A FIFA no banco dos réus, por Jânia Maria Saldanha

Patricia Faermann
Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.
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Por Jânia Maria Lopes Saldanha

 

Do Justificando

 
Na Ilíada, Homero descreve o jogo havido entre Antíloco e Menelau, por ocasião da morte de Pátroclo, e que consistia numa corrida de carros com percurso de ida e volta. Ocorre uma irregularidade e Antíloco chega em primeiro lugar. Inconformado, Menelau acusa Antíloco da prática de tal irregularidade ao júri. Antíloco se defende. Diante da defesa, Menelau desafia o acusado a colocar a mão na cabeça de seu cavalo e jurar perante Zeus que não cometeu nenhuma irregularidade. Trata-se da produção da verdade como resultado de um jogo, tal como foi inteligentemente descrito por Foucault[1].

Muitos séculos se passaram. O esporte não é mais praticado em homenagem a alguém que morreu ou por simples reverência ao prazer e ao desejo de competir, tampouco trata-se tão somente de prestigiar as atividades coletivas ou o interesse em manter uma tradição. Não, o esporte profissional é um campo de atuação que significa uma atividade econômica específica.

Assim, primeiro reduzido ao local, depois ao nacional, há muito tempo o esporte globalizou-se. Essa ampliação espacial justificou modos específicos de regulação, tanto em nível nacional quanto global. Assim o esporte passou a ocupar um campo específico do direito.

Ao lado daqueles domínios muito tradicionais como o direito civil, o direito empresarial, o direito penal, entre outros, o chamado direito do esporte mantém, necessariamente, uma relação interdisciplinar com esses ramos do direito; como com o direito empresarial, no que diz respeito às compras e transferências de atletas; com o direito do trabalho, já que as relações entre jogadores e clubes chegaram ao nível de relações de trabalho e passaram a ser protegidas pelas regras trabalhistas; com o direito penal, considerando-se as fraudes nos resultados, a corrupção e a lavagem de dinheiro; bem como com o direito público, em razão da organização dos megaeventos esportivos que contam com a utilização, muitas vezes, de espaços e de investimentos públicos.

O lugar que o esporte ocupa no cenário da globalização – e então da internacionalização do direito – é plenamente comprovado na existência de clubes nacionais, das federações e confederações nacionais, regionais, internacionais e transnacionais. Essas entidades globalizadas fortaleceram-se econômica, jurídica e politicamente ao longo das últimas décadas. Seus estatutos e regulamentos, decorrentes de sua autorregulação e autonomia, permitiram a criação de regras para disciplinar os campos esportivos a que estão relacionadas. Não feitas pelos legisladores, elas ainda ocupam uma posição periférica com relação àquelas que tradicionalmente desafiam a atenção da teoria do direito. Discretas, no entanto, eles marcam sua “onipresença e seu caráter indispensável”[2] ao funcionamento de setores importantes da sociedade contemporânea.

São públicos e notórios os efeitos desses “quadros normativos” sobre as leis dos Estados, os quais não possuem pouca ou nenhuma interferência sobre a sua criação e aplicação. Ao contrário, as experiências recentes indicam que o direito dos Estados se tornou demasiado pequeno diante da grande interferência daquelas entidades para determinar as “regras dos campeonatos”. Exemplo disso, todos lembram, é ter o Brasil na Copa do Mundo de 2014, à revelia de nossa lei interna, permitido o uso de bebidas alcóolicas nos estádios onde ocorreram jogos, por exigência da FIFA. Isso, claro, para dizer o menos.

A existência de inúmeras instituições e organizações do esporte competentes para produzir tais regras, provocam uma pluralidade normativa que desemboca em uma verdadeira fragmentação [3] “legislativa” grandemente associada à autonomia atribuída a tais sujeitos e com evidente perda de coerência. Assim, de um lado, temos incoêrencia e dispersão, duas das características dessa fragmentação que têm favorecido a manipulação dos resultados, a corrupção e a subjugação dos Estados à vontade exclusiva dessas entidades. De outro, temos a autonomia que tem limitado, senão impedido, a atuação dos Estados. Há de fato, aqui, uma simbiose entre poder econômico, poder político e poder jurídico.

O escândalo envolvendo a FIFA, cujos desdobramentos a cada dia nos oferecem fatos novos e nos comprovam os inúmeros tentáculos globalizados desta entidade, tal como noticiou imprensa internacional[4], mostra as profundas contradições da globalização e o quanto essa instituição foi vítima da lógica mercadológica, assumida por seus mais altos dirigentes, de enriquecer a qualquer preço em detrimento das verdadeiras finalidades do esporte.

A dimensão social do esporte, no entanto, tem mobilizado a comunidade internacional, os Estados, a ONU e a União Europeia, que buscam construir um quadro jurídico internacional que seja capaz de fazer frente à soft law esportiva e de regular o esporte para extinguir a manipulação de resultados e de escolha das sedes das competições, acabar com a corrupção e impor responsabilidades. Trata-se, como se vê, da necessidade de ligar à capacidade autorregulatória – então privada – das instituições esportivas e que se impõe ao direito dos Estados, com a regulação pública, submetendo esses atores – que à toda evidência se tornaram econômicos – e seus dirigentes, às instituições democráticas.

Por isso, é urgente que nos interroguemos não apenas sobre as regras que as instituições do esporte produzem e que impõem aos Estados, mas também sobre a produção daquelas que devem reger a atuação das instituições esportivas, como a FIFA, por exemplo. O problema ligado ao envolvimento de dinheiro público, de espaços públicos vinculados ao esporte, bem como aquela dimensão social que ele possui, tem cada vez mais reivindicado a atuação dos Estados.

É inegável, então, que os problemas vinculados ao esporte adquiriram uma dimensão internacional e o tema, justamente por isso, tornou-se objeto do direito internacional público e privado. Mas, antes, consiste em um problema profundamente ético. No ano de 2012, o Conselho da Europa passou a empenhar-se em criar condições de possibilidade para que fosse redigido um instrumento jurídico internacional contra a manipulação nos resultados esportivos. Uma Comissão encarregada de redigir o texto de uma Convenção para prevenir, detectar, sancionar a manipulação e promover a cooperação nacional e internacional, foi constituída.

Realizado o trabalho de redação, o Conselho da Europa abriu o processo para a ratificação dos Estados-membros mas, dado o caráter global do esporte, também abriu a possibilidade de adesão a Estados não membros. Basicamente, essa Convenção[5], ao mesmo tempo em que reconhece a autonomia do esporte em seu preâmbulo, também destaca o papel e a necessidade de as autoridades protegerem a “integridade do esporte”. Embora a natureza complementar desta intervenção, a Convenção prevê a aplicação de medidas disciplinares, administrativas e penais aos atos de manipulação e de apostas ilegais.

A Comissão previu, como princípios básicos da convenção, entre outros, a proteção dos direitos humanos e a legalidade. Ela realizou um importante trabalho de definição de conceitos que reduzirão em muito a dispersão interpretativa hoje existente e as dúvidas quanto aos caminhos de imposição de responsabilidade aos atores de atos ilegais ligados ao esporte.

Dado o caráter alargado dessas definições, as sanções poderão ser administrativas, disciplinares e penais e aplicadas tantos pelas próprias instituições esportivas quanto pelas autoridades públicas. Nesse sentido, a Convenção define que sejam: a) competição esportiva; b) organização esportiva; c) organização de competições; d) atores de competição; e) manipulação de competições esportivas, entre outros.

Para o que interessa nesse momento, a manipulação esportiva é definida como um “arranjamento, um ato ou uma omissão intencionais visando à modificação irregular do resultado ou do desenvolvimento de uma competição esportiva a fim de suprimir no todo ou em parte o caráter imprevisível da competição, com o objetivo de obter uma vantagem induzida para si ou para terceiros”. Afinada com a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, a Convenção também define o que sejam as “apostas esportivas” ilegais, atípicas e suspeitas.

A Convenção, que já recebeu a adesão da União Europeia por ato da Comissão Europeia de 2014, estabelece importantes dispositivos operacionais como a influência dos Estados sobre as organizações esportivas e sobre os organizadores das competições para adotarem mecanismos adequados de prevenção de conflitos de interesse, de transmissão e partilhamento de informações com as autoridades públicas.

Um dos pontos relevantes desta Convenção é a previsão de respeito ao princípio da transparência quanto aos financiamentos das organizações esportivas que recebem ajuda de fundos públicos. Para que a ajuda pública seja levada a efeito, as organizações do esporte deverão praticar as ações previstas na Convenção.

Como em outros domínios da mundialização do direito, no domínio do esporte a Convenção prevê a cooperação por meio de plataformas nacionais que, juntas, formarão um tecido amplo capaz de responder à internacionalização desse fenômeno e às redes de manipulação e também de corrupção.

Se essa estrutura normativa – regional e, quiçá, internacional – ainda está em construção, após os conhecidos casos – BNP Paribas, ALSTON e HSBC – que tramitaram perante a justiça americana, o caso FIFA nos induz a pensar sobre os métodos utilizados pelos Estados Unidos para reprimir a corrupção global. Com efeito, a força dos fatos é mais pujante do que a força do direito. Por isso é possível entender que por meio da aplicação de sua lei interna denominada RICO[6], uma arma jurídica que permite perseguir um grupo estruturado de pessoas, mesmo que não ligadas legalmente, mas vinculadas em um esquema de infrações por um longo período e que tenha alguma repercussão no “solo” americano, a justiça americana tratou também a FIFA e seu alto escalão envolvido em atos de corrupção, como uma empresa e como dirigentes dessa empresa. Se o exercício dessa justiça “quase universal” nos coloca sérias questões jurídicas, essa lei permite que o indivíduo seja culpabilizado por “associação” o que o incita a “cooperar” com a justiça para reduzir as elevadas multas que o direito americano lhe impõe. Seguramente, muitas novidades surgiram ainda no horizonte próximo.

Assim, se a verdade não é mais produzida pela obra sábia dos deuses como esperava Menelau, enquanto aguardamos os desdobramentos para a elaboração de uma regulação internacional que seja capaz de fazer frente à autorregulação de instituições internacionais como a FIFA, os Estados que estão empenhados na luta global contra a corrupção e contra a malversação dos recursos públicos, como o Brasil, devem refletir sobre a potencialidade da legislação interna em fazer face aos crimes internacionais para responsabilizar juridicamente seus atores, quanto sobre a necessidade de alterar institutos clássicos de direito civil, penal, administrativo e processual.

Jânia Maria Lopes Saldanha é Doutora em Direito. Realiza estudos de pós-doutorado junto ao IHEJ – Institut des Hautes Études sur la Justice quanto também junto à Université Sorbonne Paris II – Panthéon-Assas. Bolsista CAPES Proc-Bex 2417146. Professora Associada do PPG em Direito da UFSM. Advogada.

 


[1] FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Editora Nau, 2005, p. 31-32.
[2] FRYDMAN, B. Prendre les standards et les indicateurs au sérieux. In: FRYDMAN, B. VAN WAEYENBERGE, A. (Dir).Gouverner par les standards et les indicateurs. De Hume aux rankings. Bruxelas: Bruyant, 2014.
[3] FRYDMAN, Benoit. Petit manuel de droit global. Bruxelles: Académie Royale de Belgique, 2014, p. 63.
[4] Por exemplo: Le Monde de 28.05.2015: http://www.lemonde.fr/football/article/2015/05/28/ce-que-l-on-sait-du-scandale-qui-eclabousse-la-fifa_4641981_1616938.html; El País de 04 e 06.06.2015, respectivamente: http://deportes.elpais.com/deportes/2015/06/06/actualidad/1433619932_491194.html; Libération de 06.06.2015: http://www.liberation.fr/monde/2015/06/06/fifa-l-allemagne-accusee-d-avoir-livre-des-armes-a-l-arabie-saoudite_1324397
[5] Disponível em: http://conventions.coe.int/Treaty/FR/Treaties/Html/215.htm
[6] La justice américaine dicte l’agenda mondial de la lutte contre la corruption. 
Patricia Faermann

Jornalista, pós-graduada em Estudos Internacionais pela Universidade do Chile, repórter de Política, Justiça e América Latina do GGN há 10 anos.

3 Comentários

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  1. Uma sugestao que me  ocorreu

    Uma sugestao que me  ocorreu  lendo este artigo   seria  se  criar  varias  FIFAS   uma da EUROPA, outra  da  AMERICA DO NORTE  CENTRAL E  CARIBE,  OUTRA DA  AMERICA DO  SUL,  OUTRA  DA EURASIA  e cada uma  ser independente, mais  na  hiora   das receitas e  despesas  cada FIFA  fica com a sua parte. na hora de  se premiar  times  cada  uma  entra com a sua parte  e  complementando  teriamos  as  FIFA das  Africa.  De que  forma  agora por exemplo se pode punir  dirigentes de federaçoes  mesmo que   estejam  envolvidos  no esquema  se   a unica  responsavel  por  tudo  é  a  FIFA, e seu  chefao  principal  é  Joseph  Blatter. O  Brasil  fez  a parte  dele aqui na copa  2014  e nem os EUA nem  a  Swiça  foram  apurar . Os  EUA  com seus  interesses escusos  trataram  de  fazer  sua  espionagem justamente  atraves de  um cartola  ladrao que  fez  acordos  com a justiça  americana  para espionar  a  FIFA, o  tal do  cartola  agia  na concacaf  orgao  que  estar sob  a jurisdiçao americana e que eles sabiam a muito  tempo  ser  um orgao corrupto  mais esperaram o momento  certo para  dá  o golpe e  exatamente quando lhe  favorecia. pois  todos ja  sabem  qual o seu rel  interesse.

    Os  EUA nao tem o dirteito de querer  fazer nenhuma  copa  do mundo pois  tem pouco  rtempo que uma foi realizada em solo americano. O Brasil esperou 50 anos ou mais  para  realizar  uma  nova copa.  A  inglaterra  tem todo  dirteito de  fazer  uma  copa  mais  depois do CATAR   que  se  abra  a forma  como  vai ser  realizado o  sorteio   colocando-se  na urna  todos os nomes  e na frente  de  toda  a  imprensa  mundial .  O Bom  seria  cada  um dos interessados  em sediar a copa colocar o nome  do seu país  para o sorteio. assim se evita ter  uma  urna  que  possa  so  ter o nome  de um país  so. e  fica mais transparente.  

  2. quanto ao valor  arrecadado

    quanto ao valor  arrecadado  de venda  dce ingressos  basta  se ter  tambem  controle total  sob  as vendas  poi  sabemos que  aqui no Brasil, ingresssos  sairam por fora. o que gero a investigaçao  da PF.  Cada Fifa  apresenta  o numero de cidadaos que querem  assistir a copa,  para  tanto  os  primeiros  recebem em casa  boleto bancario para pagamento  e o ingresso ira para sua  residencia. Com os  boletos  feitos  é so se fiscalizar  se  todos  tem o mesmo numero  de conta para  deposito assim se evita  fraude. e  se  houver  é  facil  identificar.  num estadio  que  pega por exemplo  60 mil pessoas  vamos dizer  que  cada seleçao fique  ai com  28 mil  porque  2 mil certamente ficaria  para autoridades  jornalistas  etc. Esses  28 primeiros  inscritos  vao pegar ingressos para os  jogos  que tem interesse de assistir. 

     

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