Algumas falas da Cracolândia.

postado no: http://klaxonsbc.com/2012/01/08/algumas-falas-da-cracolandia/


A loucura se reveste de varias e infinitas formas;é possível que os estudiosos tenham podido reduzi-las em uma classificação, mas ao leigo ela se apresenta como as árvores, arbustos e lianas de uma floresta; é uma porção de coisas diferentes. 

Lima Barreto – trecho de Cemitério dos Vivos


O taxista Gilberto, 12 anos trabalhando na região da Cracolândia, fala sem pensar muito:

– Tem “nóia”, tem menino aventureiro, ladrão, traficante, gente desiludida … e muita tristeza…

Gilberto fica parado na Avenida Rio Branco, perto do quadrilátero que já foi chamado do prazer, perto da zona, perto do fim da cidade.

A semana da eugenia, da gentrificação, do higienismo, do “vamos vencer pela dor” marca um divisor de águas. Varrer a droga é difícil, então é melhor varrer as pessoas. Não, não, nunca houve uma interrupção na lógica de expulsar. Do centro pra longe. O centro é a síntese da exclusão que a cidade opera no geral. O centro não pode ser dos “nóias”. Avante, espírito bandeirante.

E pergunto ao menino seu nome, ele diz que não tem nome há bastante tempo. Não insisto, seu nome foi embora e ficou o olho retesado, o resquício de ironia que ele arranca da boca e me faz sorrir, meio torto:

– Minha família tá perdida na quebra, na ZL, eu tô aqui… não tô perdido…tio, depois desse lance da Copa do Mundo a coisa melhora, mas os coxinha … as noites são de horror.

Eu fico com meu pensamento confortável a imaginar as noites de horror, de sono interrompido, de sono inexistente. A vida porrada não é videogame. O menino vai embora e dá de ombros dizendo que o um real que eu dei pra ele é falso. Sorri maneiro, ele não tem nome, mas ainda tem graça. Some na rua qualquer.

Manhã de sábado, o sol estalando, o comércio correndo solto. Nas bordas da Rua Santa Ifigênia se vende de tudo. Tem gente circulando, não como sempre, pois, mês de férias. Mas o movimento dos nóias é diferente. Um sem rumo, não pode aglomerar, nem bodar na calçada. Tem que circular, os olhos vidrados parecem faróis no meio do clarão do sol, a cidade grande fica pequena. Cobertor encardido, roupa no corpo há dias, mão tremendo, sorriso indefinido ou olhar em lugar nenhum. Não tem glamour nesta droga.

E de novo Gilberto, o taxista:

– Aos poucos os moradores de rua foram se misturando ao exército da droga e aí ninguém sabia mais quem era quem. Conheço morador de rua que virou nóia, que virou puta, as pessoas mudam toda hora de lugar nesta vida…

É evidente que em meio aos viciados em crack nas ruas, têm famílias inteiras, solitários, os perdedores de sempre. A droga é parte da coisa. A quantidade de pessoas pelo centro de SP andando a esmo com os olhos estalados pela química, pelo medo, pela desorientação é impressionante. Os catadores de papel solidários entre si, em geral com suas garrafinhas de plástico com pinga e seus cachorros inseparáveis.

Pedro do Boné, catador de papel, 15 anos na rua, golando uma branquinha:

– Os nóias se esticam por ai como a gente. Não incomodam. Não mexendo no meu carrinho, vivo a vida.

Não cabe romantismo, são vários tipos, o rapaz que veste roupas de marca e que parece apenas ter dormido uma noite por ali. Não esta no trapejo, na batida das ruas. Será nóia, será trafica, meio cismado, misturado ao exército de tipos de rua, cochicha no ouvido de um rapaz e saí vazado pela Rua Vitória. Ao olho nú de quem passa rápido é mais um. Volta depois e faz o movimento. Na função, normalmente.

O moço cismado, com a camisa do Atlético – MG sentado no sujinho:

– Continua tudo rolando, nada mudou. Quem ganha dinheiro continua a ganhar, quem perde a vida… nóia? Só espalharam por aí…

No sujinho perdura a falação, o sentimento geral é de que não vai ter jeito, os nóias vão voltar. Os anos passaram e a convivência com o crack, com os pedreiros e com o movimento ao redor faz parte da vida daquela gente. Tem a violência, a sujeira, as relações se misturam: medo, desprezo, compaixão, repulsa, uma solidadariedade ali e aqui. A cerveja é quente demais. Peço uma Brahma que saí da geladeira formal. Quente.

O espaço é confinado. No meio da Duque de Caxias, um brutamonte com um taco de baseball na mão e capacete de motoqueiro cravado na cabeça corre atrás de uma dúzia de nóias. Blade Runner. A fala é seca, o brutamonte: vocês já conhecem a gente, é simples, só vazar… os rapazes, velhos, crianças, moças, aos trancos e barrancos correm e vazam e nem sabem para onde. Uns xingam, quixotes.

Volto ao Gilberto, o taxista:

– Quem são esses caras com taco de baseball?

– Seguranças das lojas… bom, você não vai me complicar?

Tranqüilizo o capixaba que mora no centro desde 1993 e trabalha como taxista desde 2000:

– Não tenho como, não vou e não quero te prejudicar, no máximo ponho isso no blog e você se chamará Gilberto, ok?

– Esses caras são de empresas de segurança e ficam ali, eles não batem em ninguém, apenas dispersam o povo. Nóia tem lei, morador de rua tem lei, segurança tem lei… agora eles entenderem a lei dos PMS…vixe…

O debate do boteco come solto. A conversa passa sobre o prédio que não caiu (acham que roubaram a dinamite), assuntos locais, futebol, as correrias de cada um… e claro, os nóias. A cerveja quente no dia quente já não faz diferença.

O amigo do atleticano, com sotaque forte do interior de São Paulo arremata:

– É como barata, não tem jeito, tem que matar, senão volta em dobro. Outro dia dei uns trocados pra um deles, voltou com uma faca para me roubar na mesma hora. Trabalho aqui e tenho que me defender, dei umas pauladas… é como barata...

Passei por várias praças, todos com carros da PM estacionados. Nem sempre é assim tão rigoroso. Largo Santa Ifigênia, Sala São Paulo, Estação da Luz, Museu da Língua, Praça Princesa Isabel, Praça General Osório … tudo bem guardado.

Um rapaz, idade indefinida (não dá pra chutar) abraça uma garota que dá pra definir a idade, tem menos que 15 anos. Os dois deliram no sol, parece sonho conjunto, mas ali no máximo é bad tripde asfalto, pesadelo de verdade, sem música de fundo. Não tem amor que resista. Dois minutos, ele sai praguejando e batendo os braços:

– Vai ser muié de coxinha, porra… saí da minha reta…

Três horas e meia bandeando por ali, vou ficando sem função, como dizem os descolados: dando guela. Vou embora. Peço pro Gilberto, agora quase brother, pra me levar para o outro lado da cidade (eu tinha pra onde ir). A gente foi papeando, pergunto se ele já não cansou daquela tensão da região. Gilberto olha pra baixo e responde sincero:

– Engraçado, acostumei, fui ficando, agora não saio mais… no final das contas todo mundo ali é gente, boa e ruim…

A Cracolândia tem gente, uns trabalham, uns moram, outros morrem. Gente não se dispersa assim, não dá pra varrer.

Redação

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