A maioria das Dívidas Externas é ilegal

Notícia antiga, tema sempre atual.

 

“A atitude de Rafael Correa é quixotesca, mas será um grande exemplo”

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos.

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/noticias-anteriores/16618-%60a-atitude-de-rafael-correa-e-quixotesca-mas-sera-um-grande-exemplo%60

 

Como você foi convocado pelo governo do Equador para investigar a dívida desse país?

Tenho uma amizade com o doutor Alberto Acosta, que foi o presidente da Assembléia Constituinte do Equador e ministro de Energia do presidente Correa. Por outro lado, no Equador, conheciam minha investigação da dívida argentina. Terceiro, a Federação Luterana Mundial, que tem um programa de investigação da dívida ilegítima, propôs meu nome quando, em janeiro do ano passado, começou-se a falar de fazer uma auditoria. Finalmente, o ministro da Coordenação Política, Ricardo Patiño, conhecia muito o meu pai, por isso tinha antecedentes do que se havia feito através das causas iniciadas por um Olmos e continuadas por outro Olmos. 

Que trabalho realiza a chamada Comissão para a Auditoria Integral do Crédito Público, que você integra?

A comissão, criada por um decreto do presidente Correa, em julho de 2007, está subdividida em várias subcomissões. Uma analisa a dívida bilateral, outra a dívida multilateral, outra a dívida comercial com os bancos estrangeiros – e que eu integro –, que é a maior do Equador neste momento. A subcomissão jurídica analisa os aspectos jurídicos do endividamento: a legislação nacional e a estrangeira a que os contratos estão submetidos. Essa subcomissão é integrada somente por mim, que sou especialista em direito público internacional. Há outra subcomissão de impacto social e ambiental, que analisa os impactos da dívida no meio ambiente equatoriano e com respeito aos indígenas e afro-descendentes. 

Quais são os traços de maior destaque do trabalho da comissão?

O mais substancial é que a dívida comercial engloba os grandes processos da dívida do Equador, semelhantes aos da Argentina. Aqui houve três refinanciamentos sucessivos, em 1983, 84 e 85, que aumentaram imensamente a dívida. Outro grande momento foi o Plano Brady equatoriano, feito em 1994, uma cópia exata do plano argentino. Quem o fez foram as mesmas pessoas que fizeram na Argentina, Uruguai e Chile: o City Morgan. O terceiro momento foi a blindagem financeira e depois uma troca de títulos, a famosa Mega-Permuta de Domingo Cavallo, no ano 2000. No Equador, fez-se o mesmo: uma troca de títulos que significou um maior endividamento e o crescimento da dívida. 

O que essas semelhanças sugerem? 

Elas têm uma particularidade. Em 1992, aparece um escritório de advogados de Nova Iorque, advogados dos credores, o City Bank. Esse escritório passa a assessorar os governos argentino, uruguaio e equatoriano na mesma época. Através da documentação confidencial que vimos no Equador, mostra-se concretamente que esse escritório foi colocado pelos credores para “defender os interesses do nosso governo”. Mas, obviamente, não os defenderam, porque respondiam aos interesses dos credores. 

De fato, Richard Handley (ex-número um do Citibank) esteve muito próximo do ex-presidente Carlos Menemdurante sua campanha presidencial de 1989. 

Exatamente. Há outro detalhe chave: todos esses contratos foram preparados pelo primeiro escritório de advogados de Nova Iorque, que são advogados do Morgan e do Chase Manhattan Bank há 70 anos. E há uma particularidade: um dos personagens mais proeminentes desse escritório foi Williams Webster, que durante 10 ou 12 anos foi diretor do FBI (Gabinete Federal de Investigação norte-americano) e desde 1984 em diante, diretor da CIA (Agência Central de Inteligência norte-americana). Que um membro da CIA tenha integrado o escritório que estruturou o plano que ia endividar todos os países latino-americanos, para mim, é extremamente sugestivo. 

Os funcionários negociadores dos governos latino-americanos também se repetem? 

Na Argentina, Daniel Marx foi diretor do Banco Central em 1985. Até 2001, ele manejou o contrato com os credores e interveio em todas as contratações. Sendo secretário de Finanças de Domingo Cavallo, preparou o Plano Brady em 1992. Como prêmio à sua gestão, trabalhou com Nicholas Brady nos Estados Unidos. Voltou à Argentina e seguiu manejando o endividamento durante a gestão de Menem. Com Fernando de La Rúa, foi designado secretário de Finanças. Prestem atenção no seu nível de influência que, quando o ministro José Luis Machinea renunciou eRicardo López Murphy assumiu, Marx foi ratificado. E quando López Murphy foi embora e Cavallo assumiu, ele voltou a ser ratificado. 

E no Equador? 

Uma das chaves do manejo da dívida externa foi constituída por Ana Lucía Armijos, gerente do Banco Central do Equador durante a década de 80. Em 1992, ela assinou uma renúncia aos direitos de prescrição que o Equador tinha, atualizando uma dívida não-exigível. Como presidenta da Junta Monetária do Equador, foi uma das pessoas que instrumentalizaram o Plano Brady. Em 1999, como ministra de Finanças, preparou os elementos para a posterior renegociação da dívida através dos Bônus Global, que substituíram os Brady. Depois de ter cumprido um trabalho de mais de 15 anos endividando o país em sucessivas negociações, hoje ela é funcionária de um dos célebres organismos multilaterais que manejam esses aspectos econômicos. 

Quanto esses estudos privados se beneficiaram economicamente com as renegociações? 

A dívida argentina não pode se comparar com a equatoriana, que é de 14 bilhões de dólares, enquanto a argentina é mais de dez vezes superior. Cada renegociação significa onerosos contratos que os advogados sabem como manejar. Em um contrato que o Banco Central do Equador celebrou com o escritório de Nova Iorque, eram estabelecidos honorários por hora na ordem de 800 dólares. Na Argentina, na última contratação desses advogados, feita pelo presidente Néstor Kirchner em 2004, estabeleceram-se cifras parecidas. Além dos honorários, faturam gastos absurdos, com investigações na Internet. Na Argentina, suponho que as contratações sejam por um montante maior, mas não pude ver. Além disso, há comissões que não se pode conhecer, porque não são documentadas. 

Que peso poderiam ter os resultados da investigação da comissão sobre as decisões do presidente Correa a respeito da dívida de seu país? 


Nas três reuniões que tive com o presidente Correa, ele manifestou seu compromisso de impugnar os contratos nos Estados Unidos naqueles pontos que podem ser matéria de impugnação. Com respeito aos funcionários do Equador, iniciar ações legais para obter uma condenação não somente econômica, mas também penal em matéria de delitos. O caso dos Estados Unidos é mais problemático. 

Por quê? 

Porque os credores violaram a legislação dos Estados Unidos. Eu estudei as leis do Estado de Nova Iorque, onde a maior parte dos contratos da Argentina e do Equador estão submetidos. E pude ver que violaram pautas fundamentais do seu próprio direito. Isso será extremamente difícil, mas é um compromisso do presidente, que também tornou isso público a todo o país: disse que, se existiam elementos legais para questionar o endividamento, ele não iria recear em recorrer aos tribunais do Equador como o dos Estados Unidos. 

Além dos compromissos do presidente Correa, você crê que há condições para avançar nesse questionamento legal sobre o endividamento? 

Há condições porque o presidente tem um enorme apoio popular. A única coisa que ele tem contra é a imprensa, que responde aos poderes econômicos, aos bancos, e obviamente àqueles interesses que pela primeira vez estão preocupados com o que pode acontecer com os resultados da auditoria. Sobretudo, porque é a primeira vez na história equatoriana que um presidente manda abrir todos os arquivos do Ministério de Finanças, do Banco Central, da Casa da Moeda e de todo lugar onde possa haver documentação relacionada com a dívida. 

Que impacto você acha que terá no âmbito mundial? 

Será a primeira vez que um país se atreve a discutir sua dívida diante de tribunais de outro país e que coloca seus funcionários na justiça, para mostrar ao mundo inteiro que respeita a ordem legal e quer restaurar a ordem jurídica. Coisa que, na Argentina, lamentavelmente, não aconteceu. Quando na Argentina for lido o documento da auditoria equatoriana, será como ler seu próprio endividamento externo, porque os processos, os atores, os advogados intervenientes e os bancos credores foram os mesmos. 

O que você acha que pode acontecer nos países da região quando virem os resultados dessa investigação? 

Vai ser muito difícil para um país, quando conheça a auditoria equatoriana e veja as similitudes com seu próprio caso, não dizer uma palavra. Senão, seria pôr em evidência a fraude da dívida e consentir com essa fraude. Na última causa penal que iniciamos em Buenos Aires, os que recebiam meu depoimento não podiam acreditar. Eu não duvido – e não duvidei nunca – que tanto o presidente Kirchner como a senhora Kirchner tenham tido vontade de solucionar esse problema, mas os assessoramentos que tiveram, como o do doutor (Roberto) Lavagna, que fez a reestruturação em 2005, não permitiram que eles conhecessem realmente o processo. 

E a auditoria do Equador poderia mudar isso? 

Agora vão conhecer oficialmente através da publicação de um governo. Creio que alguns presidentes, inclusive a senhora Kirchner, vão acordar, e isso servirá de antecedente para iniciar algum tipo de ação ou, pelo menos, para dizer aos credores: “Senhores, olhem o que temos aqui, sabemos que na Argentina o caso é semelhante. Por que não no sentamos para negociar de novo sob outras condições?”. 

Haverá uma apresentação internacional do caso equatoriano? 

Em outubro, há um grande encontro em Oslo, organizado pelo Ministério de Relações Exteriores da Noruega e pelaFederação Luterana Mundial. Irão os principais funcionários do Equador, possivelmente os presidentes Correa,Fernando Lugo e Evo Morales, os primeiros ministros da NoruegaFinlândiaSuécia e os mais destacados juristas europeus para dar respaldo à auditoria da dívida equatoriana e enfocar que se deve modificar esse sistema, mostrando a fraude investigada no Equador. Isso terá grande repercussão na Europa, já que a Noruega perdoou a dívida equatoriana fazendo-se co-responsável e alegando que endividou o Equador para solucionar um problema interno da sua indústria naval. 

Que impacto tem o tema da dívida externa na sociedade equatoriana? 

No seu programa de TV aos sábados, o presidente Correa disse que sempre se priorizou o tema da dívida sobre os aspectos sociais, educacionais, de emprego. E aqui se tem perfeita consciência de que a dívida condicionou a vida econômica, social e política do país nos últimos 30 anos. 

Há um confronto entre Correa e os grandes meios de comunicação? 

O presidente disse: “Uma coisa é o jornalismo informando e outra é o jornalismo propondo uma ideologia para que as pessoas questionem alguma coisa, mas, além disso, falseando a verdade”. Leio os principais jornais do Equador e vejo a falsificação sistemática, por exemplo, do projeto constitucional que vai ser votado no dia 28 de setembro. Falam que é uma Constituição abortista, e isso é falso. Falam de plenos poderes para o presidente, e isso é falso. Quem lê o texto constitucional se dá conta de que estão mentindo descaradamente. É a manipulação da informação. Por isso, o presidente tem esse contato através de seu programa com o povo todas as semanas, percorre o país inteiro e, diante de centenas de pessoas, fala com todos. 

Que relação pode-se estabelecer entre a dívida da Costa Rica, que foi qualificada como “dívida odiosa”, e o caso argentino? 

O termo “dívida odiosa” é análogo ao termo “dívida ilegítima”. A dívida odiosa é uma dívida contraída por um país e não utilizada em benefício de seu povo. O Banco Mundial, ao falar da dívida da ditadura argentina, disse: “Essa dívida foi utilizada, em cerca de 30 por cento, para fuga de capitais, em cerca de 30 por cento para pagar interesses, e em cerca de 30 por cento para a compra de armamentos. E o povo argentino não viu nem um centavo”. Isso, além do mais, é matéria de um juízo. Com tudo o que aconteceu depois de renegociar permanentemente esse delito, temos que concluir que a maior parte de nossas dívidas são dívidas odiosas. A questão é propor isso. Já disse Collin Powell: “A dívida do Iraque é a dívida contraída por um ditador, que não foi utilizada pelo povo iraquiano e, em conseqüência, é uma dívida que não deve ser paga”. Obviamente que, depois, por questões políticas, esqueceram disso. 

Como você avalia a política de Néstor e Cristina Kirchner em matéria de dívida externa? 

Penso em termos de um grande equívoco. No livro que Torcuato Di Tella publicou, as conversas com o ex-presidente Kirchner, pode-se ver que Kirchner se equivoca aí pela primeira vez quando disse: “Lamentavelmente, a dívida é uma fraude que não se pode pagar e há um monte de problemas, mas ela foi legitimada”. E um princípio fundamental de ordem jurídica determina que os delitos não podem ser legitimados nem por um Congresso, nem por um Presidente nem por nada. Há uma sentença judicial esquecida, desconhecida na Argentina, na qual se estabeleceu a fraude da dívida. 

E se o presidente se equivocou, de quem é a responsabilidade? 

Eu acho que o então presidente foi muito mal assessorado por seu ministro de Economia, que lhe disse: “Olhe, presidente, essas são as únicas opções”. Nem o ex-presidente Kirchner nem a presidenta Cristina tem a obrigação de conhecer os meandros da dívida, nem os contratos, nem nada. Eles, evidentemente, são responsáveis diante do país, mas confiam em seu ministro. E o ministro Lavagna foi o arquiteto da transformação de 2005 e um dos elementos chave dessa loucura, que atualmente significa a dívida na Argentina – ainda que o Governo queira minimizá-la –, que são os bônus que foram emitidos atados à inflação. Bônus que, neste momento, estão tributando, se olharmos a inflação real, um juro descomunal, inédito no mundo inteiro. Não concordo com esse critério de alguns organismos que falam que o presidente Kirchner é um “vendedor da pátria”. 

E qual a sua opinião? 

Sou bem mais prudente e entendo que, às vezes, os presidentes se equivocam, e o erro não supõe um delito ou uma ilegalidade. O que acontece é que há uma grande responsabilidade histórica nesse caso, porque o ex-presidente deveria saber que o que ele fez não só não serviu, mas também que, a qualquer momento, vai significar uma verdadeira catástrofe econômica. 

Como você crê que a Argentina fará para afrontar os vencimentos da dívida no próximo ano? 

Há uns dias, Standard & Poors e outras agências qualificadoras de risco baixaram a qualificação da dívida. Agora, essa qualificação é feita pela Morgan, que é quem estabeleceu as pautas de qualificação da dívida. O negócio é dizer: “Hoje, vou baixar a qualificação de tal país, porque isso vai lhe obrigar a fazer tal e tal coisa”. 

Inventam os condicionamentos. 

Outra coisa que não desconheço, porque vejo no Equador, são as pressões e as coações. Imagino que com o ex-presidente Kirchner e com a senhora Kirchner funcione da mesma maneira. Devem estar lhes pressionando de forma permanente. A questão é dizer: “Senhores, eu vou enfrentar isso. Eu vou terminar com esse sistema”. Como o presidente Correa fez. Se isso tivesse sido feito em conjunto por Correa, pela presidenta Cristina Fernández, pelo presidente Lula… seria diferente. Lamentavelmente, a atitude de Correa é quixotesca, mas acho que vai ser um grande exemplo. 

Como você avalia o cancelamento da dívida com o Clube de Paris? 

A atitude genuflexa de pagar o Clube de Paris mostra a debilidade do Governo frente os credores e, principalmente, um claro desconhecimento do estado de direito. Essa dívida foi matéria de uma denúncia que se encontra em pleno trâmite no Tribunal Criminal e Correcional Federal, a cargo do Dr. Jorge Ballestero. Ali foi acrescentada uma perícia de auditores do Banco Central que mostrou que um dos empréstimos reclamados pela Holanda era fraudulento e não devia ser pago. Além disso, são créditos que jamais foram auditados, que têm uma ilegitimidade de origem e que respondem ao velho e venerável sistema da dívida, que ninguém discute. Admite-se que se deve pagar, ainda que não se deva. É inadmissível que se desconheça que um elementar princípio legal determina que uma dívida que é matéria de uma investigação criminal não pode ser reconhecida e paga até que haja uma sentença que o determine com absoluta clareza. 

Você se opôs ao pagamento da dívida ao FMI em 2005, não é verdade? 

Junto com Pérez EsquivelMario CafieroEduardo MacaluseClaudio Lozano Nora Cortiñas, interpomos um recurso de amparo para que a dívida não fosse paga ao FMI, mas não houve forma de reverter isso. Fundamentávamos a questão em aspectos chaves. Essa dívida com o Fundo não devia ser paga porque a maior parte era dinheiro que entrou no país e foi desviada por 520 empresas. A Argentina não recebeu esse dinheiro, porque ele chegou e se desviou. O que dizíamos é: houve evasão fiscal através dessas empresas, o dinheiro que veio se desviou, e o FMI proíbe expressamente, em sua carta constitutiva, emprestar dinheiro para que seja desviado. 

Como o FMI sabia que esse dinheiro era desviado? 

Porque a Comissão de Avaliação Independente do FMI realizou um informe, praticamente sepultado por Anne Krueger, que determinou que o Fundo sabia exatamente que o dinheiro que chegava ao país era desviado. Então, nos perguntamos como o presidente vai pagar uma dívida nessas condições. Por outro lado, o argumento do presidente foi: “Libertamo-nos do condicionamento do Fundo”. E a única maneira de se libertar dos condicionamentos do Fundo é ir embora do Fundo, porque, sendo membro, seguimos submetidos a suas auditorias. 

Você acha que a relação com o Fundo não mudou desde então? 

O que eu acho é que, quando o FMI foi pago, não tínhamos nenhum acordo com eles: a Argentina estava pagando as obrigações. Os interesses que o FMI nos cobrava sem condicionamento nesse momento eram de 4,5 por cento. Quando o ex-presidente pagou, teve que compensar o pagamento ao Banco Central com bônus que emitiu e queChávez comprou com juros superiores a oito por cento. Ou seja, não foi um bom negócio.

Redação

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