A que deve servir a ciência e a pós-graduação no Brasil?, por Luís Felipe Miguel

A que deve servir a ciência e a pós-graduação no Brasil?

por Luís Felipe Miguel

​Não me tornei professor por vocação, mas por falta de opção. Rapidamente me desencantei com a profissão que tinha escolhido, jornalista, e a segunda opção – revolucionário profissional – não parecia disponível. Fui cursar mestrado e depois doutorado para continuar fazendo algo de que gostava, ler, pensar e escrever, e adiar a escolha de um rumo na vida. Com as habilidades que adquiri, virar professor foi a única alternativa: para que mais serve um doutor em Ciências Sociais? Mas não falo bem e não gosto de falar; meu natural é ficar calado. Meu pai costumava dizer que “mais de três pessoas pra mim é multidão” e eu assino embaixo. Vinte anos se passaram e, embora eu disfarce o melhor que consigo, a sala de aula continua não sendo um local onde me sinto em casa.

Falei que não tinha alternativa, mas não é estritamente verdade. Pouco antes de assumir minha vaga na universidade, me ligou um ex-professor, que tinha uma consultoria, me propondo trabalhar com ele. Eu ganharia, segundo disse, “uma vida bem mais confortável”. Agradeci e recusei, não apenas porque o trabalho na consultoria não me atraia ou porque, da minha perspectiva de bolsista, o salário de professor já me garantiria uma vida confortável o suficiente. É que, à parte a sala de aula, a universidade me prometia autonomia para pesquisar e escrever. Esse é um diferencial do qual não me disponho a abrir mão.

Mas anda cada vez mais ingrato fazer pesquisa na universidade. Estamos submetidos a constrangimentos crescentes, dados os critérios das agências de avaliação, que são impostos de forma arbitrária e com baixíssima discussão com a comunidade cientifica.

O espaço da pesquisa, no Brasil, é a pós-graduação. E a vida e a morte da pós-graduação são definidas por uma nota de 2 a 7, o “conceito CAPES”, definido antes a cada triênio, agora de quatro e quatro anos. A CAPES deveria ser uma instituição de apoio às pós-graduações, mas é uma camisa de força. Aplica o mesmo metro para todos os programas, ignora solenemente suas especificidades e, como resultado, enviesa todo o sistema na direção, por um lado, das ciências naturais e, por outro, do Sudeste.

Exemplo: a redução do tempo do mestrado para quatro semestres enfrentou a oposição quase unânime da área de humanidades, que entendia que a medida levaria a um rebaixamento profundo do nível de treinamento que o mestrado deveria proporcionar. Foi implementada mesmo assim e hoje todos nós aceitamos o prazo diminuído como se fosse um dos mandamentos sagrados. Exemplo: os custos de deslocamento dos programas mais afastados dos grandes centros não entram na conta de financiamento da pós-graduação. Exemplo: o fato de que um programa pode ser o único espaço de pesquisa e de pós-graduação em sua disciplina em toda uma região tem peso quase nulo na avaliação. Para manter a nota da CAPES, seus pesquisadores devem virar as costas para onde estão e buscar obsessivamente publicar nas revistas “bem ranqueadas”, quase todas do Centro-Sul ou estrangeiras.

O pesquisador é visto como uma máquina de produzir papers. Um artigo obscuro publicado numa revista bem classificada, que será lido, segundo a lenda, por menos de três pessoas em média, é importante para o currículo. O diálogo com a sociedade civil e com movimentos sociais, crucial para muitos cientistas sociais, não vale nada. A ideia de que o conhecimento que produzimos deve servir à sociedade que nos financia é, quando muito, um slogan desprovido de sentido.

O fetiche da “internacionalização” afasta ainda mais a pós-graduação do mundo que a cerca. Muitas vezes, ela premia a inserção subordinada em redes de pesquisa dos países centrais, cabendo a nós pouco mais do que a coleta de dados. O ideal da publicação em inglês, que aparece como objetivo em si mesmo e que deve predominar mesmo em periódicos editados no Brasil e financiados pelo Estado brasileiro, reduz ainda mais nosso público leitor; em geral, dada a qualidade do inglês praticado pela maioria dos cientistas sociais brasileiros, nem os anglófonos nos leem.

O sistema todo leva a um engarrafamento de artigos nas revistas melhor ranqueadas pela CAPES, as únicas que “contam” para a avaliação dos programas. Entre a submissão e a eventual publicação, se passam muitas vezes mais de dois anos. O nível dos pareceres em geral é fraco, o que é explicável – o parecer é um trabalho extra sem qualquer tipo de retribuição simbólica ou material e os editores precisam escolher entre pesquisadores experientes mas já sobrecarregados de trabalho ou pesquisadores inexperientes. Muitas vezes, os pareceres simplesmente parecem cobrar pedágios (“faltou citar A e B”) ou demandar explicações sobre questões laterais, sem enfrentar os argumentos centrais do texto. É comum ouvir de colegas a reclamação de que os artigos mais ousados e criativos são os mais difíceis de serem aprovados. Uma revisão de literatura ou a confortável aplicação de um modelo já consagrado são o caminho mais certo para o sucesso.

Não tenho grandes queixas pessoais – bem ou mal, arranjei meu espaço dentro do sistema tal como ele é e recebo as prebendas destinadas aos considerados “produtivos”. Mas os efeitos deletérios sobre a qualidade de nosso debate são visíveis. A hiperespecialização é premiada; devo evitar o embate com modelos, métodos ou teorias alternativas, que amplia o risco de inconsistência ou incompletude do que produzo. Se minha posição numa rede de pesquisadores depende da adesão a determinada linha de estudos, devo permanecer fiel a ela, mesmo que já identifique seus limites, pois o custo de abandonar a rede pode ser desastroso. Posso ser crítico do Wertfreiheit weberiano, mas devo mimetizar a pretensa “neutralidade” científica nos meus escritos e intervenções – uma injunção que se tornou ainda mais poderosa depois do golpe, quando o risco de perseguição política a pesquisadores críticos se tornou palpável.

Também não creio que devamos abrir mão de critérios de avaliação ou de cobrar que professores e pesquisadores devolvam à sociedade o investimento que neles é feito. Mas seria preciso repensar coletivamente, de forma aberta, o funcionamento do sistema e seus vieses. Seria preciso discutir que perfis são desejados, levando em conta a multiplicidade de situações e de interações entre as ciências e a sociedade. Seria preciso discutir a que deve servir a ciência e a pós-graduação no Brasil. Seria preciso discutir que tipo de incentivos queremos seguir, em vez de correr atrás de qualquer cenoura que a CAPES ponha na nossa frente.

 

Luis Felipe Miguel

13 Comentários

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  1. Direto ao ponto

    Luiz Felipe Miguel se mostra corajoso, ao colocar em discussão esse tema ‘proibido’. A quem servem as pesquisas acadêmicas feitas no Brasil? Para que público são dirigidas as publicações? Quem as lê?

    Fica a sugestão para abordar num próximo artido a aplicabilidade das pesquisas desenvolvidas nas universidades brasileiras e quantas delas se transformam em patentes ou se mostram viáveis para melhorar os serviços públicos, como os de Saúde e  Educação, por exemplo.

  2. Se no mundo esse modelo tolo

    Se no mundo esse modelo tolo produtivista e baseado totalmente na estética faliu, imagine no Brasil, a perferia científica do mundo.

    Temos talento, mas não dominamos nenhuma área do conhecimento. Somos periferia em tudo, mesmo naquilo que nos achamos bons como computação, agricultura, medicina e aeroespacial.

    A nossa elite é colonizada principalmente na mentalidade simplista e mimetista. Apenas imitamos, acriticamente todo que o mundo rico nos manda imitar.

  3. Justificativa interessante
    O comentário é feliz e pontual. No entanto, devo comentar algo que nós brasileiros não sabemos. A independência financeira é algo muito importante na vida de um cientista, sem essa independência o cientista se torna preso e muitas vezes infeliz por estar ministrando em faculdade. Abra o diálogo para falar sobre isso! Por favor!

  4. Quem tentar inovar é engolido
    Quem tentar inovar é engolido por um método falido que só serve para encher o currículo. Mas de ordem prática, poucas pesquisas são suficientemente relevantes ou consistentes. Não por falta de bons pesquisadores, mas para manter um sistema de pesquisa fast food e que só serve para alimentar o lattes.

  5. Engessamento
    Além de bem escrito, seu texto diz muita coisa que parece estar continuamente entalada aqui no laríngeo de qualquer apaixonado pelos conhecimentos da humanidade. Nossa situação só não é trágica, pois nem tragicamente ela nos serve!

  6. Fiz mestrado e doutorado
    Fiz mestrado e doutorado querendo me tornar um bom professor, mas fui obrigado pelo sistema a fazer pesquisa. Frustrei-me e, agora, estou prestes a começar uma nova faculdade e carreira. A pós-graduação precisa ser repensada, afinal ela não é só mão-de-obra barata para os pesquisadores, ela forma pessoas que têm suas próprias metas.

  7. Na mesma linha de raciocínio,
    Na mesma linha de raciocínio, escrevi este texto sobre o cnpq https://arxiv.org/abs/1704.08610

    “carta a academia: por uma refundação do cnpq e da ciência brasileira”.

    As outras áreas do conhecimento também sofrem muito com a política, que sobretudo é defendida pelos nossos bolsistas de produtividade. Pelo menos enquanto eles têm bolsa

  8. A difícil arte de separar o joio do trigo

    Gostei de muitos pontos do seu texto, mas quero alimentar o debate com uma questão: você se queixa dos pareceres pobres, mas não menciona que muitos pesquisadores estão mais interessados no título de mestre ou doutor do que na qualidade de sua pesquisa. Escrevem textos fracos, cheios de erros, sobre temas já repisados. 

    A pesquisa deve sim, ser inovadora, senão por que os impostos dos brasileiros deveriam financiar mais do mesmo? Isso não é progresso. Ocorre que, especialmente na área de Humanas, o gosto por ler, pesquisar e escrever leva frequentemente a resultados de pouca utilidade prática. Pessoas talentosas que gostam dessa atividade para si, pelo prazer da atividade, precisam encontrar um meio de se sustentar, então viram “estudantes profissionais” sustentados pelas bolsas da CAPES. O difícil, daí, é separar o joio do trigo. 

    Porque, concordo, o sistema brasileiro é bem engessado e incompetente pra medir a relevância de projetos que tenham impacto positivo na vida das pessoas, especialmente as que estão em áreas mais distantes. E aí continua-se valorizando a publicação em revistas científicas – mas deveria haver outra régua pra medir isso. O círculo é vicioso e ninguém sabe quem vem antes, o ovo ou a galinha. 

    Projetos mais relevantes e de mais qualidade naturalmente ganharão mais holofotes. Está na hora dos dois lados mudarem: pesquisadores com projetos úteis (à comunidade, não aos financiadores) e organismos de financiamento com olhar mais fora da caixa. 

  9. AS MELHORES IDÉIAS

    As melhores idéias…as melhores pesquisas, devem estar em alguma gaveta qualquer de uma escrivaninha ou perdida em alguma pasta de arquivo.  A Origem das Espécies ficou engavetada 15 anos. Einstein impactou a ciência com cinco artigos, publicados com certa dificuldade. E nós????? simples mortais, de onde tiraremos inspiração para produzir todo ano 2 artigos verdadeiramente científicos??????? e de-lhe revisão bibliográfica.

  10. Colegas

    Neste momento sombrio, acho que possíveis desventuras e descontentamentos, ( importantes e que devemos sem dúvida discutir aprofundar e tomar medidas), com relação à universidade não retratam tudo e todo o caminho que ela percorreu e vem percorrendo. Como pesquisador há mais de trinta anos eu vi tudo que Luiz Felipe fala, mas vi também um crescimento impar, e impressionante da ciência no Brasil. Precisamos avançar mais e dar um salto que pode superar esta dosimetria toda de uma  pretensa meritocracia. Mas não joguemos tudo fora nem ajudemos a destruir tudo que construimos. Devemos sim mostrar mais à sociedade o que fazemos e o que podemos fazer, e precisamos escutar mais a sociedade. Precisamos sim sair de nossos corredores e perceber o papel social disto tudo. Talvez tenhamos criado muitos pesquisadores emsimesmados, e fechados nesta corrida insana. prisioneiros da dosimetria e de critérios discutiveis de merito. Porém este não é definitivamente o problema da ciência no Brasil. E a resposta sobre a quem deve servir a ciência não pode ser resolvido entre pares. A ciência tem vir a publico, tem que mostrar o que é , tem que se aproximar de nossa realidade sem deixar de lado o que tem de mais universal. Portanto não quero discordar de Luiz Felipe, mas apenas chamar atenção para um momento, onde não são estas críticas e estas questões que estão em jogo, mas sim a possibilidade de se fazer ciência. E por outro lado,  concordando com Luiz Felipe, só uma visão social mais ampla sobre o papel da ciência vai conseguir nos libertar desta prisão que nos mantem presos em nossas salas e laboratórios.

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