A dimensão econômica da Função Social da Propriedade

Poucos temas têm sido tão mencionados e, ao mesmo tempo, tão distorcidos quanto a questão da Função Social da Propriedade Urbana. Parte da confusão se deve ao fato de que a própria especulação imobiliária – que a função social busca evitar – deixou de ser um conceito preciso para se tornar um xingamento vago. Em muitos momentos de importantes debates sobre política urbana, como a que ocorreu no Plano Diretor de São Paulo, o termo “especulação imobiliária” foi utilizado contra segmentos que não eram, ao menos no sentido “stricto sensu”, especuladores de fato. E, em alguns momentos, quem pronunciava o xingamento é que era o verdadeiro especulador.

Para se compreender melhor a Função Social da Propriedade Urbana é essencial ter clareza sobre o que ela se propõe combater: a retenção especulativa de áreas que esperam investimentos públicos e privados serem realizados e que aumentem o valor da terra.

O processo tem algo de Robin Hood às avessas. Toda a população paga seus impostos para o Poder Público e, proporcionalmente, a população mais pobre paga mais. Isso porque a maioria dos nossos impostos é indireto e incide sobre o consumo. E centenas, às vezes até milhares de pessoas, constroem casas e estabelecimentos utilizando suas poupanças. O Poder Público utiliza parte dos recursos que arrecada implantando infraestrutura na cidade, como água, esgoto, energia, corredores de ônibus, metrô, trem, asfalto e equipamentos públicos. Como consequência dos investimentos da sociedade, a área se valoriza.

O especulador imobiliário, aquele que ficou de braços cruzados esperando que todos os demais trabalhassem e investissem, acaba sendo quem fica lucra com os investimentos feitos pelos governos e pagos com os impostos de todos. Uma área vazia, que valia pouco quando a região tinha pouca ou nenhuma infraestrutura, passa a ter um valor muito maior que o investimento original porque é o último vazio de um bairro formado.

Portanto, xingamentos muitas vezes aplicados aos movimentos de moradia – que são chamados de “aproveitadores”, acusados de quererem “tomar o que é dos outros” ou apelidados de “vagabundos que querem ganhar as coisas de graça” – seriam, com efeito, muito mais apropriados para os retentores especulativos. São eles que se apropriam privadamente de boa parte dos investimentos públicos e privados realizados sem dar absolutamente nada em troca para a cidade.

Também é necessário considerar o efeito de degradação que estas áreas vazias geram no entorno. Não raro são matagais mal cuidados, espaço propício a atividades criminosas, ou que podem provocar riscos à saúde, à segurança e ao conforto de quem mora e trabalha na região.

De um ponto de vista mais macro, estas áreas vazias degradam as condições de vida de toda a cidade, pois, na medida em que é cada dia menor e mais cara a oferta de imóveis em áreas com infraestrutura, a população mais pobre tem busca moradia em regiões cada vez mais distantes. Com isso a mancha urbana se expande, invade áreas que deveriam estar protegidas ambientalmente, aumentam os custos do transporte coletivo e diminuem a qualidade de vida da população carente, que fica cada vez mais longe do emprego e leva horas para ir e voltar do trabalho. Sem esquecer que, quanto mais a periferia se expande, mais investimentos públicos são necessários para dotar estas áreas de equipamentos públicos que atendam seus moradores.

São Paulo é a primeira e única cidade do país a ter sua legislação municipal de controle da Função Social da Propriedade. Esta lei é de minha autoria e foi aprovada em 2010. Em setembro de 2011 foram identificados 1043 imóveis que não cumpriam a Função Social da Propriedade, a maioria na região central. Se a lei estivesse sendo aplicada, estes imóveis estariam sujeitos ao IPTU progressivo no tempo e, a esta altura, já estariam em uma das seguintes situações: readequados ao cumprimento da lei, e portanto contendo moradias populares, ou prestes a serem desapropriados pelo Poder Público com pagamento em títulos da dívida pública e pagando alíquotas de até 15% do IPTU.

Mas a maioria destes imóveis continua do jeito que estavam, vazios, como um câncer que suga a vitalidade do entorno e os recursos públicos e privados. Depois de quase dois anos da atual gestão, que paralisou o cumprimento da lei, o que se tem são apenas promessas de que agora serão notificados pouco mais de 10% destes imóveis, mostrando a imensa distância entre o discurso de combate à especulação e a verdadeira prática de quem tem medo dos danos políticos que a decisão pode trazer.

 

Redação

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