracia quando a lei é substituída pelos juízos particularistas (que são juízos morais). No fundo, isso devia nos envergonhar. Papel da doutrina? Simples: criar os constrangimentos para extinguir essa prática.

Por isso, esta coluna natalina é uma insistência nos pontos que venho batendo. Venho tentando criar códigos de honra para acabar com práticas que vêm fragilizando nossa democracia e nosso país. Digo isto para lembrar que o ano de 2016 ficará marcado como o ano mais jurídico-canibal da história do Direito. O ano em que a comunidade jurídica se portou como a acídia, o animal marinho suprassumo do canibal: aninha-se em um canto confortavelmente e consome toda a sua energia. Quando não há mais energia, devora o próprio cérebro. Eis a alegoria do homo jurídicus. Profetas do passado. Correm no Facebook para dizerem que aprovaram um texto na Faculdade do Balão Mágico. Ou que colocaram as notas no mural. Invadem a minha página para apresentarem um livro com perguntas e respostas de concursos públicos (que, aliás, estão acabando por culpa dos próprios juristas).

Quem está por trás destas práticas que fragilizam o Direito? Os próprios juristas. As carreiras jurídicas. E os advogados, é claro. E os professores. E parcela expressiva da doutrina. Em vez de apoiarem um grau mínimo de autonomia do Direito, praticam o canibalismo. Como pagãos epistêmicos, tece(ra)m loas aos que descumpriram a Constituição. Grita(ra)m “lá vem o novo”, quando começaram a atropelar as leis e a Constituição. Mal sabiam que ali estava o ovo da serpente.

O homo juridicus pindoramense trocou o direito pela moral e pela política e ganhou de presente um enorme pacote econômico. Bingo. Bateu panelas e ganhou uma palha de aço. Dia a dia, juristas troca(va)m de lado. Tudo como torcedores. Gol de mão? Vale…e não vale. Se for a favor do nosso time, grande juiz. Se for contra, deve ser esfolado. Direito? Ah, prá que direito? – “Não me venha com positivismos” (essas “falas” chegam a ser hilárias; e se repetem todos os dias).

Estamos indo “bem” nestes tempos de pós-verdades no direito. Tudo vira narrativa. Na medida em que se institucionalizou o mantra de que “princípios são valores”, é possível trocar o direito por uma palavra mágica como princípio da rotatividade, da amorosidade, da fatalidade, da dialeticidade, da verdade real, etc. Juízes e promotores estão convictos que eles o são vinte e quatro horas por dia. Unção. Como sacerdotes. Claro: por isso a resposta que dão nunca é a que vem de fora (direito, fatos, constituição, doutrina); ela vem de dentro, de sua subjetividade, de sua livre convicção (o símbolo disso é o juiz Xerxes, em um debate no TRT-SP, sob os aplausos de uma parcela considerável de seus colegas, dizendo: “se eu tiver que fundamentar como manda o NCPC, me mudo para o Zimbawe”).

Resultado: temos milhares de judiciários, milhares de ministérios públicos, onze supremos, trinta e três essetejotas. Resultado: meia cidadania. Meio direito. Na verdade, um direito substituído pela moral e pela política, para dizer o mínimo. Observem até onde nos levaram as práticas de desrespeitar a lei, a CF, substituindo o direito pela moral e pela política, ao ponto de o cientista político Werneck Vianna afirmar que “tenentes de toga comandam essa balbúrdia jurídica”, gravíssima acusação ao ativismo do poder judiciário e ministério público. Urgentemente, as associações do MP e PJ deveriam se reunir e olhar para dentro de si e fazer uma autocrítica.

Pindorama está ruindo e o homo juridicus está preocupado em como decorar o ECA (que, aliás, nem é cumprido). Porque cai na prova da Ordem e nos concursos. Gostam de citar Savigny e sua metodologia. E misturar autores. E criticar Kelsen, chamando-o de exegeta. Essa é a “sofisticação”. Estamos construindo próteses para fantasmas, como dizia Warat. Portarias valem mais do que a Constituição. “— Consultemos a instrução normativa numero X”. “— Mas, e a Constituição?”. “— A Constituição? — Lá vem de novo vocês com essa conversa de Constituição”, dizia um professor na Capes. Bom, no Império a Constituição abolira em 1824 a pena de açoites. O Código de 1830 instituiu açoites. E o Código valeu mais do que a Constituição. Novidade?  Qual é a diferença para hoje? Nem mesmo os códigos cumprimos. O CPC novo já virou um frangalho. Os embargos são julgados como se fossem os mesmos de antes de 2015. O convencimento (retirada da palavra “livre” do art. 371) continua “muito livre” (até mesmo para o STJ). O STF aniquila milhares de recursos em clara desobediência ao art. 489 do CPC (ler aqui). Conduções coercitivas são autorizadas à revelia da Lei e da CF (Silas Malafaia é um bom exemplo do “efeito rebote”: aplaudiu a ilegal condução coercitiva de Lula e quando foi a vez dele, não havia ninguém para defendê-lo – pau que bate em Lula, bate em Silas…[1]). Faz-se analogia em malam partem nos tribunais. Inverte-se o ônus da prova. Enquanto isso, o doutrinador e desembargador Guilherme Nucci diz que os vazamentos nas delações não geram nulidade. Normal. E a lei? A lei nada vale. O que vale é a opinião pessoal do doutrinador. Do mesmo modo, veja-se o artigo que três juízes escreveram na Folha de S.Paulo, chamado O Guardião da Constituição. Nele, defendem a liminar concedida pelo Ministro Fux no caso do projeto das dez medidas. Em nome da Constituição, contra a Constituição. Assim vamos indo em direção ao tenentismo denunciado por Werneck.

Enfim, tudo isso é fruto de muito esforço, como ironizava Nelson Rodrigues. Teses como o juiz-boca-da-lei-morreu-e-agora-é-a-vez-do-juiz-dos-princípios, neoconstitucionalismos de todas as espécies, clausulas gerais, os fins justificam os meios, prova ilícita de boa fé…  Estas coisas não são filhas de chocadeira. Alguém bolou isso. E transmitiu nas salas de aula. E escreveram nos livros “tipo galinha pintadinha”. Que vendem aos borbotões. O lema é: quanto pior, melhor.

Na contramão do homo juridicus, uma orientanda minha, Clarissa Tassinari, defendeu, no dia 19 de dezembro de 2016, tese sobre a “supremacia judicial consentida”, mostrando que tudo isso que está aí tem uma participação direta “queremista” da comunidade jurídica. Na mosca. Georges Abboud escreveu um texto sobre “Submissão e Juristocracia”, numa alusão ao best seller Submissão, de Michel Houellebecq. Bingo. E eu acrescento um livro mais antigo, bem antigo, chamado Discurso da Servidão Voluntária, de 1548. Sim, destruímos o direito em Pindorama a partir de um pacto de consentimento, submissão e servidão voluntária. Concedemos o skeptron (da fala de Homero) ao judiciário. De posse do skeptron (ou da concha, do livro O Senhor das Moscas — assistam aqui o programa Direito & Literatura ), é possível falar…qualquer coisa. A concha e o skeptron não nos foram devolvidos. Houve uma fagocitose epistêmica: agora tudo virou… concha. Já não há interdição. Não há como enfrentar o estado de natureza interpretativo, porque ele é fomentado por quem tem o skeptron.

Apostamos na coisa mais perniciosa para o direito: transferimos o polo de tensão para um só lugar. A tese: o direito é o que os tribunais dizem que é. E o STF levou isso aos píncaros. É o nosso realismo tupiniquim. Nosso realismo tipo Pink e Cérebro”. (ver o filminho aqui). E, veja-se: o nosso realismo jurídico é diferente. Ele é um realismo patrimonialista, como, sob outro viés, denuncia Danilo Pereira Lima no seu livro Constituição e Poder.  Um realismo patrimonialista-com-racionalidade-teológica. Não basta que as coisas sejam minhas. Quero também os sentidos. As significações. No princípio é “a minha nominação das coisas”. Por isso x vira y. Dá-se o sentido que se quer. Coisa de fazer inveja a Humpty Dumpty, de Alice Através do Espelho. Por isso é possível que alguém fique preso mais de 500 dias pelo crime de porte ilegal de arma (preventivamente). Por isso, é “legal” vazar depoimentos. Espalhar delações ao vento. E publicizar interceptações ilegais. Também por isso, em audiência, é “permitido” a testemunha dizer aos advogados “vocês são um monte de lixo” e nada acontece, porque o juiz nada faz. Tudo ficou invertido em Pindorama. O skeptron dá esse poder. O direito de Pindorama se transformou… no próprio skeptron.

E tudo convalidado na — e pela — rapidez das redes nesciais, nos resumos e nos enunciados fabricados em workshops. Por isso, minha insistência e minha luta contra as práticas predatórias do direito, do mesmo modo que o funcionário Kang denunciava a prática dos pés atados na China. Pela enésima vez: Voltemos a estudar direito. E que o respeitemos. E por isso proponho uma hermenêutica ortomolecular: para expulsar os “radicais livres” da “livre interpretação e do subjetivismo” (se me entendem a ironia).

Vamos resistir? Pindorama está se esvaindo… Em nome do direito, estamos acabando com o próprio direito. O que fizemos com nossa Constituição? O que restou da advocacia (excetuados os grandes escritórios)? O meirinho do fórum já olha atravessado para o causídico na chegada. Como é possível que milhares de advogados sejam submetidos a tratamento degradante todos os dias, em um país em que temos a maior corporação do mundo para protegê-los? Como é possível que até hoje temos dúvida acerca de como fazer para pedir uma cautelar, uma vez que ela é concedida (ou não) ao alvedrio do juiz ou tribunal?

De novo: nada disso é gerado espontaneamente. Quando o primeiro professor entrou na sala de aula em 6 de outubro de 1988 e bradou coisas como: princípios são valores (algo como Deus morreu e agora pode tudo), começou o nosso declínio. Quando o primeiro professor de cursinho inventou o resumo do resumo e depois veio outro professor com resumão facilitadão e coisas do gênero, iniciamos a descida. Quando os concursos foram transformados em quiz shows, terceirizados pela OAB, Tribunais, Ministérios Públicos etc, e ninguém fez nada, a “conquista” começou. Quando a doutrina começou a fazer apenas glosas de julgados e o um Ministro disse “não me importa o que diz a doutrina”, comecei a estocar comida. Quando o primeiro advogado, humilhado, não reclamou da negativa de transcrição na ata do julgamento do ato autoritário do juiz, quando a doutrina ficou silente em face dos descumprimentos das leis e da Constituição e quando a comunidade jurídica se transformou em torcedora, admitindo quebra da legalidade por interesses próprios, o processo de “transformação” estava já de vento em popa. E quando o primeiro professor ensinou o ECA cantando Funk, o caos já se instalara. Finalmente, quando o professor abriu a palestra dizendo “sentença vem de sentire’ e foi aplaudido de pé, o declínio do império do direito já se instalara. Faltava só o que aconteceu no ano de 2016. E aconteceu. E olha que o ano ainda não terminou. Como diz Eraclio Zepeda: quando as águas da enchente cobrem a tudo e a todos, é porque de há muito já começou a chover na serra; nós é que não nos damos conta.

Numa palavra: Os pés das chinesas eram amarrados durante mais de mil anos. E de repente, em menos de vinte anos, acabou. O modo como estudamos e aplicamos o direito no Brasil, embora já tão consolidado, pode estar chegando ao seu estertor. Será que — lembrando O Código de Honra — se nos envergonharmos do que está ocorrendo, poderemos mudar esse quadro em alguns anos? Ou vamos ficar de pés atados, se me entendem a alegoria?

Feliz Natal a todos. Sem cartinha para o Papai Noel. E sem duelo. E com os pés sem ataduras. E sentindo vergonha.

[1] O “fator Mal-Afaia” já vem ocorrendo: os mesmos (MP e o PJ) que aplaudiram o voto do Min. Barroso no caso da presunção da inocência, não gostaram nem um pouco de suas posições no caso da PEC 55.

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

3 Comentários

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  1. Prezado Nassif
    Boa

    Prezado Nassif

    Boa tarde

    Gostaria de indagar o Prof. Lênio, que direito havia, antes de a “justiç(eiros)a” aprisiona-lo!

    Olhamos para meia duzia de “granfinos e politicos”, mas fingimos que não ver a tortura e o genocidio diario de milhões de cidadãos mantidos sob a espada do “estado de direito”, sem nenhuma contrapartida!

    Também não vejo com bons olhos tudo que esta ocorrendo, mas se esse direito foi moldado para proteger um status quo extremamante predador, encaro como positivo esse aprisionamento, que, por enquanto encontra-se no limite das vias de fato.  

    Pediria ao missivista, que tem livre transito pelo meio, que sustentasse sua teoria perante a casta privilegiada que fazem parte do seus circulos.

    Abração.

  2. 1-“Sentenca” tem a mesma raiz

    1-“Sentenca” tem a mesma raiz de “sentiente”, isso eh, ser individual e autoconsciente e que “sente”, no entanto chegou ao ingles atravez do frances do original latim, que significava “pensamento, maneira de pensar, opiniao, julgamento, decisao”.  (http://www.etymonline.com/index.php?term=sentence)  Sua etimologia em varias e varias linguas nunca teve nada a ver com “sentir” e eh a primeira vez que eu vejo essa afirmacao.

    2-Os pes das “chinesas” NAO eram amarrados, os das japonesas eram.

    O item eh excelente e bem arguido,  a primeira correcao eh aos terceiros, a segunda ao (excelente) autor.  Sobre o assunto em si, ano tenho comentario, so admirei muito o item.

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