A burguesia em alta definição

Do ponto de vista das pessoas e dos organismos coletivos que defendem valores igualitários e libertários, as relações espoliativas entre capital e trabalho representam um tema que merece a atenção máxima.

A importância do tema é inegável. Contudo, são inúmeras as dificuldades de identificação dos agentes promotores da espoliação. Notadamente por conta da configuração do capitalismo contemporâneo, rentista e cognitivo, em que títulos de ações financeiras e grandes marcas multinacionais, baseadas na propaganda massiva, têm domínio sobre a produção e o trabalho em escala global.

As classes e os setores sociais que exploram os trabalhadores – via assalariamento, desemprego, subemprego, subvenções, isenções e evasões fiscais – tendem a um nível de abstração bastante acentuado em nossos tempos. De difícil personificação, tratam-se de figuras escorregadias o capital e os seus portadores. O “capitão de fábrica” há muito saiu de cena.

A respeito, o debate político convencional no Brasil está empobrecido e opera notoriamente com a mistificação: o papel desempenhado pela burguesia, enquanto classe social, não é problematizado. Pelo contrário, ela fica sempre no rodapé dos discursos dos principais partidos, desempenhando a condição de benfazeja garantidora de investimentos e desenvolvimento econômico e social. 

De maneira implícita, seus interesses particulares tendem a ser traduzidos como interesses gerais da sociedade. A sorte dos demais segmentos e classes sociais estariam nas mãos da burguesia. Vale ainda frisar: trata-se de uma palavra expulsa do vocabulário político hegemônico. “Produtores”, “empresários”, eufemismos que suavizam a identidade burguesa, são usuais e de bom-tom.

Não gratuitamente, em um momento em que se afirma vigorar uma crise fiscal, governos estaduais e federal, indistintamente, adotam medidas tributárias que sobrecarregam e espoliam ainda mais o trabalho. Mas, não tocam na capacidade contributiva do capital. Subproduto de uma democracia representativa a cada dia mais atravessada e moldada pelos imperativos do grande capital.

No tocante ao cotidiano do universo do trabalho as coisas também não são simples. As relações sociais de classe instauram não poucas barreiras à percepção sobre os agentes espoliativos e promotores das desigualdades sociais.

Associando amplas faixas submetidas ao subemprego – classificadas como “empreendedores” pela retórica da moda –, com parcela da classe trabalhadora que detém emprego formal nos setores de serviços e comércio, as dificuldades de (auto)identificação de classe, assim como dos seus opositores, são expressivas.

Vendedores de lojas de shopping são condicionados a assumir a posição e os valores do patrão e do consumidor, não raro de padrão socioeconômico mais alto; pequenos proprietários/comerciantes trabalham juntos com os empregados. Nas grandes empresas os proprietários dificilmente são visíveis. Em geral, possuem o controle à distância, vivendo de dividendos. Tudo isso tende a embotar a percepção das relações espoliativas de classe, a dominação burguesa.

Sintomaticamente, hoje, um traço singular da cosmovisão política mais disseminada é o entendimento de que o governo – lato sensu – representa a causa maior das mazelas sociais. Décadas de ditadura, centralidade dos meios de comunicação nos esquemas abrangentes de percepção política, reconfiguração do capitalismo, colonização burguesa das mentes, apoiada em uma cantilena neoliberal ad nauseam, foram e são fatores importantes.

No entanto, antes do golpe empresarial-militar de 1964, segundo clássico estudo de René Dreifuss (“1964, a conquista do estado”), a classe trabalhadora tendia a conceber a burguesia urbana, os latifundiários e o capital estrangeiro, como os seus inimigos de classe, os “tubarões”, os responsáveis pelos dissabores vivenciados no cotidiano dos problemas sociais e econômicos. As coisas mudaram bastante.

Na televisão, a produção jornalística em nada ajuda a elucidar o papel desempenhado pela burguesia na promoção de uma sociedade desigual, injusta e antilibertária. Habitualmente, telejornais locais designam como “bairros de classe média” as áreas nobres dos grandes centros urbanos. A categoria “mercado”, na retórica jornalística e televisiva, consegue refletir uma entidade onipotente e onipresente. Porém, distanciada e abstrata, semifantasmagórica. Um poder desencarnado e obscuro.

Defendendo o tal “mercado”, outro dia o economista André Lara Rezende contestou a Thomas Piketty, no programa “Roda Viva”. Afirmava que os “ricos incentivam a criação e o desenvolvimento”. Com isso, justificava as aberrantes desigualdades sociais brasileiras. Temos aí a naturalização do papel positivo da burguesia em nossa sociedade, sob a chancela pretensamente técnica de um figurão dos círculos do PSDB e dos meios massivos e empresariais de comunicação.

Entretanto, zapeando a TV essa semana, me deparei com o programa “Amaury Jr.”, exibido pela Rede TV. O simpático e veterano apresentador televisivo do universo das altas rodas estava todo-pimpão no baile do Copacabana Palace. Um programa elucidativo, em que a burguesia aparece sem máscaras e mistificações. Aparece em carne e osso, em alta definição.

Bêbada e feliz da vida, a burguesia surge na telinha em festas nababescas, que entrecruzam empresários, herdeiros, rentistas e artistas. A superfluidade, a hipervalorização do ócio e do consumo suntuoso denotam certos traços dos referenciais de vida daqueles que se encontram no rodapé dos discursos jornalísticos e políticos. No rodapé, mas sem deixar de condicioná-los.

Contando com a vivacidade de Amaury Jr., o programa é uma curiosa experiência sociológica. Me arriscaria a dizer que consiste em um dos mais autênticos da televisão comercial brasileira, já que não busca mistificar, nem associar o universo burguês a interesses mais abrangentes da sociedade. No quesito honestidade supera, em muito, o jornalismo televisivo e da grande imprensa.

A condição de casta opulenta e distanciada das vicissitudes do trabalho aparece com nitidez. Contrasta sobremaneira com a imagem “produtiva e socialmente criativa”, defendida por Lara Rezende.

Nesse sentido, Joseph Schumpeter, que nada tinha de socialista, em meados da década de 1940, assinalava uma potencial erosão de legitimidade do capitalismo, por conta da perda de função social do burguês. Sob a condição de um distante acionista que apenas aufere lucros sem introduzir qualquer iniciativa direta na produção, para o economista austríaco, tal fenômeno poderia contribuir para a fragilidade moral do capitalismo e do seu agente principal, o burguês.  Devido a inúmeros descaminhos da história, tal intuição não se concretizou. Todavia, não faltam elementos hoje para concordar com Schumpeter.

O rentista e o herdeiro burguês, sem função social, saltitam alegremente no programa do Amaury Jr. Desse modo, para quem quiser discutir e refletir sobre crise fiscal, tributação e direitos sociais no país, está aí um programa educativo.

A presidente Dilma, o seu ministro da Fazenda, Joaquim Levy, e tantos governadores de estados deveriam assistir. Talvez estimulasse a pensar sobre quais setores e classes sociais cabe, de fato, entregar a fatura do propalado desequilíbrio fiscal, em uma sociedade marcada por uma das mais altas concentrações de riqueza e renda do planeta. O risco seria identificarem-se com os esfuziantes convivas do programa.

Roberto Bitencourt da Silva – doutor em História (UFF), professor da FAETERJ-Rio/FAETEC e da SME-Rio.

Redação

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