A carta de demissão de um cientista na Argentina

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Do Página 12
 
Diego Hurtado foi até ontem diretor da Agência Nacional de Promoção Científica e Tecnológica, que depende do Ministério da Ciência. O texto a seguir é a carta de demissão que ele enviou ao Ministro Lino Barañao.
 
Buenos Aires, 15 de dezembro de 2017
 
Ao senhor
 
Ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação Produtiva
 
Dr. Lino Barañao
 
Envio minha renúncia ao cargo de Diretor da Agência Nacional de Promoção Científica e Tecnológica (ANPCyT) do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação Produtiva (MINCyT).
 
Motiva minha resignação as numerosas contradições e falácias acumuladas que, na minha opinião, não deixam dúvidas sobre o processo de degradação institucional que o MINCyT está passando, marcado pelo “encolhimento” do setor – o que você nega publicamente, negando a aritmética simples -, a falta de direção e o tratamento negligente de jovens pesquisadores, o principal valor intangível e a garantia do futuro de uma democracia.
 

 
Embora o MINCyT não atinja os objetivos do Plano Inovador 2020 da Argentina, que você promoveu, há um mês anunciou que estava começando a trabalhar no Plano Argentina Innovative 2030, que entraria em vigor em apenas pelo menos dois anos. Isso significa que não haverá um plano nacional para o setor de ciência e tecnologia por um período mínimo de dois anos. Mas, também, se você negar agora os objetivos do Plano 2020 inovador da Argentina, qual a garantia do setor de que você não negará os objetivos do Plano Innovador Argentina 2030?
 
Atualmente, o programa “Desenvolvimento e Fabricação de Turbinas Eólicas de Alta Potência” está em vigor no ANPCyT, que financiou, desde 2013, projetos locais de P & D com mais de 100 milhões de pesos. No entanto, simultaneamente, o programa Renew promovido pelo Ministério da Produção decide excluir a indústria nacional e comprar tecnologia importada.
 
O ANPCyT também promove o “Projeto Estratégico” focado no “Desenvolvimento de Partidas Nacionais para Satélites”, enquanto, simultaneamente, o ArSat 3 está paralisado e, portanto, a linha de desenvolvimento de satélites geoestacionários prevista na Lei 27.208.
 
Depois de ter sido eleito Dr. Roberto Salvarezza para se juntar ao Conselho da Conicet, você se recusa a formalizar sua incorporação sem fundamentar, estabelecendo um precedente obscuro para a vida democrática do setor.
 
Ao nível das falácias definitivas, quando o presidente Mauricio Macri disse na cerimônia de premiação dos Prêmios Houssay que “o orçamento em ciência e tecnologia praticamente duplicou” (La Nación, 12/7/17) e você endossa esta declaração Em vez de corrigi-lo, fica claro que a degradação institucional do MINCyT é intencional.
 
Seguindo sua própria lógica e assumindo que o principal problema da ciência em nosso país é aquele que você diagnostica – “há uma falta de pesquisadores com um perfil diferente, mais incorporado às necessidades do país” (La Nación, 24-12-16) – , então você deve nos explicar, depois de 10 anos na cabeça do MINCyT, qual é esse “perfil diferente” para o qual parece que você não trabalhou ou não sabia como promover. Sua declaração é consistente com sua renúncia.
 
Eu poderia multiplicar a lista de exemplos. Quando afirmou que “não existe um país que, com 30 por cento dos pobres, esteja aumentando o número de pesquisadores” (El Cronista, 12/06/2006), você deve lembrar que, em 2003, a Argentina tinha mais de 50% dos a pobreza, que em 2015 foi reduzida para 30% e, neste contexto, você promoveu o Plano 2020 inovador da Argentina e os objetivos de crescimento da Conicet e do setor que agora nega. Aliás, digamos que, em março de 2017, de acordo com a UCA, a pobreza cresceu para 32,9% (El Cronista, 9/3/2017).
 
A colocação tenaz em circulação de falácias que você usa para negar a destruição do setor de ciência e tecnologia é garantida pelo mecanismo de produção da “prática pós-verdade”, prática assídua do governo que você representa. Ou seja, você não hesita em usar argumentos extravagantes, porque você tem a comunicação oficial – num país sem lei para evitar oligopólios no setor empresarial da mídia -, que passa suas falácias por declarações credíveis. Assim, você colabora com a destruição da esfera pública, entendida como o conjunto de espaços coletivos de diálogo, debate e consenso essenciais para a vida democrática. Paráforo estranho de que um ministro do setor científico se dedica a demolir as diretrizes mínimas de racionalidade com seu discurso.
 
Por estas razões, envio minha renúncia ao Conselho da ANPCyT.
 
Sem outro particular, ele cumprimenta
 
Dr. Diego Hurtado
 
Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

6 Comentários

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  1. Lá como cá

    Essa carta poderia ter sido escrita no Brasil.

    As mesmas politicas, as mesmas mentiras as mesmas traições.

    Que falta faz um Robespierre!

    1. Amigo, eu ando tão desiludido
      Amigo, eu ando tão desiludido e deprimido, que já não sinto nostalgia de Robespierre.
      Alguma coisa dentro de mim urge por um Pol Pot brasileiro.
      A loucura como único caminho para a salvação. Seja lá do que for.

    2. Não falta, não, com o devido

      Não falta, não, com o devido respeito.

      O Robespierre que aparecer talvez seja menos radical e mais realista.

      Será um Robespierre que exporá ao vivo e a cores as mazelas daqueles que traem o Brasil.

      Não quero estar na pele dos vendilhões da pátria. O chicote moral deverá doer muito.

      OK, sou otimista, e daí? Sonhar nunca foi proibido. 

      Mas ver a agonia de michel temer (minusculas mesmo), moreira franco, romero jucá, rodrigo maia,

      aécio neves, geraldo alckmin, josé serra, aloisio 300 mil, sergio moro e tantos mais…

      E o copo de água que os salvaria está em nossas mãos. E nós bebemos a água.

      Além de mulher, tem coisa melhor que isso?

       

  2. Lá, tal como aqui.
     

    Talvez por isso o mundo pense que a capital do Brasil é na Argentina, ou vice versa, sei lá, ao sul, tudo é visto e tratado como uma colônia só.

  3. Troca-troca

    É só trocar alguns nomes próprios no texto: Taemer, Projeto Sirius, Programa Nuclear Brasileiro, Base de Alcantara…. que o texto se aplica exatamente ao Brasil

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