Advogado esclarece embate sobre direito de propriedade da vacina contra Covid-19

Ana Gabriela Sales
Repórter do GGN há 8 anos. Graduada em Jornalismo pela Universidade de Santo Amaro. Especializada em produção de conteúdo para as redes sociais.
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Matheus Falcão explica a parte do Brasil neste latifúndio, em entrevista ao jornalista Luis Nassif. Confira.

Reprodução/TV GGN

Publicado, originalmente, dia 23 de outubro

Jornal GGN – As grandes potências mundiais se mobilizam para vencer a corrida pela aprovação da primeira vacina contra a Covid-19. No Brasil, laboratórios públicos, como a Fundação Oswaldo Cruz (Fioruz) e o Instituto Butantan, se uniram à farmacêuticas multinacionais, para o desenvolvimento de imunizantes que pretendem cessar a pandemia. Mas, um ponto de destaque neste cenário é o direito de propriedade desses produtos.

O advogado Matheus Falcão esclareceu a parte do Brasil neste latifúndio, em entrevista ao jornalista Luis Nassif, durante o TV GGN 20h, exibido nesta quinta-feira, 22 de outubro.

Hoje, duas vacinas em potencial estão em desenvolvimento no solo brasileiro. Um dos imunizantes é da gigante europeia AstraZeneca, produzida em parceria com a Universidade de Oxford e a Fiocruz, sendo que a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) também faz parte dos estudos. Já o outro imunizante contra a Covid-19, do laboratório chinês Sinovac, é desenvolvido no país em parceria com o Instituto Butantan, em São Paulo.

Falcão explica que, em ambos os casos, caso haja a aprovação dessas vacinas – AstraZeneca ou Sinovac – tanto a FioCruz quanto o Instituto Butantan “terão um papel relevante na manufatura desses produtos”, uma vez que “eles vão produzir a vacina e fornecer para a população brasileira”.

Sendo assim, o Brasil atua nesses dois casos por meio de contratos de encomenda tecnológica que estabelece, além da compra de doses dessas vacinas produzidas fora do país, o custeio do desenvolvimento desses produtos. “Ou seja, o dinheiro público brasileiro está sendo usado para financiar essas pesquisas”, aponta Falcão.

O Brasil investe e, por isso, a propriedade sobre o direito dessas vacinas, como as patentes, passam a ser contestadas. Falcão explica que é comum que um produto novo tenha uma patente, “um período em que, teoricamente, quem trouxe esse produto ao mercado tenha exclusividade sobre sua exploração”. Segundo o advogado, a patente justificaria os investimentos feitos por esse agente econômico no produto, que – por um tempo – comercializaria o material em regime de monopólio, sendo esse um mecanismo de estímulo à inovação.

No entanto, o advogado chama atenção para quem são os verdadeiros financiadores desses produtos, no caso, a vacina contra a Covid-19. “Quando olhamos a fundo quem investe, de onde vem o recurso, percebemos que a grande parte dos investimentos em pesquisa e inovação vem, na verdade, do próprio estado. Quando olhamos para as vacinas, mais ainda. São recursos públicos que são investidos nesse processo de pesquisa de inovação, então, criar barreiras de acesso apoia essa proteção de monopólio”.

“A FioCruz, que é um laboratório público farmacêutico, Bio-Manguinhos especificamente, e o [Instituto] Butantan, outro laboratório público, estão empreendendo recursos financeiros, recursos humanos, como a força de trabalho, no desenvolvimento [dessas vacinas]. Então, nós temos dinheiro do povo brasileiro sendo entregado”.

A partir disso, surge os embates sobre a participação do Brasil nessas patentes. Falcão esclarece “essa é uma questão muito sensível” e afirma: “se olharmos outros exemplos na história recente, vemos que essas multinacionais farmacêuticas tentam manter, ao máximo, as patentes para si (…) Elas licenciam [as patentes] conforme sua própria vontade, só para quem desejam que produzam, dessa forma a produção não sai do controle delas”.

Uma das opções para que a população não seja desfavorecida neste cenário está prevista no Acordo TRIPs (em inglês: Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights, em português: Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio), da Organização Mundial do Comércio e que o Brasil faz parte.

“O acordo TRIPs é um acordo para a proteção de patentes, não fala sobre proteção de saúde, de direitos humanos, é a proteção de patentes. No entanto, [ele] também estabelece algumas possibilidades, que chamamos de flexibilidade do TRIPs, em que os países podem suspender essa proteção de patentes”, esclarece Falcão.

Hoje, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei (PL) 1462/2020, que prevê essa possibilidade de flexibilização da proteção de patentes. O texto, de autoria de diferentes parlamentares, “aciona uma flexibilidade dos TRIPs para que todas as tecnologias de saúde associadas a Covid-19 tenham suas patentes licenciadas compulsoriamente”, diz o especialista.

Segunda barreira de acesso

Durante a entrevista, o advogado destaca ainda outro ponto de embate sobre o direito de propriedade da vacina no Brasil. “Uma segunda barreira de acesso possível é a questão da transferência de tecnologia, porque esse é um produto bastante complexo. Então esses acordos, por exemplo entre a FioCruz e AstraZeneca ou do Instituto Butantan e Sinovac, envolvem a questão de tecnologia”, diz.

“É importante que as cláusulas desses contratos de propriedade de tecnologia sejam muito bem delineados, para que não haja privilégio à empresa, em desfavor, por exemplo, da população brasileira”, pontua Falcão.

Para ilustrar este caso, o advogado cita o vazamento de um possível memorando de entendimentos entre FioCruz e AstraZeneca. “Alguns termos nos causam preocupação, por exemplo, pelo que foi divulgado a empresa europeia teria capacidade de decretar o fim da pandemia, mas e a consequência jurídica disso? A partir do momento que se decreta o fim da pandemia, a empresa pode ter um lucro maior associado a vacina e pode controlar – ainda mais – a produção”.

“Inclusive, nesse memorando de entendimentos, existe uma possibilidade de cláusula de que a Fiocruz fosse proibida de exportar a vacina [caso aprovada] para outros países, por exemplo, da América Latina ou até para a própria Organização Mundial da Saúde [OMS]. É uma cláusula que iria favorecer essa empresa farmacêutica que tá do outro lado do contrato”, explica.

Tradição diplomática brasileira de acesso à saúde se perdeu

Falcão também comenta o desmonte da tradição brasileira pelo acesso popular à saúde. “Tem uma tradição diplomática, [cultivada] especialmente nas últimas décadas, [do Brasil] ser um país que se destaca na luta por acesso a medicamentos, enfrentando países da União Europeia, os Estados Unidos, na defesa pelos interesses dos países em desenvolvimento (…) Mas, essa tradição diplomática em saúde vem se perdendo nesses tempos recentes”, completa.

Assista, a partir de 9min.

Ana Gabriela Sales

Repórter do GGN há 8 anos. Graduada em Jornalismo pela Universidade de Santo Amaro. Especializada em produção de conteúdo para as redes sociais.

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