“A agricultura camponesa não produz mercadoria, mas alimento”, afirma membro do MST

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“A agricultura camponesa não produz mercadoria, mas alimento”, afirma membro do MST

por Emilly Dulce, do Brasil de Fato | São Paulo

A política ambiental tornou-se um dos principais temas em debate no Brasil nas últimas semanas, principalmente após o avanço das queimadas na Floresta Amazônica com o aval do governo Jair Bolsonaro (PSL). Para propor alternativas ao agronegócio e debater a questão agrária e ambiental, a Câmara dos Deputados realiza, nesta terça-feira (3), o “Seminário – Terra e Territórios: alimentação saudável e redução de agrotóxicos”. Durante o evento haverá, entre outras atividades, o lançamento da Frente Parlamentar de Agroecologia.

Às vésperas do seminário, o Brasil de Fato conversou com Luiz Zarref, membro da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), uma das organizações que compõem o seminário, sobre as possibilidades de resistência ao agronegócio no Brasil. O dirigente analisa que os incêndios na Amazônia são mais uma etapa do processo de desmonte da política ambiental em curso desde o golpe parlamentar contra a ex-presidenta Dilma Rousseff (PT) e a aprovação da Emenda Constitucional (EC) 95.

Zarref avalia que, desde 2016, o Estado tem estimulado e legitimado a “indústria da morte” protagonizada pelo agronegócio, modelo de produção agrícola baseado no monocultivo, nos latifúndios e no uso intensivo de agrotóxicos. Responsável por explorar cerca de 70% dos recursos de terra e água do planeta, conforme dados do ETC Group, o agronegócio opera na lógica de “mercantilização e financeirização da natureza”, explica o membro do MST no estado de Goiás.

O faturamento anual do agronegócio representa US$ 29 bilhões, frente aos US$ 55 bilhões produzidos pelas mãos dos camponeses e camponesas brasileiros, que fazem do Brasil o oitavo maior produtor de alimentos do mundo. Isso significa, segundo Zarref, que o crescimento do Brasil passa pela agricultura familiar. No entanto, o modelo do agronegócio ainda é prioridade, ameaçando a sobrevivência de comunidades tradicionais produtoras de alimentos saudáveis e diversificados, além de violar a base da política ambiental brasileira sustentada pelo artigo 225 da Constituição Federal.

A legislação considera a Floresta Amazônica, a Mata Atlântica e outras reservas como patrimônio nacional e define que “sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais”. Nesse sentido, Zarref ressalta a centralidade de um projeto para o campo brasileiro que tenha a reforma agrária popular como prioridade.

Leia a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: Quais os aspectos mais importantes da política ambiental no Brasil desde o golpe parlamentar de 2016? De que forma a austeridade fiscal afeta essa área?

Luiz Zarref: Nós precisamos compreender que o golpe veio no sentido de avançar a acumulação capitalista no Brasil, retroceder nos direitos dos trabalhadores e capturar os bens comuns – floresta, petróleo, água – para o capital internacional, e aumentar a exploração do capital dos nossos bens comuns. Então, a política de austeridade vem colada. Ao mesmo tempo que você reduz o recurso público, o papel do Estado na política ambiental, você libera essas áreas para que elas sejam expropriadas pelo capital.

Historicamente, a política ambiental no Brasil teve dificuldades financeiras, mesmo nos governos democráticos. Desde 2003, temos a consolidação de algumas políticas importantes de monitoramento do desmatamento, de controle, comando e fiscalização ambiental, algumas políticas importantes de produção das comunidades tradicionais que vivem nos biomas. Mas o orçamento era muito restrito.

Apesar de o Brasil ter toda a dimensão territorial e a importância de seus bens comuns, o papel do Estado é bastante restrito. Com o golpe, isso praticamente é retirado da pauta do Estado. Então, toda a política de austeridade, com a Emenda 95, vem impor uma presença cada vez mais forte do agronegócio e da mineração, e um papel do Estado subserviente a essa lógica de exploração.

Então, sim, a política ambiental é impactada pela austeridade, porque ela reduz capacidade de comando, controle, fiscalização e aplicação de multas, por ser um território muito grande. Ela reduz ou prejudica a capacidade de monitoramento do desmatamento, das queimadas. E, fundamentalmente, ela acaba com as políticas de agroecologia e desenvolvimento produtivo baseado na perspectiva territorial das comunidades.

Em 200 dias, Brasil liberou mais agrotóxicos que a União Europeia em oito anos. (Foto: Reginaldo Teodoro de Souza/Embrapa)

Como a política ambiental influencia na prosperidade socioeconômica do país? A reforma agrária é uma questão de desenvolvimento?

Essa é uma questão estrutural e secular do Brasil: a questão agrária e ambiental. Nós não podemos olhá-las de forma separada. Não existe natureza intocada, como alguns fazem crer. Cada quilômetro quadrado do nosso país foi um processo de coevolução entre os povos e o meio ambiente.

Quando a gente fala de um projeto de nação democrático, justo e popular, nós estamos falando de uma perspectiva em que a questão ambiental e agrária tem centralidade a partir do projeto formulado pelos povos, pelo campesinato em sua diversidade e na relação com a classe trabalhadora, para produção de alimentos saudáveis, diversificados e em quantidade acessível para o povo.

Nós não estamos falando de preservacionismo, de separar milhares de hectares onde o ser humano não toca. Nós estamos falando em potencializar as práticas populares que, historicamente, conservaram os bens comuns: água, floresta, cerrado, enfim, os ecossistemas que estão no campo, nas águas e nas florestas. Um projeto de desenvolvimento do país passa por aí. É um projeto de desenvolvimento soberano, que não esteja anexado aos interesses das grandes empresas transnacionais.

A reforma agrária é, junto com a defesa dos territórios, o elemento basilar de uma política de desenvolvimento nessa perspectiva. Temos os territórios quilombolas, indígenas, dos povos e comunidades tradicionais que resistiram historicamente. Mas a defesa desses territórios tem que estar vinculada a uma política de reforma agrária, fim do latifúndio, redistribuição das terras e, mais do que isso, de destinação dessas terras para a produção de alimentos. Quando a gente fala em um projeto de reforma agrária popular, nós estamos falando justamente disso.

Uma política ampla de criação de assentamentos, não de resolução de conflitos, mas produção de alimentos saudáveis em sistemas agroecológicos, que vai ser de acordo com cada bioma: sistemas agroflorestais, sistemas de plantio direto, com diversificação. Esse é o eixo de um desenvolvimento soberano, democrático, popular e sustentável para o país.

Com o atual modelo ambiental e agrícola, quais as condições de sobrevivência de indígenas, quilombolas, outras comunidades tradicionais, o MST e a agricultura camponesa?

O que nós temos é uma disputa pelos bens comuns, uma disputa territorial. O capital financeiro tem cada vez mais dificuldade de se reproduzir nas bolsas de valores, e portanto ele busca lastro nos territórios, que são ricos em minerais, água, biodiversidade – tudo isso construído em um processo de coevolução com as comunidades que neles estão.

Então, o projeto de acumulação capitalista, que ganha muita força com o golpe, busca justamente expropriar as populações que estão nesses territórios e os assentamentos que foram conquistados ao longo dos 35 anos de luta – do MST e de outras organizações – pela reforma agrária, para que eles sejam incorporados no agronegócio, na mineração ou no hidronegócio.

Esse projeto colocado em curso, desde a década de 1990, de um capital financeiro que organiza a exploração capitalista no campo brasileiro, mas que ganha muita força com o golpe, afronta diretamente os direitos dos povos e comunidades tradicionais. Ele busca destruir as conquistas dos movimentos populares, como a titulação dos assentamentos.

Por outro lado, as organizações populares têm constituído uma diversidade incrível de iniciativas, experiências e alternativas concretas do que fazer com esses territórios. Hoje, a principal base de alimentação do povo brasileiro vem desses territórios, apesar de todos esses avanços da exploração capitalista.

A agricultura camponesa não produz mercadoria, mas alimento, em sistemas cada vez mais complexos, sustentáveis e agroecológicos. E que leva em consideração a dinâmica de cada território.

Hoje, se você vai no bioma Amazônia ou Pampa, você vai encontrar uma diversidade muito grande de experiências em diferentes escalas: artesanal e até agroindustrial, que consegue fornecer grande quantidade de alimentos para o povo brasileiro. Apesar da ausência do Estado ou da debilidade do Estado de fortalecer essas experiências e propostas, elas se concretizam como um caminho real e possível de desenvolvimento do campo brasileiro.

Cerca de 305 etnias de povos indígenas integram as comunidades tradicionais brasileiras (Foto: Reprodução)

Por que a agenda ambiental e agrária é colocada de lado? A quem interessa a escassez de recursos nessas áreas?

A destruição da política ambiental brasileira e o bloqueio total da reforma agrária – na realidade uma contrarreforma agrária, que é destruir as conquistas das famílias sem-terra – interessam justamente a esse período do capitalismo, que é devastador.

O que a gente tem visto, dos crimes de Mariana (MG) e Brumadinho (MG), na realidade, são reflexo disso: uma aceleração brutal do nível de expropriação que as empresas capitalistas têm feito dos bens comuns. Então, essas ações têm essa perspectiva de atacar e fragilizar os territórios para aumentar seu lucro.

No outro sentido, a construção de um projeto popular para o campo é o caminho que nós temos elaborado. Então, nós temos dentro do Projeto Brasil Popular o grupo de trabalho “Agricultura, Meio Ambiente e Biodiversidade”, que tem elaborado justamente quais são as propostas para o campo.

O MST é o maior produtor de arroz agroecológico, é produtor de café agroecológico, de diversas frutas, hortaliças agroecológicas, de leite de base agroecológica. Junto com as outras comunidades tradicionais e do campesinato, nós temos hoje condição de produzir alimento. O que falta é o papel do Estado. Ele investe recurso de assistência técnica para o agronegócio, recurso de crédito. Então, por isso que a marginalização dessas políticas fortalecem o agronegócio.

Com um papel de Estado forte, com política ambiental e agrária consolidada com o viés de desenvolvimento popular, nós teríamos uma outra realidade de pesquisa, de assistência técnica, de agroindustrialização, de comercialização, de educação, de saúde, para o campo.

Tudo isso existe hoje, não só como elaboração, mas como propostas concretas que as comunidades desenvolveram ao longo dos últimos 30 anos. No período do governo democrático, algumas questões avançaram bastante nesses sentidos, outras, ficaram muito falhas, principalmente na questão da reforma agrária concretamente.

Já dizia o deputado Adão Preto: “A reforma agrária é que nem feijoada”. A base da feijoada é o feijão, então tem que ter terra, tem que ter o feijão para se fazer reforma agrária. Agora, você não faz a reforma agrária só com o feijão. Você faz com todos os outros ingredientes que são assistência técnica, educação, saúde, cultura popular, etc.

Então, essa política de austeridade, de diminuir os recursos ou simplesmente desaparecer com esses recursos, ela vai nesse sentido de tentar fragilizar as organizações de base popular do campesinato brasileiro.

Como combater o avanço do agronegócio e a destruição da Amazônia? Qual o cenário daqui para frente, e quais são as alternativas?

As contradições desse modelo da morte, que é como nós chamamos o agronegócio, a mineração, elas ficam cada vez mais evidentes. As contradições da saúde já estão na sociedade. Hoje, nós sofremos uma epidemia de câncer por conta do alto nível de agrotóxicos. As contradições ambientais, que nós já vivemos, de contaminação das águas… Uma pesquisa recente mostra que a grande maioria das cidades têm, na sua água, até 27 princípios ativos de agrotóxicos. Então, é um coquetel químico.

Mais recentemente, vemos o aumento das queimadas na Amazônia. Todas essas contradições estão se intensificando, e vão se intensificar mais ainda, porque a lógica desse governo, que veio desde o golpe, e agora é aprofundada, é justamente essa: destruir a nação brasileira, entregando esses bens para as transnacionais e para os Estados Unidos.

Como a gente enfrenta isso? Primeiro, é necessário que a classe trabalhadora, como um todo, compreenda qual é esse outro projeto. Porque ela está vivendo essas contradições. A classe trabalhadora está ficando com câncer, tomando água envenenada e comendo uma mercadoria podre.

Uma reforma agrária popular, por isso, tem sentido para a classe trabalhadora, não apenas para o campesinato.

Feira Nacional da Reforma Agrária, organizada pelo MST. (Foto: Joka Madruga)

Não é só terra para quem nela trabalha, mas é terra para trabalhar nela e produzir alimentos saudáveis. Então, esse é o eixo do enfrentamento para o agronegócio. O agronegócio não produz comida, o agronegócio produz morte, envenenamento e destruição.

A agricultura camponesa, de base agroecológica, busca a soberania alimentar, que é a autonomia dos povos de decidirem o que querem comer, como e onde esse alimento deve ser produzido. Essa agricultura é o caminho para o desenvolvimento do país. Não é a solução apenas de um problema social nem ambiental: é, fundamentalmente, desenvolvimento econômico, político, social e ambiental, para o povo brasileiro.

Então, esse é o jeito de enfrentar o agronegócio, por suas contradições. Suas contradições são profundas, cada vez vão ficar mais evidentes, e nós temos que responder e ter as respostas para isso. E a resposta é reforma agrária, defesa dos territórios, construção da soberania alimentar e agroecologia.

Edição: Daniel Giovanaz

Redação

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  • Nunca vi no supermercado produtos do MST. Mas a produção de hortifrutis no Brasil é farta e barata, ao contrário, aliás, do que acontece nos países ricos, onde vegetais frescos são mais caros do que produtos industrializados (por isso há tanta obesidade lá).

    Mercadoria não se come, mas gera divisas, que podem ser usadas para muita coisa, inclusive para comprar alimento.

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