A teoria geral da gambiarra

Em 1970, mais ou menos, conheci um peão de meu partido que era, sem duvida, uma figura rara. Vindo do interior de SP, instalou-se na capital, analfabeto, sem profissão, ajudante em construção civil. Naquela ocasião, mal teve oportunidade parra aprender a ler avisos e assinar o nome. Contudo, tinha uma garra e uma capacidade de aprender extraordinárias. Não apenas se tornou um exímio eletricista como apreendeu a ler – e a criticar – ensaios de sociologia, economia, política.

            O companheiro Rodrigues —  esse o seu sobrenome – deixou-me na memória um traço que marcava sua vida profissional tanto quanto sua militância política. É o que chamarei de ‘teoria geral da gambiarra’, norma de comportamento que um dia exprimiu em sua arguta dialética: a gambiarra tem que ser muito boa e não pode ser muito boa. Gambiarra, para os não aficionados á linguagem popular, é todo aquele dispositivo que se constrói com elementos que se tem e não com aqueles que se deseja ter. A gambiarra, dizia Rodrigues, tem que cumprir seu papel com perfeição. Tem que resistir a chuvas e tempestades, tem que durar. Por outro lado, não deve ser tão ‘boa’ que se torne imexível, insubstituível, definitiva. O criador da gambiarra, por demais, tem que saber que se trata disso: não pode fazer dela um fetiche, algo com que se afeiçoe a tal ponto que se impeça a substituição por dispositivo mais adequado.

            Era assim que Rodrigues encarava seu trabalho de eletricista. E era assim que imprimia à sua militância política a sabedoria de colher os elementos disponíveis no seu meio para, a partir deles, preparar saídas e futuros. Não tinha receio de apelar a ‘sentimentos de classe’ quando não achava a tal de ‘consciência de classe’, descrita nos manuais teóricos. Construía gambiarras políticas com as quais persuadia, mobilizava, organizava seus companheiros, fazendo com que passassem para um patamar em que, então, pudessem construir dispositivos ideológicos mais sofisticados e exigentes. Não tinha zelo ou ciúme com suas gambiarras – ao criá-las, fazia com que fossem compartilhadas, apropriadas por todos. Ao verificar a iminência de seu esgotamento e a possibilidade de sua superação, não se recusava a tal salto.

            O companheiro Rodrigues já não está entre nós – longa vida aos tantos companheiros Rodrigues que o povo brasileiro tem sabido gerar. E que contribuem para o desenvolvimento da teoria geral da gambiarra.

Redação

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