A utopia de Piketty, por Slavoj Žižek

Cintia Alves
Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.
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Por Slavoj Žižek

No blog da Boitempo

Le Capital au XXIe siècle é um livro essencialmente utópico. Por que? Por conta de sua modéstia. Thomas Piketty percebe a tendência inerente do capitalismo à desigualdade social, de tal forma que a ameaça à democracia parte do interior da própria dinâmica capitalista. Até aí tudo bem, estamos de acordo. Ele vê o único ponto luminoso da história do capitalismo entre as décadas de 30 e de 60, quando essa tendência à desigualdade era controlada, com um Estado mais forte, Welfare State etc. Mas reconhece ainda que as condições para isso foram – e eis a trágica lição do livro – Holocausto, Segunda Guerra Mundial e crise. É como se estivesse implicitamente sugerindo que nossa única solução viria com uma nova guerra mundial, ou algo assim!

Mas por que digo que ele é utópico? De certa forma ele não está errado. A tentativa de superação do capitalismo no século XX de fato não funcionou. O problema é que ele então acaba implicitamente generalizando isso. Piketty aceita, como um bom keynesiano, que o capitalismo é, ao fim e ao cabo, o único jogo na praça; que todas as alternativas a ele acabaram em fiasco, e que portanto temos de preservá-lo. Ele é quase que uma versão social-democrata do Peter Mandelson, o príncipe escuro de Tony Blair que disse que na economia somos todos thatcheritas, e que tudo que podemos fazer é intervir no nível da distribuição, um pouco mais para a saúde, para a educação e assim por diante.

Thomas Piketty é utópico porque ele simplesmente propõe que o modo de produção permaneça o mesmo: vamos só mudar a distribuição implementando – e não há nada de muito original nessa ideia – impostos radicalmente mais altos.

Aqui começam os problemas. Veja, não digo que não devemos fazer isso, só insisto que fazer apenas isso não é possível. Essa é a utopia dele: que basicamente podemos ter o capitalismo de hoje, que como maquinaria permaneceria basicamente inalterado: “opa opa, quando você lucra bilhões, aqui estou eu, imposto, me dê 80% de sua fatura”. Não acho que isso seja factível. Imagine um governo fazendo isso em nível mundial. E Piketty está ciente que isso deve ser feito globalmente, porque se fizer em um só país, o capital se desloca para outro lugar e assim por diante. Meu ponto é que se você conseguir imaginar uma organização mundial em que a medida proposta por Piketty pode efetivamente ser realizada, então os problemas já estão resolvidos. Então você já tem uma reorganização política total, você já tem um poder global que pode efetivamente controlar o capital. Ou seja: nós já vencemos!

Então acho que nesse sentido Piketty trapaça nas cartas: o verdadeiro problema é o de criar as condições para que sua medida aparentemente modesta seja atualizada. E é por isso que, volto a dizer, não sou contra ele, ótimo, vamos cobrar 80% de imposto dos capitalistas. O que estou dizendo é que se você fosse fazer isso, logo se daria conta de que isso levaria a mudanças subsequentes. Digo que é uma verdadeira utopia – e isso é o que Hegel queria dizer com pensamento abstrato: imaginar que você pode tomar uma medida apenas e nada mais muda. É claro que seria ótimo ter o capitalismo de hoje, com todas suas dinâmicas, e só mudar ele no nível da redistribuição – mas isso é que é utópico. Não se pode fazer isso pois uma mudança na redistribuição afetaria o modo de produção, e consequentemente a própria economia capitalista. Às vezes a utopia não é anti-pragmática. Às vezes ser falsamente modesto, ser um realista, é a maior utopia.

É como – e perdoem-me o paralelo esdrúxulo – um certo simpatizante nazista que disse basicamente: “Ok, Hitler está certo, a comunidade orgânica e tal, mas porque ele não se livra logo desse asqueroso antissemitismo”. E houve uma forte tendência, inclusive dentre os judeus – e isso é realmente uma história curiosa –, houve uma minoria de judeus conservadores que inclusive se dirigiam a Hitler dessa maneira: “Pôxa, concordamos com você, unidade nacional e tal, mas por que você nos odeia tanto, queremos estar com você!” Isso é pensamento utópico. E é aqui que entra o velho conceito marxista de totalidade. Tudo muda se você abordar os fenômenos com a perspectiva da totalidade.

* Extraído da conferência “Towards a Materialist Theory of Subjectivity“, no Birbeck Institute for the Humanities.  A tradução é de Artur Renzo, para oBlog da Boitempo.

***

Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009), Em defesa das causas perdidas, Primeiro como tragédia, depois como farsa (ambos de 2011), Vivendo no fim dos tempos (2012), O ano em que sonhamos perigosamente (2012), Menos que nada (2013) e o mais recente Violência (2014). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.

Cintia Alves

Cintia Alves é graduada em jornalismo (2012) e pós-graduada em Gestão de Mídias Digitais (2018). Certificada em treinamento executivo para jornalistas (2023) pela Craig Newmark Graduate School of Journalism, da CUNY (The City University of New York). É editora e atua no Jornal GGN desde 2014.

7 Comentários

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  1. Entao se o pensamento de

    Entao se o pensamento de Piketty é utopico,qual seria o pensamento real ?

    O autor do texto esqueceu.Deste jeito todos podem fazer criticas sem dizer nada de nada.

  2. Como reformar um sistema em colapso?

    O Piketty quer reformar o capitalismo, como todo bom neokeynesiano.

    A primeira objeção é que ele não é reformável nem adestrável. Os 30 anos gloriosos do estado do bem estar foram uma exceção que apenas confirma a  regra: a lógica do capital, em sua expansão desenfreada, é produzir mais concentração e mais destruição, da natureza e do tecido social.

    A seguna e mais urgente objeção é da ordem do paradoxo: como reformar um sistema que já entrou em colapso? O capitalismo, por conta de suas contradições, já está em seu suspiro final (que pode levar anos ou décadas). Não será preciso revoluções para acabar com o capitalismo, pois ele é vítima de seu próprio sucesso, como previra Marx. Com o avanço tecnológico, o trabalho humano está se tornando obsoleto e, como trabalho é valor, este se desvaloriza. É o próprio capital, portanto, que se desidrata.

    A questão é o que virá depois. Ou uma sociedade racional, autogovernada e justa, sem trabalho e sem valor, cuja riqueza material seja produzida no interesse de todos; ou a barbárie que já se avizinha, com a rapina neoliberal, os fundamentalismos, neofascismos, a organização mafiosa dos estados e corporações etc.

  3. Acho que será difícil sairmos

    Acho que será difícil sairmos dessa sem uma guerra aberta*. E acho difícil que surja alguém para “nos salvar”, algum grande líder mundial a orquestrar uma nova ordem mundial por conta de estarmos escolados quanto à eleição de líderes, por mais poderosos que se arvorem. Talvez não se implante um socialismo comunista de cima para baixo por falta absoluta de seguidores. Mas talvez localmente as pessoas busquem formas alternativas ao capitalismo para produzirem, garantirem sobrevivência, lazer… bem-viver. Depois do fracasso das ideias megalomaníacas de Stalin, Hitler e recentemente dos capitalistas, o impulso a escolher uma grande líder me parece aprendizado natural…

     

    * – Quando falo de guerra digo “aberta” porque basta uma olhada ao redor para ver que há diversos ataques bélicos sendo disparados pelas pessoas que operam o dólar dos EUA contra diversos países. E há a defesa desses países – ou de uma parte deles – senão ainda sem atacar o território dos EUA, com sucesso no desarme a esses ataques, por diplomacia e até com armas físicas. Ou seja, já há diversas “guerras” – ou mais precisamente ataques unilaterais não declarados, verdadeiro terrorismo – não-abertas em curso.

     

  4. Muito bom e necessário debate!…

    Thomas Piketty denunda o capitalismo porque há um enorme laboratório histórico. o diagnóstico é perfeito, mas não aponta soluções factivéis e passa ao largo da bem sucedida experiência economica soviética dos anos 20 e 30 do século passado, a que derrrotou o Nazifascismo!…

  5. A utopia da direita era criar

    A utopia da direita era criar um Estado que cobrasse mais impostos dos pobres e o usasse em beneficio dos ricos que sonegam ou pagam poucos impostos. Essa utopia sempre foi uma realidade no Brasil, mas o liberalismo brasileiro ganhou um novo nome quando foi adotado pelos gringos. Curiosamente a direita brasileira quer agora importar a utopia que exportou. O resultado disso será uma destruição destrutiva e não uma destruição criativa: podemos ver isso na entrega de poços de petróleo a preço de banana. Nunca antes na história mundial uma elite doou de maneira voluntária a riquesa que ela poderia desfrutar. No Brasil nova utopia neoliberal vai empobrecer os ricos. Em breve seremos todos pobres como na distópica União Soviética em sua fase final.

     

  6. Piketty não escreveu livro único e conclusivo

    O Capital do Século XXI é um livro em aberto. Afinal, a História ainda não terminou. O livro é uma “antologia”, um compilamento histórico feito com honestidade intelectual. Certamente está no plano do autor lançar um segundo volume antes do fim dos tempos. Foi como eu entendi o livro, smj.

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