Araçatuba (SP), 1º de abril de 1964

Araçatuba (SP), 1 de abril de 1964

O dia amanheceu estranho na casa dos meus avós maternos, naquele primeiro de abril de 1964, em Araçatuba, na rua Tabajaras, 323. Estávamos fora do nosso habitat natural, Flórida Paulista, para passar a Semana Santa, que se prolongou além do domingo de Páscoa pelos acontecimentos em curso. Apesar dos meus 8 anos, era fácil perceber que havia algo de muito errado naquele dia, meus pais e avós estavam na sala e o rádio da rádio vitrola não transmitia músicas, mas notícias. Estavam sérios, concentrados no noticiário. Enquanto meus dois irmãos brincavam, eu prestava atenção na cena. O clima era pesado, tenso. Meu avô, político de carteirinha nunca disputou cargo eletivo, mas foi chefe de partido a vida inteira, o PSD, naquela casa a política transpirava, afinal fora interventor em Araçatuba, em 1937, nomeado pelo Getúlio, por ocasião do Estado Novo. Amigo do Ulisses, Mora Guimarães era da família Guarita, de Araçatuba. Juscelino Kubistcheck, em campanha presidencial, hospedou-se naquela casa, e minha avó, sabedora dos costumes mineiros, deixou a geladeira cheia de doces de compota, goiabadas e queijo. De manhã, ao fazer o café, constatou que JK tinha feito uma notável incursão noturna à geladeira, um verdadeiro assalto, falou sobre isso a vida inteira.

Em dado momento, em meio ao noticiário, meu pai soltou a frase que nunca esqueci: “Rebentou a Revolução”, assim mesmo, ‘rebentou’. Teríamos ficado mais alguns dias em Araçatuba, não fosse uma ligação interurbana, por volta do meio-dia. Minha avó atendeu e gritou, “interurbano de Flórida!”. Ligações interurbanas, em 1964, eram uma raridade, eram horas para completar. Do outro lado da linha, aflito, o gerente do posto de gasolina do meu pai comunica: “Seu Manoel, é o seguinte, a Polícia Civil veio aqui e lacrou o seu posto, só pode abastecer carros do Exército e da Polícia Civil”. Para se ver o nível de articulação do Golpe, lacrar um posto de gasolina de uma cidade insignificante de 5 mil habitantes, qual a importância estratégica? E a velocidade da comunicação, em tempos de um interurbano demorar horas para ser completado.

Meu pai botou o fone no gancho – estava do lado – e falou muito calmo, para a gravidade do momento: “reúna os filhos, vamos embora agora para Flórida”. Havia duas alternativas de caminho, pelo asfalto, mais longo, e por terra, passando pelo rio Feio, mais curto, mas muito sofrido, pela buraqueira. Meu pai sempre optava pelo caminho de terra, no trajeto, no banco de trás do jipe de capota de lona ouvia as palavras: “Jango, Brizola, militares”.

Dali até 1968, meus pais sempre se referiam ao que tinha acontecido por “revolução”, de acordo com O Estado de São Paulo, que chegava em casa diariamente, apesar dos 600 Km de distância da capital. Lembro da minha mãe lendo em voz alta para meu pai a lista de cassações da “revolução”. Natural, meu pai era proprietário rural, café, e minha mãe, professora primária e católica fervorosa carola de terço na mão. Afinal, o perigo “comunista” era real e concreto e tinha de ser combatido, segundo as revistas Família Cristã e Seleções do Reader’s Digest, que jaziam permanentemente na mesa de centro da sala de visitas. Porém, a partir do AI-5 em dezembro/1968, assisti a uma guinada radical nas conversas dos adultos. Sumiu a palavra “revolução”, e surgiu uma nova, sussurrada, dita ao pé do ouvido: “ditadura”. A ficha tinha caído. Dali para a frente minha mãe, que herdou a paixão pela política do meu avô Fabriciano, tornou-se uma feroz opositora do regime, e em 1974, orientou meu primeiro voto na “oposição consentida”, Orestes Quércia para senador.

Considero-me muito novo, míseros 60 anos, para viver outro pesadelo semelhante. 

Redação

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