Afrânio Jardim, Dom Quixote e os ministros Fulecos do STF

Num texto curto e adoravelmente grosso, o proeminente jurista Afrânio Jardim criticou votos intermináveis proferidos pelos Ministros do STF.

A observação pertinente me fez lembrar um fragmento do livro de Cervantes, que transcrevo abaixo:

“…volvamos a la preeminencia de las armas contra las letras, materia que hasta ahora está por averiguar, según son las razones que cada una de su parte alega. Y, entre las que he dicho, dicen las letras que sin ellas no se podrían sustentar las armas, porque la guerra también tiene sus leyes y está sujeta a ellas, y que las leyes caen debajo de lo que son letras y letrados. A esto responden las armas que las leyes no se podrán sustentar sin ellas, porque con las armas se defienden las repúblicas, se conservan los reinos, se guardan las ciudades, se aseguran los caminos, se despejan los mares de cosarios, y, finalmente, si por ellas no fuese, las repúblicas, los reinos, las monarquías, las ciudades, los caminos de mar y tierra estarían sujetos al rigor y a la confusión que trae consigo la guerra el tiempo que dura y tiene licencia de usar de sus previlegios y de sus fuerzas. Y es razón averiguada que aquello que más cuesta se estima y debe de estimar en más. Alcanzar alguno a ser eminente en letras le cuesta tiempo, vigilias, hambre, desnudez, váguidos de cabeza, indigestiones de estómago y otras cosas a éstas adherentes, que en parte ya las tengo referidas; mas llegar uno por sus términos a ser buen soldado le cuesta todo lo que a el estudiante, en tanto mayor grado, que no tiene comparación, porque a cada paso está a pique de perder la vida.” (Don Quijote de La Mancha, Miguel de Cervantes, edición del IV centenario, Real Academia Española – Asociación de Academias de Lengua Española, p. 395/396)

O debate feito pelo tragicômico personagem de Cervantes é serio, mas vertido segundo uma lógica distorcida. Afinal, nem as Leis (produto do intelecto humano) nem as Armas (produzidas pelo homem) seriam capazes de dizer algo. As duas coisas podem, no máximo, ser objeto de reflexão do soldado e do intelectual. Todavia, nem um nem o outro está em condições de avaliar e julgar com precisão a guerra e a produção de ciência em virtude do abismo que existe entre ambos.

Um intelectual virar soldado é tão raro quanto um soldado virar intelectual. Portanto, o abismo entre as Leis e as Armas tende a se perpetuar. Elas não podem ser colocadas na mesma balança, pois pertencem a universos distintos.

Também pertencem a universos distintos a atividade judiciária e a produção de doutrina jurídica. Quando se debruça sobre o caso concreto o juiz não precisa escrever um livro, mas apenas proferir uma decisão que se ajuste à legislação em vigor tal como ela é interpretada naquele momento histórico. Ele pode fazer referências a doutrina e a jurisprudência, mas nem uma nem outra tem mais valor do que o próprio texto da Lei.

A atividade acadêmica do jurista é diferente da do magistrado. Ao estudar um tema, ele pode fazer pesquisas históricas, recorrer a estudos de legislação comparada, pesquisar a doutrina nacional e internacional, citar textos legais e decisões judiciais, citar autores que se debruçaram sobre a questão e explorar as controvérsias que existem. Ele pode até mesmo formular sua própria tese sobre aspectos considerados controvertidos.

Uma decisão judicial extrai sua autoridade da Lei que o juiz cumpre e faz cumprir. O texto acadêmico deve ser organizado de maneira didática e trazer referências bibliográficas, pois a autoridade do discurso dele depende da profundidade da pesquisa que foi feita (e que poderá ser refeita pelos interessados em descobrir se o autor cometeu ou não plágios). Portanto, é plausível concluir que uma decisão não precisa ser tão longa quanto um texto acadêmico.

Os Ministros do Supremo Tribunal Federal, contudo, parecem inclinados a escrever livros ao invés de proferir decisões judiciais. Nem mesmo os professores de Direito tem mais paciência para escutar ou mesmo para ler os votos com centenas e centenas de páginas que levam horas e horas para serem lidos no plenário do STF. Curiosamente, alguns dos Ministros fazem pose para falar enquanto outros são fotografados e filmados cochilando durante as intermináveis arengas jurídicas dos seus colegas.

Dom Quixote faz um discurso sobre a predominância das Armas sobre as Letras, admitindo, portanto, que pode existir um conflito entre ambas. Na cúpula do judiciário brasileiro as Letras não estão em conflito com as Armas. De fato as Letras são as Armas empregadas pelos Ministros do STF para burlar a constituição.

Eles escrevem votos quilométricos e falam durante horas, muitas vezes com o intuito de dizer o que a Constituição não diz ou de justificar aquilo que não poderia ser justificado de maneira decente. Os votos se arrastam por horas não com o intuito de esclarecer as questões debatidas, mas para confundir e cansar o respeitável público. No fundo, Afrânio Jardim disse que está cansado de ver isto. De minha parte, sou mais malvado do que o eminente penalista carioca.  

Quando o bom senso sai por uma porta, o ridículo entra pela outra. Eu confesso: várias vezes assisti seções do STF na TV Justiça não porque estava interessado no assunto decidido e sim porque estava querendo ver uma opereta bufa encenada por atores amadores justamente no lugar onde a dignidade da justiça deveria ser cultuada e vista. 

Fábio de Oliveira Ribeiro

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