A geopolítica do (sub)desenvolvimento nas obras de Celso Furtado

Por Rodrigo Medeiros

Entre os muitos assuntos relevantes abordados nas obras de Celso Furtado, a questão da geopolítica do (sub)desenvolvimento esteve presente desde o seu clássico “Formação econômica do Brasil” (1959). Afinal, dificilmente se poderia compreender a evolução econômica e social brasileira, e latino-americana, sem levar em conta os conflitos e as tensões entre as grandes potências de seu tempo. Os ciclos econômicos globais estiveram conectados a essa lógica mundial de disputas por hegemonia.

Destacarei hoje, em homenagem ao centenário do nascimento de Celso Furtado (26/07), o livro “Criatividade e dependência na civilização industrial”, sua edição definitiva e que foi publicada pela Companhia das Letras em 2008. Furtado apontou então “que todos os mercados são de alguma forma imperfeitos. Daí a tendência estrutural, observada desde os primórdios do capitalismo industrial, para a formação das grandes empresas”. Historicamente, a abertura das linhas de comércio global esteve imersa em lógicas de dominação. Estado e empresas cooperaram ao longo desse processo, inclusive na “imposição” soft (ideologia) e/ou hard (uso da força militar) de padrões técnicos de produção e de consumo à periferia.

Técnicas produtivas poupadoras de mão de obra, por exemplo, integram parte das relações entre o centro e a periferia da economia mundial. Ainda que sejam eficientes para os países centrais, essas técnicas não são adequadas para a demografia dos países da periferia e ainda demandam o pagamento de patentes, royalties e assistência técnica. Nesse sentido, o investimento estrangeiro direto precisa ser avaliado nos países da periferia de forma mais crítica e abrangente em setores de intensidades tecnológicas médias e altas.   

Quando observamos no presente o xadrez da grande disputa comercial e tecnológica entre a China e os EUA, fica muito fácil identificarmos alguns elementos analíticos que estiveram presentes nas obras de Celso Furtado. Em síntese, na civilização industrial, a inovação vem pelo lado da oferta nos países centrais, ao passo que ela costuma se manifestar no lado da demanda nos países periféricos. Tal quadro acaba se refletindo estruturalmente no grau de concentração de rendas nas sociedades, um tema que hoje pode ser encontrado entre os autores estruturalistas que estudam a temática das redes de complexidade econômica.

Em relação ao processo brasileiro de industrialização, Furtado afirmou que “o esforço para dotar o país de uma autêntica infraestrutura industrial – capaz de articular o conjunto das atividades econômicas em torno de centros autônomos de decisão – seria modesto em suas pretensões e chegava tarde para romper as amarras da dependência”. Não podemos esquecer que a perna fraca do tripé nacional-desenvolvimentista foi o capital privado nacional. O Estado e o capital estrangeiros avançaram sobre “o déficit” da outra perna do tripé. Mais recentemente, desde meados da década de 1980, o processo de desindustrialização precoce acrescentou maior complicação para a retomada de um projeto nacional de desenvolvimento no Brasil.

Segundo Furtado, “o desenvolvimento das forças produtivas em condições de dependência não engendra as transformações sociais que estão na base da valorização da força de trabalho”. Desde 2016, de acordo com o IBGE, as desigualdades sociais cresceram e houve avanço da precarização no mercado de trabalho brasileiro. A perspectiva nesta pandemia é que haja a piora das desigualdades e da precarização laboral entre nós. O Brasil já vive, portanto, a expectativa de aprofundamento de uma distopia contratada.

No que diz respeito à armadilha das vantagens comparativas estáticas, Furtado ponderou que “o caminho da especialização internacional não requeria modificações de maior monta nas estruturas sociais: era um pacto que se estabelecia entre interesses externos e grupos dominantes internos”. Desenvolvimento e subdesenvolvimento são as duas faces da mesma moeda da economia global. A “industrialização dependente” fez parte dos processos socioeconômicos latino-americanos ao longo do século XX. Como alerta histórico, ainda atual, Furtado afirmou que “sendo o desenvolvimento a expressão da capacidade para criar soluções originais aos problemas específicos de uma sociedade, o autoritarismo, ao bloquear os processos sociais em que alimenta essa criatividade, frustra o verdadeiro desenvolvimento”. 

Ao longo da década de 1990, para se adequar à globalização neoliberal, sob a hegemonia norte-americana, boa parte da elite do empresariado industrial brasileiro aderiu ao ciclo de acumulação financeira. Não causa espanto, portanto, que mesmo durante a pandemia, o patrimônio dos bilionários brasileiros tenha aumentado US$ 34 bilhões. O apoio às reformas neoliberais, regressivas do ponto de vista social, é forte nesse grupo de pessoas e, como todos sabemos, a carga tributária é regressiva no Brasil. Tampouco deveria causar espanto que a Bovespa tenha se recuperado do tombo no início da pandemia, afinal, a riqueza de poucos está blindada pelas instituições brasileiras.

Rodrigo Medeiros professor do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes) e sócio do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento

 

Rodrigo Medeiros

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