Fernando Horta
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A “técnica”, os projetos e as metas: o fetiche do século XX, por Fernando Horta

No remoto caso de o capital precisar “dar os anéis para salvar os dedos”, ele oferece Tabata. O discurso técnico das “metas e projetos”, com a roupagem que agrada a classe média e engana um grande número de pessoas

“[…] Cadê os projetos? Cadê as metas? Quem são os responsáveis? Isso daqui não é planejamento estratégico, isso e uma lista de desejos. Eu quero saber onde que eu encontro esses projetos? Quando cada um começa a ser implementado? Quando serão entregues? Quais são os resultados esperados?”

Esta é a fala da nova estrela da política brasileira. Bancada por um projeto de empresários chamado “RenovaBr”, Tabata Amaral usa os canais das redes para ampliar o senso comum e, num país carente por lideranças, vira estrela da “pós-política” que os bolsonaristas chamam de “nova política”. Um dos problemas é que este discurso tem, pelo menos, cem anos de existência.

Não há dúvidas que a Segunda Guerra Mundial é um dos acontecimentos fundantes da mentalidade do século XX. Mais do que a Primeira Guerra, a Segunda foi claramente “mundial”, com teatros de guerra sendo deflagrados em três continentes diferentes e em todos os grandes oceanos. A luta contra o nazi-fascismo trouxe ao mundo a aliança exótica do capitalismo e do socialismo. Se é verdade que a antiga URSS é a grande responsável pela vitória dos “aliados” no conflito, tendo sofrido perdas da ordem de 27 a 30 milhões de pessoas nos conflitos, também é verdade que os EUA proveram uma parte substancial de material bélico, alimentos e vestimentas para a URSS antes de entrarem em guerra através dos acordos Lend-lease. Oficialmente a partir de 1941, mas hoje sabemos que desde 1939 tais práticas estavam sendo realizadas.

A essência do nazismo e do fascismo é sua negação da política. Dentro deste modelo de compreensão do mundo, a política divide, atrapalha, prejudica e impede a formação do grande ente nacional que estas ideologias julgavam ser essencial. Junto com a negação da política, vem como corolário o desprezo pela democracia. Carl Schmitt escreveu muito a respeito disto. A democracia seria lenta, dispersa e incapaz de produzir resultados decisórios não só nos contextos de crise, mas também era insuficiente como prática cotidiana. Ao invés de parlamentos, consultas públicas, referendos, votações e etc. Os fascistas e nazistas advogavam decisões “técnicas”. Tomadas por “especialistas” nos assuntos. O mesmo era defendido desde o século XIX pelo movimento chamado de “Darwinismo Social”.

A ideia é de que existe uma estrutura no mundo. Uma forma de explicar tudo através de dados, leis e cálculos que colocaria de lado toda a discussão sobre moralidade, ética, ideologia e liberdade. Conhecer estas “verdades” técnicas imutáveis, a-históricas (porque independem dos tempos), não-humanas (porque independem dos sujeitos) era o objetivo de muitos movimentos cientificistas do início do século XX. Com o chamado “Círculo de Vienna”, por exemplo, floresce o “Empiricismo lógico” de Otto Neurath, Charles Morris, Rudolf Carnapp e Phillipp Frank. Todos argumentando pela superioridade indiscutível dos números, das leis e de um cientificismo excludente sobre a filosofia ou a história.

A discussão acadêmica teria ficado por aí não fosse pela bomba atômica. Na argumentação dos cientificistas não seria a discussão entre os benefícios morais as falhas éticas do capitalismo ou do socialismo que resolveriam a questão da mesma forma que a segunda guerra não havia sido vencido pelos “discursos”, mas pela força da ciência atômica. Entre 1945 e 1960, os EUA passam a aumentar dramaticamente as verbas públicas para as universidades e para determinados “modelos de ciência”. Notadamente os que envolviam pesquisas e ferramentas quantitativas.

Gráficos, leis, estatísticas, modelos matemáticos e tudo o que pudesse sequestrar o futuro das mãos da incerteza recebia não apenas dinheiro e conforto do capitalismo, como também louros sociais e posições de poder. A ciência política, a economia, a antropologia e todas as “ciências humanas” que pleiteavam recursos passaram a sistematicamente aderir ao fetiche dos números. Novos campos científicos foram criados à luz do ordenamento metodológico quantitativo. A administração e a economia viraram dependentes da matemática. Até nas Relações Internacionais, a estatística, os modelos de previsão, matrizes e etc, tomaram as narrativas.

A lógica subliminar destes discursos é sempre a mesma: há uma “lei” por trás de tudo e qualquer coisa no mundo. Se o homem desconhece é por falha científica sua, mas decisões baseadas nestas “leis” garantem a sobrevivência das sociedades e dos indivíduos. A moral e a ética, consubstanciadas numa visão de mundo (um dos conceitos de ideologia) são apenas distrações erradas e perigosas. É preciso ser “técnico”, “científico” se quisermos resolver os problemas do mundo.

Assim, o liberalismo político (de Rousseau, de Montesquieu, Voltaire e Locke) se transformou, por exemplo, nos “estudos sobre democracia” com índices, estatísticas e curvas de Putnam, Dahl ou Przeworsky. O liberalismo econômico de Adam Smith vai se transformar no neoliberalismo de Milton Friedman, que, não por acaso, era também estatístico. Tudo o que não pudesse ser previsto ou explicado com números e fórmulas era “politicagem” e não ciência. O fetiche pelo controle completo das variáveis, a delimitação precisa das relações causais e eliminação da “ideologia” se tornava obsessivo e terminava nas formulações ISO da década de 90, no conceito de globalização econômica e na crença inabalável de que o capitalismo teria ferramentas para trazer bem-estar para todas as pessoas no mundo.

Esta onda subverteu até mesmo a URSS e Gorbatchev nada mais é do que o produto da “the thaw”, dentro da antiga União Soviética. Gerações criadas à base de um cientificismo estrutural que acreditava que o problema do mundo era “técnico” e não “político”. A URSS cai em 1989 e 1991, e o capitalismo oferece ao mundo a promessa de bem-estar para todos, de “evolução” e “civilização”. Alguns profetizam “o fim da História” e outros trabalham pela “união mundial dos mercados”, “fim das barreiras”, “livre comércio”.

Com o passar do tempo, o capitalismo nem de longe cumprindo sua promessa, surgem as críticas. O neoliberalismo trazia apenas miséria e diferenciação social. A globalização reforçava os mesmos circuitos acumuladores de riqueza e a “democracia” não era assim tão democrática já que apenas homens, brancos, ricos, moradores de cidades compunham os parlamentos, os ministérios e detinham poderes públicos. A desculpa para que os Estados enchessem os já ricos com dinheiro foi chamada de “trickle-down”. Ricos, os capitalistas e empreendedores investiriam e criariam empregos. Sem o “risco da política”, o capital poderia, enfim, cumprir a promessa feita no século XX: trazer bem-estar para toda a humanidade.

O final do século XX e início do XXI, enxerga não apenas o fracasso do projeto capitalista que entrega um mundo cada vez mais desigual, com imensa quantidades de pobres e uma concentração de riqueza que atinge níveis maiores do que os do século XIX, como também a chamada “democracia” precisa de tantos adjetivos para funcionar que passa a se afastar da ideia de participação e até de “representação”. O cientificismo todo rui já que mesmo as bases científicas para ele são atacadas. A Teoria da Relatividade acaba com a condição pétrea do tempo, a mecânica quântica rompe com os princípios lógicos da identidade necessária, os teoremas de Göddel colocam toda-poderosa matemática na condição de incompletude ou erro.

Se não há mais a perfeita separação entre o certo e o errado, entre sujeito e objeto, o que nos sobra? Sobra as antigas discussões sobre moral, sobre ética, sobre valores e ideologia. Agora, não mais se aceita a democracia representativa apenas, mas exige-se uma democracia participativa. Os homens ricos e brancos não são mais detentores de algum conhecimento especial que lhes torna diferenciados no mundo. As antigas lógicas são subvertidas.  A percepção que os discursos geram poder coloca a ciência na condição de ser criticada. O mundo volta a se tornar complexo, perigoso e instável. O capital abomina esta situação. A crítica social e histórica sobre sua hegemonia coloca em xeque a pertinência, força e necessidade de “metas” e “projetos”. A técnica é submetida à sensibilidade, ao conhecimento mais amplo das sociedades, do viver, do existir.

A este “pós-modernismo”, o capitalismo responde furiosamente com três táticas: ou os alucinados neofascistas e indigentes intelectuais como Olavo de Carvalho e Bolsonaro, ou o reforço da promessa da riqueza com os modelos dos “self-made survivors” (tipo “colaborador” do Uber, da Amway e outros), modelos defendidos pelo MBL, Instituto Liberal e etc.. Reforçam-se os velhos medos e as velhas promessas, agora com novas roupagens.

E no remoto caso de o capital precisar “dar os anéis para salvar os dedos”, ele oferece Tabata. O discurso técnico das “metas e projetos”, com a roupagem que agrade as feministas, a classe média e que engana, com o produto velho numa nova embalagem, um grande número de pessoas. Os pobres que “meritocraticamente” sobem na vida, apoiados por “milionários de bom coração” para “fazerem a diferença”. Estes pobres, estes negros e estas mulheres, ao estudarem em “Harvard”, passam a conhecer a “verdade”, as “leis que governam as coisas” e se “limpam da sua pobreza” e dos seus locais originais de classe. Se tornam “técnicos” palatáveis.

A política continua esquecida. Ela é uma chaga a ser evitada. É por isto que temos que “mudar tudo isto aí”. Mudar tudo para que tudo, no fundo, continue igual.

Fernando Horta

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