A nova cara do brasileiro

Ontem entrevistei Flávio Comim, responsável pela pesquisa  “Relatório do Desenvolvimento Humano, 2009-2010”, do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento,  feita em parceria com o Instituto Paulo Montenegro, do IBOPE.

É a primeira pesquisa abrangente sobre valores dos brasileiross. Embora ainda haja necessidade de novas pesquisas consolidando a primeira, Comin identifica valores compatíveis com sociedades desenvolvidas, o principal dos quais é a transcedentalidade – a capacidade de pensar fora de si, no outro ou no mundo.

A transcrição foi de Lilian Milena.

Luis Nassif – Flávio, primeiro, qual o universo que foi consultado nesse relatório?

Flávio Comim – Nós trabalhamos em parceria com o Instituto Paulo Montenegro, do Ibope, e resolvemos fazer duas amostras nacionais. Por que nós fizemos isso? Porque nós queríamos ter alguns resultados robustos por região.

Então, foram entrevistadas 4 mil pessoas, aliás um pouco mais, pra que nós pudéssemos ter algumas discussões abertas também pra falar de gênero, pra falar de idade…pra falar de renda, e ter uma análise mais robusta a um nível local.

Então, foi isso. Fizemos duas amostras padrão, e junto com isso entrevistamos mais de 4 mil pessoas.

LN – Pegaram o perfil da população brasileira?

FC – Exatamente, mais de 300 cidades, seguindo padrões amostrais que são definidos pelo Ibope, seguindo o IBGE.

LN – Foram só entrevistas, ou teve também reuniões presenciais, discussões mais aprofundadas?

FC – Olha, nós fizemos esse trabalho em várias etapas. No início desse trabalho, que foi a campanha ‘Brasil Ponto a Ponto’, nós escutamos mais de meio milhão de pessoas, num portfólio de atividades que envolveu visitas aos dez municípios de índices de desenvolvimento humano mais baixos do país, em grupos focais, sete audiências públicas nas principais cidades, em todas as regiões do país, assim como a participação das pessoas por SMS, internet, questionários de papel que enviamos. Foi onde o tema valores surgiu.

Quando nós passamos pra esse segundo momento da pesquisa, que foi algo mais científico, mais estruturado – porque a primeira foi aberta – nós, então, tivemos o cuidado de seguir um método formado pela psicologia social, e com isso foram apenas uma maneira de coleta, que foi através das entrevistas.

LN – Esses valores que vocês levantam, vocês estabelecem um paralelos com o avanço de sociedades que já passaram por esses processos? Dá pra perceber que acompanham, digamos, a modernização do país, ou são valores que independem de desenvolvimento humano?

FC – É uma boa questão. Tudo que nós fizemos foi estabelecer a relação entre valores e desenvolvimento humano. E o que nós percebemos, de uma maneira bastante clara, é que parte desses valores refletem o estágio de desenvolvimento que nós estamos.

Nós comparamos esses resultados com equivalentes pra outros países. E nós vimos que, diferentemente de outros países, que também têm cuidado pelo bem estar dos demais, como primeiro ponto – isso é comum -, ou o cuidado pela humanidade ou natureza – isso é comum -, a grande diferença é  na questão da segurança, da estabilidade social.

Hoje em dia você dá um valor à estabilidade social, no Brasil, que é um valor compatível com países desenvolvidos, e que você não dava no Brasil há alguns anos atrás…

LN – A segurança é entendida como estabilidade, não apenas como uma segurança física…

FC – Exatamente. É a estabilidade social. Estabilidade social é o apreço que você tem, o valor que você dá, à ordem social, não apenas em termos macro, mas também em termos micro: dentro da sua casa, se está todo mundo bem, se a família está bem…

Então, esse sentido de segurança é a principal diferença entre estudos menores, que foram feitos no Brasil anteriormente – esse é o primeiro estudo que foi feito em escala, com amostragem nacional – mas com algumas referências feitas anteriores que você tinha no Brasil, e com estudos comparativos – o European Society Favorei faz estudos dessa natureza, já há vários anos – você vê que é a estabilidade social. E junto com isso, a queda do mito de que pro brasileiro o único valor que interessa é o hedonismo, o prazer.

Isso não é verdade. O hedonismo ficou na parte de baixo desse ranking calculado.

LN – Se for pegar a classe de maior renda e de menor renda, há diferenças substantivas entre os valores prioritários?

CF – Olha, nós temos diferenças, sim. Uma coisa interessante, já respondendo sua pergunta, mas adicionando um elemento, é que nós vimos que as pessoas que trabalham, ou seja, não apenas a questão da renda, mas a questão do trabalho, elas são pessoas que têm valores maiores de abertura às mudanças e menores de conservadorismo. Ou seja, o valor não é neutro em relação ao trabalho.

Em relação à renda, se a renda a renda individual das pessoas é maior do que cinco salários mínimos, elas têm valores maiores de abertura à mudança. A mesma coisa vale em nível superior da pessoa, e do nível superior da mãe da pessoa…

LN – Isso pode ser explicado pelo seguinte: para esse pessoal de cinco salários mínimos a mobilidade social pode ser pra cima, enquanto que o pessoal de renda mais baixa, tem aquela insegurança de poder voltar para baixo. Pode ser essa explicação?

FC – Essa é uma boa explicação, sem dúvida nenhuma. Acho que juntamente a essa explicação, a gente pode retratar o emprego como um conjunto de vivências. E essas vivências, que você pode ter quando ganha mais do que cinco salários mínimos, são vivências mais amplas que possibilitam um maior entendimento e o cultivo de valores de abertura às mudanças.

Quando, talvez, o tipo de vida que você tem, o tipo de trabalho que você tem, quando está ganhando abaixo de um salário mínimo, é algo que torna a vida muito mais limitada, pelo tipo de realizações que você pode ter. Então, acho que os dois são boas explicações.

LN – Agora, em relação a essa questão de classe de renda mais alta e mais baixa, como que entram os valores da solidariedade num extremo e no outro?

FC – Esses valores são independentes de renda. Esse conjunto de valores que nós vamos chamar de auto-transcendentes – que é você se preocupar com outro – eles independem de renda. Mas depende de duas coisas: eles dependem do gênero e eles dependem da idade. Ou seja, se você é mulher, você tem valores auto-transcendentes maiores que os homens, e se você é mais velho, você tem valores auto-transcendentes maiores do que dos jovens.

O que aponta pra um problema muito grave: por que os homens jovens são os menos auto-transcendentes entre todos? E talvez, aí, uma porta de entrada pra que a gente consiga discutir problemas que o relatório levanta, que são problemas de educação e de violência no país, que foram apontados na campanha, lá no início do ‘Brasil Ponto a Ponto’, como os mais preocupantes.

LN – Agora isso aí comprova também dois pontos das políticas sociais relevantes: um, esse fato da Bolsa Família se concentrar nas mulheres; e outro, um estudo que saiu  algum templo atrás, mostrando que 55% dos aposentados pensionistas são arrimos de família. Então esses, digamos, são as âncoras das famílias, da coesão familiar no Brasil. Seria isso?

FC – Muito interessante você citar isso, porque foi um dos resultados não intencionais, talvez mais estimulantes, que nós tivemos aqui nessa pesquisa de valores.

A gente vê que quanto maior o seu nível de educação, maior seu valor de abertura à mudança e menor o seu conservadorismo. Agora, quanto maior o nível de educação da sua mãe, não somente você permanece nesse feito de abertura, maior abertura às mudanças e menor conservadorismo, mas você ganha em auto-promoção, valor de auto-promoção.

A sequencia é óbvia: então você deveria, num programa como o Bolsa Família, estar investindo não somente na educação da criança, mas tanto quanto isto é difícil, investindo na educação das mães. Porque quando você investe na educação das mães você gera nos filhos o valor de auto-promoção, que exatamente são valores contrários à dependência, que é a grande crítica que se faz desse programa.

Então, é um resultado é singelo, ele é simples. Difícil de ser executado, porque a educação das mães é algo complicado, por inúmeras razões, mas que pode nos dar uma porta efetiva de saída pra quando valores como instrumentalmente importantes pro sucesso do programa.

LN – Recentemente saiu esse livro sobre ‘A cara do Brasileiro’, um conjunto de perguntas pro pessoal de classe alta e classe baixa,. A partir dessas perguntas se caracterizava a classe de menor renda como portadora de menos valores, e a classe de maior renda, de mais valores. E, simultaneamente, saiu um estudo do Data Popular, que é um instituto de pesquisa muito bom, mostrando que, justamente, nas classes de menor renda, do ponto de vista concreto, sem ser declaração, sem ser resposta ‘politicamente correta’, ou não, é onde havia mais solidariedade. Como que vocês fizeram para identificar o que é a resposta ‘politicamente correta’ do que é a prática correta?

FC – Tem duas coisas aqui que são importantes mencionar: a primeira, é que quando você está fazendo uma pesquisa, você tem uma fundamentação teórica para cada pesquisa, e muitas pesquisas que você faz, que tem a ver com os estudos chamados World Reality Survey, eles pressupõe uma dicotomização da sociedade, entre materialistas e pós-materialistas. Os materialistas se preocupam com valores muito mais de conservação e subsistência. E os pós-materialistas, então, teriam valores de alteridade.

No nosso estudo, aqui, nós não consideramos essa dicotomização como apropriada para entender os valores de uma maneira mais universal e mais completa. Por isso, nós não testamos esse modelo.

Mas algumas pessoas usam, mais pra justificar comportamentos políticos. O objetivo é esse.

Então, a gente tem um problema de que a fundamentação teórica, não apenas o resultado, é algo que, no nosso julgamento, tem várias limitações. O que não quer dizer que não possa gerar resultados interessantes.

O quê a gente vê? O que a gente vê, respondendo a sua segunda pergunta, que o que as pessoas dizem não é, necessariamente, o que as pessoas fazem. Que uma coisa são os valores que as pessoas têm, e a segunda coisa é como elas vivem, ou não, esses valores.

Nós fizemos a opção por fazer um estudo de referência sobre valores. O próximo passo é você testar comportamentos pró-social. É saber como que esses valores são realmente vividos, ou não.

Nós temos um outro resultado, que está sendo elaborado, e deve ser lançado daqui umas três semanas, que é o IVH, Índice de Valores Humano. Nós pegamos alguns desses elementos e fizemos uma pesquisa, também em caráter nacional, nas dimensões do IDH – do Índice de Desenvolvimento Humano: saúde, educação e a questão do trabalho. E ali aparecem alguns resultados mais concretos sobre algumas vivências, que eu não posso antecipar agora, mas que teria maior prazer de falar depois sobre eles, que tentam fazer uma ponte entre o que você diz e o que você faz.

LN – Vocês têm outras pesquisas pra poder definir um histórico dessa evolução do pensamento do brasileiro?

FC – No Brasil a gente tem toda uma discussão de antropologia, que nós detectamos, e toda uma discussão de sociologia, que trabalham com categorias diferentes de valor. Porque sempre o problema de valores são o problema de valor político, aqui no Brasil.

A gente, ao fazer esse estudo sobre o perfil dos valores do brasileiro, sendo o primeiro estudo em escala nacional que definiu essas categorias como a psicologia social trata.

Então, a gente buscou algumas referencias em estudos parciais, mas com algumas amostras interessantes, que foram feitas em 2007, em 2003, e que eram, então, os únicos referenciais.

Mas, nós, não temos um histórico. Com esse estudo a gente deu a primeira contribuição pra entender isso numa escala maior, em escala nacional.

LN – Quando você pega antropologia, sociologia, tudo, você tem várias interpretações do brasileiro, a ideia do brasileiro cordial, esse negócio todo… Hoje, dada a complexidade do país, o tamanho do país, a diversidade do país, você acha que é possível o sociólogo, ou interprete brasileiro, ter os insights  que o Sergio Buarque teve, sem pesquisas abrangentes como esta?

FC – Acho muito mais difícil. Porque o que nós fazemos quando nós sistematizamos alguns resultados, é que nós levantamos algumas tendências e algumas regularidades, que não vão ser aplicáveis especificamente a cada indivíduo, mas que dão alguns traços culturais de uma maneira mais sistematizada.

O que acontece, hoje, é que você tem uma complexidade que tem a ver também com a complexidade da organização social. E pra você ter essas características, você não consegue contar mais de uma história. Você tem uma multiplicidade de histórias.

Por isso que a estatística ajuda. Porque nós podemos contar a história das mulheres, a história dos idosos, dos jovens, de quem não tem dinheiro, daquelas pessoas que foram discriminadas, por uma ou outra razão, história das pessoas que têm uma família diferenciada, a história de quem tem filhos com que não têm filhos. Então a gente consegue contar uma diversidade de histórias, e a estatística ajuda nisso.

Mas isso, de maneira nenhuma, deve ignorar o fato de que existe um lugar de onde nós viemos. Existe uma coletânea dessas tendências, que a gente precisa conciliar com as explicações que temos hoje.

Acho que hoje seria muito difícil, mas isso de maneira nenhuma invalida todas as contribuições que foram dadas anteriormente.

LN – Mas o que eu digo é, ao longo do tempo, você tinha, lá, os interpretes que deram suas contribuições, e ao longo do tempo foram criados estereótipos… Na sua opinião, essa pesquisa ajuda a quebrar quê tipo de estereótipo brasileiro?

FC – O primeiro estereótipo que ela quebra é a ideia do hedonismo. De que o brasileiro é hedonista. Eu já vi isso muitas vezes fora do país…

LN – Eduardo Giannetti da Fonseca…

FC – É! Com uma grande caracterização. O Eduardo tem uma frase interessante, que nos ajuda a pensar o relatório, ao dizer que o brasileiro é sempre o outro. Essa dicotomia que existe, que o brasileiro que diz que existe o racismo, mas ele não é racista, existe o preconceito, mas não é ele que faz…, nos ajuda a entender o hiato entre o dizer e o fazer. Essa é uma contribuição que nos ajudou bastante na pesquisa.

Um outro mito que cai, é de que o brasileiro não dá valor a estabilidade social. O brasileiro dá valor à estabilidade social. E talvez aqui esteja o fato mais interessante, que mostre que nós talvez estejamos num momento de desenvolvimento interessante no país. Não porque a renda cresceu, não porque algumas instituições estão mais fortes, mas, simplesmente, porque existe uma conscientização das pessoas que têm alguma coisa a ver relacionada com como elas se tratam, como os valores, e que ali, sim, reside o significado do desenvolvimento do país. Talvez, esse seja o aspecto mais interessante…

LN – Se eu pegar os anos 80, lembro que no meio daquele tiroteio social, inflação, aquele negócio todo, a casa própria era um negócio tão importante, não a casa em si, mas o próprio endereço, pra pessoa de baixa renda, que o endereço era uma âncora social. Talvez esse desejo da estabilidade já estivesse presente, há muito tempo, mas não fosse captado nem pela mídia, nem pelos estudos.

FC – Claro. Acho que você tem toda razão. Eu, durante minha trajetória, entrevistei muitas pessoas pobres, alguns em situação estrema de pobreza, e você vê, com muita clareza, como o fato, ou de não ter endereço, ou de ter um endereço inadequado, é um fator de exclusão social e humilhação cotidiana pras pessoas, bastante forte. 

Luis Nassif

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