Admirável mundo velho

Enviado por Maria Luisa

O Africano

De Jean-Marie G. Le Clézio

(tradução livre)

“Todo ser humano é o resultado de um pai e de uma mãe. Podemos não reconhecê-los, não ama-los, podemos até desconfiar deles. Mas eles estão ai, com seus rostos, suas atitudes, suas maneiras e suas manias, suas ilusões, suas esperanças, a forma das suas mãos e seus dedos dos pés, a cor de seus olhos e de seus cabelos, o jeito de falar, seus pensamentos ; provavelmente quando estarão mortos, ja teremos esquecido tudo isso.

Eu sonhei durante muito tempo que minha mãe era negra. Eu inventei uma historia, um passado, para fugir da realidade depois de meu retorno da Africa, nesse pais, nessa cidade onde não conhecia ninguém, na qual tinha me tornado um estrangeiro. Então eu descobri, quando meu pai, no momento de sua aposentadoria, voltou a viver na França conosco, que era ele ‘O Africano.’ Essa constatação foi-me de dificil aceitação. Eu tive que voltar la atras, recomeçar, tentar entender. Em lembrança à esse tempo, escrevi este pequeno livro.”

Assim começa uma pequena obra-prima chamada “O Africano”, livro no qual Le Clézio retraça um periodo de sua infância na Africa, lugar onde seu pai atuou durante quase toda a vida, enquanto médico humanitario. Esse periodo, apesar de curto na vida de Le Clézio, marcará sua existência. E ele se dirá sempre um africano, como somos todos, em suma.

https://www.youtube.com/watch?v=wOfm9WRFRxA]

Esse post é apenas pretexto para nos deslocarmos um pouco do eixo-politico, “viajarmos” e, para quem ainda não descobriu essa pequena joia, quem sabe lê-la durante o fim de semana que se aproxima. Que este seja bem tranquilo. Assim desejo a todos.

[video:https://www.youtube.com/watch?v=tdUs9bNTk3A

Redação

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  1. No livro O Africano, de Le

    No livro O Africano, de Le Clézio, há a seguinte passagem:

    “Nesse quintal, sempre havia crianças, em grande número, que chegavam pela manhã, todos os dias, para conversar e brincar, e das quais só no separávamos ao cair da noite. […] Partindo para a África, nós mudamos de mundo. A compensação para a disciplina das manhãs e das noites era a liberdade dos dias. A baixada de capim diante de nossa casa era imensa, perigosa e atraente como o mar. Jamais eu tinha imaginado desfrutar de uma tal independência. Lá estava a baixada, bem em face dos meus olhos, pronta para me receber. Não me lembro do dia em que nós, meu irmão e eu, nos aventuramos pela primeira vez pela savana. Talvez por instigação dos garotos da aldeia, a turma um pouco heteróclita que incluía uns bem pequenos, barrigudos e completamente pelados, e outros adolescentes, de doze, treze anos, que usavam calça curta cáqui e camisa, como nós, e nos ensinaram a tirar os sapatos e as meias de lã para correr descalços pelo capinzal. São os que eu hoje vejo a rodear-nos em algumas fotos da época, muitos negros, desengonçados, gozadores e brigões, por certo, mas que, malgrado nossas diferenças, nos aceitaram. Provavelmente era proibido. Mas, como meu pai se ausentava o dia todo, até a noite, devíamos ter compreendido que a proibição só podia ser relativa. Minha mãe era boazinha. […] Meu pai havia instituído, entre outras regras, a das meias de lã e dos sapatos de couro engraxados. Assim que ele ia para o trabalho, ficávamos descalços para correr. O Africano (LE CLÉZIO, 2007, p. 22-23, grifo nosso).”

    A passagem sintetiza o valor cultural instituído da brincadeira livre como algo proibido e compensatório à disciplina, às obrigações e regras impostas pelo pater familias. Hoje ainda, brincadeira tem essa conotação de proibido, recompensa para quando terminar atividade ou trabalho, ociosidade, não-séria, frivolidade, perda de tempo, puro divertimento, prazer e arrebatamento. Outro aspecto notado desta passagem do livro autobiográfico de Le Clézio é o fato de que dois meninos franceses – recém-chegados na Nigéria e depois no Camarões, províncias coloniais da Europa, fugidos com a mãe do pós-guerra europeu para reencontrar o pai médico colonial –, e que, longe da tutela de adultos e isolados no meio da floresta africana, fizeram a sua inclusão social com os meninos negros das aldeias nativas, apesar de suas diferenças e dificuldades de comunicação.

    As crianças europeias agiram com naturalidade, objetividade, inteligência e promoveram inclusão, interação, brincadeira e aprendizagem com seus novos vizinhos e amigos da savana tropical. Creio que essas crianças negras e brancas isoladas na floresta pluvial africana nunca se deram conta de livros e teses e das políticas públicas de inclusão social, respeito às diferenças ou da então política colonial eurocêntrica. Simplesmente agiram e atuaram de modo objetivo, lúdico, necessário, altruísta, civilizado, cooperativo para a melhor convivência, troca de afetos e experiências; para garantir a sobrevivência, adaptação e melhor aptidão dos meninos estrangeiros na terra desconhecida. E, tudo isso, sem a intervenção de adultos. Por sua conta e risco. E obtiveram sucesso. E o “jogo teatral” de re/conhecimento e envolvimento dessas crianças começou com o convite-rito para o jogo dos anfitriões nativos, para que os meninos brancos tirassem seus calçados e meias para brincar de correr pelo capinzal… – espaço aberto, natural, arriscado (aventura e risco), espaço mítico do jogo. Espaço do teatro/atuação, espaço mágico, espaço do encontro de culturas diferentes, espaço analítico do encontro de individualidades, espaço delimitado da temporalidade e da dimensão cotidiana sem finalidades dominadas pela racionalidade ou pelo utilitarismo de certa realidade reproduzida pelo sistema de vida convencional instituído.

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