51 anos do golpe: os “patriotas” de hoje são os velhos entreguistas

O golpe empresarial-militar, que ora completa 51 anos, promoveu não poucos males à sociedade brasileira, com frutos ainda perceptíveis. Frutos danosos que tolhem o adensamento da democracia brasileira, a redução das grotescas disparidades sociais e a ruptura com o nosso papel dependente e subordinado na cena mundial. 

Uma modernização capitalista, reacionária e autocrática moldou padrões de sociabilidade, que hoje têm no consumo o deus máximo, consistindo em um dos mais expressivos fatores de identidade das pessoas. O individualismo campeia, na esteira da busca pela satisfação de desejos artificialmente criados pelos conglomerados de mídia, com a publicidade financiada pelo sagrado altar contemporâneo, composto pelas marcas das corporações multinacionais.

A brutalidade nas ações policiais contra os potenciais sujeitos “perigosos”, pobres, negros ou dissonantes da ordem social hierárquica e grosseiramente desigual, não deixa de pagar o seu tributo à ditadura instalada em 1964. A cotidiana violação de direitos humanos tende a assumir ares de naturalidade, buscando legitimar, tacitamente, iniciativas arbitrárias, tidas como necessárias na cosmovisão de parcelas importantes da sociedade.

Não são poucas as mazelas herdadas da experiência ditatorial e passíveis de serem identificadas. Contudo, quero explorar apenas uma questão que tem saltado às vistas e ganhado significativa expressão política nos últimos meses, desde o curso da última eleição presidencial: o “patriotismo” reacionário de direita.

É bastante comum vermos, à direita, líderes políticos, agentes das forças de segurança, publicistas e intelectuais com inserção na imprensa e nos círculos acadêmicos, bem como inúmeros grupos sintonizados com a cantilena do combate à corrupção, desfraldarem símbolos e algumas ideias que visam glorificar a “pátria”, o “verde-amarelo” como bastião. As manifestações que apresentaram acentuados laivos fascistas e golpistas, em 15 de março, foram uma demonstração significativa desse “patriotismo”.

Realmente, trata-se de um caso curioso: os pretensos “patriotas” dos nossos dias receberiam, com facilidade, a classificação de entreguistas nas lutas políticas desenroladas nos anos 1950/60, até a destituição do presidente João Goulart. À época, “patriotas”, melhor dizendo, nacionalistas, situavam-se à esquerda – setores militares, estudantes, trabalhadores rurais e urbanos, intelectuais e artistas. Comunistas, trabalhistas, socialistas, católicos de esquerda: forças políticas e sociais, então, designadas e autorepresentadas como nacionalistas.

Os nacionalistas, grosso modo, defendiam inúmeras reformas sociais e econômicas, como a desconcentração da posse da terra, a estatização de setores concebidos como estratégicos, a reforma tributária progressiva, o controle do capital estrangeiro, visando, senão estancar, ao menos reduzir a transferência desenfreada de riqueza nacional e dos frutos dos trabalhadores para o centro capitalista.

Assegurar direitos sociais e defender a legitimidade da participação das classes trabalhadoras, populares e médias, nos processos de decisão nacional e de formulação da agenda pública, consistiam, igualmente, em traços salientes dos antigos nacionalistas. Retirar amplas camadas da população da condição de párias da nação, assim como preconizar os interesses soberanos do país, foram objetivo e característica marcante dos antigos nacionalistas.

Quanto ao pólo antagônico no período, refiro-me aos entreguistas, estes esposavam o liberalismo econômico – que apenas favorecia às corporações multinacionais e à burguesia tupiniquim associada e subalterna –, o alinhamento subordinado aos Estados Unidos (referencial civilizatório) e a democracia restrita às forças conservadores e às classes proprietárias, “agentes ativos e com responsabilidade na nação”, como argumentavam os jornalões do período. A ampla maioria do próprio povo brasileiro era vista como um conjunto de classes “perigosas” e destituída da capacidade de ingerência sobre os rumos da nação.

O movimento que promoveu a desestabilização e o golpe sobre o governo Goulart – grande capital nacional e internacional, maior parte da imprensa e setores militares conservadores – e, sobretudo, a ditadura instalada em 1964, conseguiu ressignificar a ideia de nacionalismo: “patriotas” seriam representados como sujeitos adeptos da preservação das “tradições brasileiras”.

Quais “tradições”? O latifúndio, o silêncio e a invisibilidade política das classes subalternas, a abertura da economia à irrestrita atuação dos capitais estrangeiros, a conservação de privilégios e status para segmentos altos e medianos da sociedade.

A grande obra-denúncia do consagrado jornalista Edmar Morel, publicada em 1965 e reeditada apenas no ano passado, “O golpe começou em Washington”, revela muitos argumentos mobilizados pelas forças sociais e políticas que apoiaram ao golpe e que empreenderam a caça às bruxas contra os nacionalistas, demonizados como comunistas. Demonstra, especialmente, o “patriotismo” defendido pelos encarniçados entreguistas. Uma pátria livre da “ameaça soviética” ou “cubanizante”. Na prática, uma “pátria” que iria tratar a sua maioria como pária.

Não é equivocado afirmar que a ditadura foi muito eficiente em seus propósitos. Conseguiu emudecer a tradição nacionalista e anti-imperialista das esquerdas, criando uma ambiência favorável ao obscurecimento da questão nacional do raio de atenção, daquelas esquerdas que emergiram no processo de redemocratização. O trabalhismo de Leonel Brizola e Darcy Ribeiro à parte, após a década de 1980 o nacionalismo sumiu da temática dos partidos e demais forças e setores esquerdistas, organizados ou não.

Um colonialismo cultural e intelectual imperou, inclusive na seara acadêmica, tornando o nacionalismo uma “praga” que deveria ser esquecida entre os setores progressistas. O economista Nildo Ouriques, em seu recém-lançado “O colapso do figurino francês”, salienta com muita lucidez o papel desempenhado pela USP na desqualificação do nacionalismo.

Como lembra Ouriques, a USP se consolidou sob os escombros do antigo Instituto Superior de Estudos Brasileiros, perseguido e fechado pela ditadura. O ISEB tinha na questão nacional, na reflexão sobre os problemas brasileiros e a inserção do país no sistema econômico e político mundial temas fundamentais. Buscava produzir um pensamento sem importação acrítica, “não enlatado”, para usar expressão de um grande isebiano, o sociólogo Guerreiro Ramos.

O velho nacionalismo tornou-se, na linguagem disseminada pela sociologia uspiana, “populismo demagógico e anacrônico”. Não é gratuito que, em nossos dias, amplos setores da sociedade, inclusive parcelas expressivas das esquerdas, revelam reticências e distanciamentos em relação às experiências políticas de alguns países coirmãos, conhecidas como “bolivarianas”. Consideram o Brasil “muderno” demais para entender o que ocorre em alguns países sul-americanos, com a ascensão protagônica das classes populares na cena política e a busca por exercício de soberania nacional.

Ademais, em meio à ditadura, o nacionalismo foi ressignificado, destituído do seu caráter popular, anti-imperialista e socializante, convertendo-se em um patriotismo ufanista, do “ame-o ou deixe-o”. Uma visão de pátria assentada em relações sociais hierárquicas, na defesa de um organismo social em que “cada macaco fica no seu galho”, contribuindo para o bem do todo.

Dessa forma, os “filhotes da ditadura”, como diria Leonel Brizola, hoje empunham a bandeira nacional, cantam o hino e vestem a camisa da CBF, sob o embalo de anos de aprendizado com a ditadura e a televisão. Acham que esta ordem de comportamentos corresponde a ser “patriota”.

Mas, essas são apenas expressões superficiais e caricatas de “patriotismo”. O que aprenderam com os promotores da ruptura democrática de 1964 e com a ditadura, muitos sem o saber, é que, como os antigos entreguistas, defendem uma pátria com amplo número de párias e a tradição de privilégios, status e participação nos rumos decisórios do país nas mãos de poucos.

Ter que compartilhar espaços coletivos como shoppings, aeroportos e universidades, com setores populares destituídos de acesso até a poucos anos, é o suficiente para um griteiro. Flagrante sintoma de que as “tradições brasileiras” remontam ao período colonial.

Alguns “patriotas” têm demonstrado tamanha convergência com os entreguistas do passado, que têm chegado ao cúmulo de reivindicar a intervenção “redentora” não apenas dos militares brasileiros, como das Forças Armadas dos EUA. Nesse sentido, infelizmente, ao completarmos 51 anos do golpe empresarial-militar, é difícil deixar de reconhecer que as sementes plantadas pela ditadura têm se desenvolvido e dado frutos, praticamente congelando o país no tempo.

Roberto Bitencourt da Silva – doutor em História (UFF), professor da FAETERJ-Rio/FAETEC e da SME-Rio.

Publicado no Diário Liberdade:
http://www.diarioliberdade.org/artigos-em-destaque/414-batalha-de-ideias/55059-51-anos-do-golpe-os-%E2%80%9Cpatriotas%E2%80%9D-de-hoje-s%C3%A3o-os-velhos-entreguistas.html

 

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