A Reforma Política, segundo Lima Barreto

Lima Barreto, carioca cujo nascimento fez 130 anos no último dia 13 de maio, foi um dos mais agudos observadores da cultura política da Primeira República, marcada pelo mandonismo, clientelismo e o controle da política pelas oligarquias. O voto não era secreto, era vedado às mulheres e analfabetos e as apurações, maculadas por fraudes, que iam da falsificação de atas eleitorais até a negação pura e simples do reconhecimento da vitória de algum oposicionista. Esta ‘degola’ era obtida através de uma comissão chamada de Verificadora de Poderes, composta pelos próprios parlamentares e controlada pelo presidente da república. Ali, apenas alguns adversários tinham seus mandatos ‘reconhecidos’, a fim de dar a aparência de legitimidade geral ao sistema político. O voto para deputado era distrital, reforçando o poder das oligarquias e dos coronéis, que praticamente, ungiam em seus distritos o candidato por eles escolhidos. Crítico arguto da república como ela se fez, oligárquica e autoritária, Lima Barreto desvelou os vícios e o habitus político que fez dela, uma caricatura de democracia. Em suas palavras, um Brasil que possuía público no lugar de povo.

Nos seus “Contos Argelinos”, publicados a partir de 1915, somos apresentados através do conto “A Fraude Eleitoral” a um Senado Federal em pleno debate por uma reforma política que aperfeiçoasse tanto a representação do mandato parlamentar quanto o processo das eleições. Após uma sessão de debates bastante promissores, com várias propostas de mudanças, finalmente, prontas para aprovação, os senadores Brederodes, Malagueta e Marcondes saem para um momento de merecido descanso. Cada um deles vai a um lugar diferente, onde passam a analisar o andamento dos debates. Diferente do otimismo do plenário, as reclamações afloram. O senador Brederodes teme o fim do voto cumulativo, proposta feita pelo colega Malagueta; este por sua vez não concorda com Marcondes, que pretende que cada distrito eleitoral tenha apenas um deputado, ao invés de três; e Marcondes, por fim, teme o projeto de Brederodes de combater as atas falsas nas eleições, pois, isso significaria que “Juca, o chefão, não o reelegeria”. No centro do debate, a falsificação de resultados e o sistema distrital para a eleição de deputados, com o agravante de que, desde 1904, com a Lei Rosa e Silva, cada eleitor votava em três nomes, podendo dar os três votos ao mesmo candidato. Acabar o voto cumulativo ou as fraudes nas apurações ameaçaria os mandatos dos nobres senadores e o poder dos coronéis. Já descansados, Brederodes, Marcondes e Malagueta regressaram ao Senado, mas convencidos, entretanto, de que não apoiariam nada que pudesse alterar a ordem das coisas.

As semelhanças deste conto com as dificuldades do atual Congresso em discutir a reforma política revelam bem a permanência de uma cultura política permeada pela confusão entre o público e privado e pela inversão do papel do parlamentar, convertido, muitas vezes, de representante do povo em protetor do indivíduo. A modernização e o aperfeiçoamento da democracia enfrentam, ainda, não apenas o instinto de sobrevivência dos parlamentares, promotores muitos deles do clientelismo, mas também, uma experiência democrática jovem, pois que apenas há vinte anos tornamos a escolher nossos dirigentes. Um século depois dos Contos Argelinos, nossa cultura política continuaria inspirando a tenaz crítica de Lima Barreto.

DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 26/08/11, SEÇÃO OPINIÃO. (Link para assinantes)

ALMANAQUE DE HISTÓRIA

Redação

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