A paranoia da democracia em risco

Do Valor

“Udeenizar” de vez?

Fábio Wanderley Reis | 09/09/2010 

Popularidade do presidente Lula faz surgir a paranoia da democracia em risco e de mexicanização

Pouco tempo atrás, no Brasil, os democratas preocupavam-se com as ações de gente ideologicamente levada a menosprezar as eleições como algo “burguês” e supérfluo e a admitir, ou mesmo buscar, um poder ditatorial para realizar metas revolucionárias. Afora os sonhos radicais de uns tantos renitentes, isso acabou. Mas o momento eleitoral que vivemos, em que a popularidade inédita do presidente Lula o torna o protagonista maior de uma provável vitória eleitoral de feições – e, aparentemente, proporções – também inéditas, faz surgir a paranoia da democracia em risco, minoritária mas barulhenta (como costumo lembrar, eleitorado e “opinião pública” não se confundem, e são várias e fluídas, na verdade, as “opiniões públicas”, algumas mais vocais que outras). E tome denúncias de “mexicanização” e PRI, ameaças corporativas de Estado-amálgama que junta sindicatos e empresários, personalismo e imposição pessoal da candidata petista, uso da máquina governamental.

Pessoalmente, não gosto nem um pouco de Dilma Rousseff como candidata. Talvez seja gestora competente. Do ponto de vista eleitoral, porém, é, sim, um poste que jamais se viabilizaria por si mesmo (o que tem desdobramentos relevantes para a avaliação da liderança presidencial, em sentido mais exigente, que seria capaz de exercer), e sua provável eleição é, claramente, puro e simples milagre de Lula. De outro lado, seria bom ter no PT um partido institucionalmente consistente, em vez da entidade posta na sombra do Super-Lula. Mas é difícil pretender que as coisas sejam melhores no PSDB, onde quem é posto na sombra, pela leitura feita das necessidades eleitorais, é sua figura maior, Fernando Henrique Cardoso, na campanha infeliz que resulta das vacilações e do joguinho míope de poder na escolha do candidato presidencial e que se viu há pouco reduzida a xingar pelas violações do sigilo fiscal – que precisam ser apuradas, é claro.

QuaQuanto aos riscos “mexicanos”, à parte o diagnóstico adequado do PRI e seu sistema, somos levados às questões complicadas em torno do que F. Zakaria chamou de “democracias iliberais”: eleições garantirão por si só a democracia ou será preciso atentar para o autoritarismo (cesarismo, bonapartismo, “bolivarianismo”) que se vale do apoio popular para afirmar-se? Há aí um problema autêntico. E é revelador das tentações envolvidas o fato de termos ouvido do próprio FHC, como presidente, a invocação da “voz rouca das ruas” a propósito da mudança legal que lhe permitiria reeleger-se.

Mas não basta, naturalmente, a força do apoio popular e eleitoral para que se possa falar de autoritarismo. É preciso que haja o empenho de usá-la como instrumento para acomodar as instituições aos desígnios autoritários (veja-se a Venezuela de Chávez); e, nessa ótica, a denúncia de risco autoritário mostra a cara de simples expediente de briga eleitoral. Não é senão de justiça lembrar que a iniciativa da “rerreeleição” não teve a acolhida de Lula, apesar de legalmente poder ser conduzida em termos tão respeitáveis como a introdução da reeleição com FHC. E não creio que alguém se disponha a questionar a independência de nosso Judiciário perante o Executivo, incluída a Justiça Eleitoral ativa e ativista, ou a importância da atuação do STF na revisão judicial das políticas públicas (ponhamos de lado o silêncio em torno das numerosas nomeações de Lula para o tribunal, em cuja recomposição extensa ninguém acusa política partidária ou ideológica). Tampouco se veem restrições governamentais à atividade dos partidos, em geral, de que Lula na verdade depende no Congresso e eleitoralmente. Talvez sejam as propostas sobre controle da imprensa as que melhor servem à paranoia, embora a questão certamente deva ser considerada (afinal, até quanto ao Judiciário o controle externo é recomendável) em termos mais sofisticados do que os resultantes da frequente arrogância ideológica de uma categoria profissional – ou dos interesses correlatos. De toda forma, não se falou de ameaça à democracia quando Sérgio Motta anunciava o projeto de 20 anos de poder do PSDB, assim como não se fala a propósito da prolongada hegemonia de partidos socialdemocratas em algumas democracias europeias exemplares. E não cabe esperar que, para ser democrático, um partido deva tratar de perder eleições de vez em quando.

Resta a crítica ao Estado-“amálgama”. Evocando o “corporativismo” de ressonâncias negativas, ela omite o neocorporativismo como instrumento socialdemocrático e redunda em seletividade quanto a quem pode partilhar da intimidade do Estado: os sindicatos são um perigo… Mas que dizer de que a aprovação do fundamental das políticas que permitem o amálgama é – ainda bem, de muitos modos – imposta pelo próprio processo eleitoral aos candidatos oposicionistas?

Ah, o uso da máquina. Será que não basta a Justiça? Talvez se queira, tudo somado, “udeenizar” de vez e tentar chamar os militares. Mas “marchas da família” parecem difíceis. 

Luis Nassif

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