“A escola precisa se descolonizar de suas origens”, afirma professor

Por Julia Dietrich, do Centro de Referências em Educação Integral

“A escola precisa se descolonizar de suas origens. É preciso que nossa escola represente a história e a potencialidade da cultura e populações brasileiras e é preciso que ela combata todo sofrimento, especialmente aquele socialmente produzido”, afirmou o professor Cesar Nunes, doutor e docente da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em debate sobre a Formação Humana Integral na contemporaneidade, durante o 2º Seminário Internacional de Educação Integral em Jornada Ampliada, que acontece em Brasília (DF).

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Para o professor, também é preciso romper com o discurso de fazer uma escola a partir dos modelos internacionais. “Não podemos fazer a educação da Finlândia, não podemos fazer o modelo coreano, cubano. Não podemos fazer a escola da Ponte, a escola de Perrenoud”, pontuou, salientando que é fundamental que os educadores, movimentos sociais e gestão pública assumam a possibilidade de uma nova escola, que não seja baseada em modelos e sim que dialogue com o cenário social atual. “Precisamos, como dizia Guimarães Rosa, olhar para a terceira margem do rio, criar um novo caminho – o do sonho.”

Cesar Nunes com a mediadora Malvina Tuttman, do CNE

Cesar Nunes com a mediadora Malvina Tuttman, do CNE.Créditos: Julia Dietrich

Parafraseando o cantor Belchior, Nunes, que é filósofo, acredita que é preciso vestir a escola com uma nova ‘roupa’, uma ‘roupa’ que não seja do passado. Segundo o educador, o Brasil já tem o tecido necessário para a confecção; as leis conquistadas pelos movimentos sociais: Lei Maria da Penha, Estatuto da Criança e do Adolescente, Estatuto do Idoso, Estatuto da Juventude, União homoafetiva, entre outras. “E, temos também os fios para a costura. Temos nossas crianças, nossos adolescentes, nossas mulheres e mães. Todos reais. Concretos. Do Brasil real e de hoje”, justificou, indicando a necessidade de lembrar que a boa parte dos estudantes são filhos de mulheres chefes de família, contempladas pelo Bolsa-família e que tiveram seu primeiro filho entre 14 e 18 anos de idade.

Histórico de modelos desiguais

Para Nunes, a escola brasileira atual segue modelos históricos que ainda não foram superados. A escola segue como a escola jesuíta, cujo objetivo era educar pelo magistrocentrismo [professor detentor do conhecimento], da obediência e da emulação [sentimento de superação de um para com o outro, rivalidade]. “Como dizia o poeta chileno Pablo Neruda, a espada e a cruz saem dizimando a família selvagem. E é isso que a escola jesuíta propõe – o doutrinamento absoluto, a não possibilidade de questionamento, de invenção”, apontou.

Segundo o docente, a escola brasileira também segue o modelo positivista propagado por Benjamin Constant (século XIX), propagando a escola republicana da ordem e do progresso. “É a máxima do se você for aprovado (ordem) eu te passo de ano (progresso). Nós somos um brasil contemporâneo que a inda tem como objetivo produzir súditos e fieis”, avalia.

Nunes apresentou também que a escola brasileira também é a escola de Getúlio Vargas e dos ideais fascistas, organizadas como uma pirâmide em que os do topo são uma espécie de tropa de elite. “Temos que deixar todas as crianças alcançarem e viverem a escola, a escola é um direito de todos”, indicou, em oposição ao ideário getulista que visava a formação de quadros para ocupar fábricas e quarteis.

“É dessas escolas que vem a história das crianças andarem enfileiradas, com as mãozinhas nos ombros umas das outras. É o mesmo símbolo que era usado com os prisioneiros em campos de concentração”, justificou. Para o educador, enquanto a sociedade brasileira pensar em um modelo de escola do tipo “funil”, que se paute na classificação, na obediência e na formação para o trabalho, até será possível aumentar a jornada, “mas nunca de fazermos uma educação integral”.

Com a ditadura militar (décadas de 60 a 80), o modelo escolar recebeu uma nova roupagem. Nunes conta que houve uma tentativa de democratizar o acesso à educação. “Só que de forma assistencialista, autoritária e meritocrática. Foram construídas escolas de brasilite, com quadras chapeadas, tudo cinza, a partir dos mesmos moldes de construção de rodoviárias, cemitérios e prisões”, explica, indicando que o currículo também se transformou: “não haviam mais aulas de latim, de filosofia, de artes. Tudo de voltou novamente à proposta de produção, de formação de mão de obra.”

Mais recentemente, de acordo com o professor, na gestão de Paulo Renato (PSDB), embora bem intencionada, importou-se o modelo espanhol, com bases curriculares, bônus de assiduidade para professores, e a proposta de competências e habilidades. “Esse discurso cai muito facilmente na lógica neoliberal, novamente de estruturação da pirâmide.”

E, por fim, nos dias atuais, Nunes entende que há uma perspectiva de que a tecnologia irá salvar a educação. “Essa oferta de Ipods e Ipads é novamente dar espelho aos índios. Escola é o espaço de construção de vínculo”, justificando que a mediação das ferramentas virtuais e digitais sozinhas não são suficientes para torná-la um espaço de acolhimento e dignidade”.

Esforço contínuo

Para o palestrante, a construção dessa nova proposta de escola ganhou força com o Mais Educação, mas indicou que o caminho ainda é longo. Ele, que estudou com o educador pernambucano Paulo Freire, ilustra a necessidade de mudança a partir de uma das conversas que tiveram. “Um dia Freire veio e me contou que estava cansado de ouvir as pessoas dizendo que era preciso resgatar o hábito da leitura no país. E ele me disse que respondia que não era possível resgatar aquilo que nunca tivemos. Para formar leitores, é preciso que existam professores-leitores; para formar escreventes, é preciso que existam professores-escreventes”, narrou.

De acordo com Nunes, em um país em que a média de expectativa de leitura é de 2,7 livros por pessoa, é preciso recriar a escola com urgência. “Temos que parar de remendar o pano com retalhos e entender que a escola não é para qualificar a pessoa para o mercado de trabalho, para as tecnologias, para a produção. A escola é para aprendermos a ser gente e aprender tudo o que a humanidade faz de melhor”, concluiu.

Redação

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