As crises e suas dimensões, por Pedro Augusto Pinho

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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As crises e suas dimensões

por Pedro Augusto Pinho

Ladislau Dowbor, cujas informações e análises acompanho com vivo interesse, no recente “A Era do Capital Improdutivo” (Outras Palavras & Autonomia Literária, SP, 2017), afirma serem os dilemas atuais, “esse tipo de Triângulo das Bermudas, constituído(s) pelo drama ambiental, a tragédia social e o caos financeiro”.

Em meio a tantos dados relevantes e significativos de nossa realidade e de conclusões objetivas e incontestáveis, como “o sistema financeiro não só drena, como não financia a produção”, derrapa na armadilha do poder financeiro e midiático quanto à questão ambiental.

Não é meu objetivo discutir neste artigo minhas convicções sobre a ação humana nas condições da Terra. O próprio planeta jamais deixou de se transformar, de se modificar, e com muito maior intensidade e amplitude do que estes bípedes habitantes jamais conseguiriam. A simples observação da Tabela do Tempo Geológico dirime qualquer ufanismo humano.

Pretendo tratar das duas condições, por nós criadas, que atingem dramaticamente nossa sociedade. Sob enfoque distinto, elas também estão nesta obra de Dowbor: a crise da representatividade e a crise do capitalismo.

A CRISE DA REPRESENTATIVIDADE

O mundo contemporâneo, que surge após o Congresso de Viena (1815), não se limitou à disputa entre liberais e nacionalistas. Esta é a forma confortável, inclusive aos que se entendem “de esquerda”, para ignorarem o surgimento óbvio da classe operária, com a revolução industrial; da enorme visibilidade da classe burguesa, com a revolução francesa; e das novas lutas dos movimentos sociais, ainda no século XVIII.

Atribui-se ao banqueiro Jacques Laffitte (1767-1844), ao comemorar a vitória das “Jornadas de Julho”, de 1830, na França, a frase: “agora o reino dos banqueiros irá começar”. Recordemos que esta Revolução depôs Carlos X, do “reino dos Bourbons”. O povo ajudava um novo espoliador a tomar o poder.

Na Introdução que Renato Janine Ribeiro faz das “Lembranças de 1848”, de Alexis de Tocqueville (Companhia das Letras, SP, 1991), além da óbvia referência a “A Guerra Civil na França”, de Karl Marx, ambas tratando da Comuna de Paris, escreve: “estes dois autores convergem num ponto fundamental: a denúncia da política como teatro”.

Aprofundemos um pouco esta apreciação nas análises de Tocqueville e de Marx (estas na edição da Boitempo, SP, 2ª reimpressão, 2016) sobre a Comuna de Paris.

No correr da análise, Janine Ribeiro aventa as consequências, quer para o “partido da ordem” quer para a revolução radical, dos discursos-encenações parlamentares. Um abrindo “lugar para o golpe bonapartista”, outro sem ter como “satisfazer” as esperanças do povo, desanimando-o e, ao fim, sendo por ele abandonado, como os parlamentares “em junho de 1848”. Notável semelhança e antevisão do nosso 2016, em texto de 1990.

Tocqueville, em sua ótica senhorial, critica os políticos, como conhecemos na avaliação burguesa de nossos dias, ou seja, nas qualificações morais e técnicas: “todos os líderes de partido da minha época parecem-me quase indignos de comandar, uns por falta de caráter ou de verdadeiras luzes, e a maioria por falta de qualquer virtude”. Seria a política esterilizadora de lideranças, ou seus surgimentos e formação as distanciariam irremediavelmente do povo? 

Vejamos Marx, na Mensagem do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores. Em 18 de março de 1871, o Comitê Central expunha: “os proletários de Paris, em meio a fracassos e às traições das classes dominantes, compreenderam que é chegada a hora de salvar a situação, tomando em suas próprias mãos a direção dos negócios públicos”. “A Comuna era formada por conselheiros municipais, escolhidos por sufrágio universal nos diversos distritos da cidade, responsáveis e com mandatos revogáveis a qualquer momento. A maioria de seus membros era naturalmente formada de operários ou representantes incontestáveis da classe operária. A Comuna devia ser não um corpo parlamentar, mas um órgão de trabalho, Executivo e Legislativo ao mesmo tempo.”

A Comuna de Paris, os Conselhos da Revolução Alemã (1918/1923), os Sovietes  buscaram uma representatividade mais próxima do povo, muitas vezes numa conjugação legislativa-executiva. Foram derrotados.

Tive uma experiência de representatividade diferente da parlamentar, nos anos 1985/1986, quando trabalhei em Ghana, novamente dirigida pelo Tenente Aviador Jerry John Rawlings.

Permitam-me um sumaríssimo histórico daquela República. Antiga Costa do Ouro, tornou-se politicamente independente do Reino Unido, em 1960, com Kwame Nkrumah. Deposto por golpe militar, Ghana teve seis presidentes entre 1966 e 1979, quando Rawlings, num golpe de estado, assume pela primeira vez. Devolve após três meses o poder “aos políticos” e volta em 31/12/1981, resolvido a dirigir o país. Constitui um Conselho Provisório de Defesa Nacional (PNDC) e assume a presidência com o título “Chairman of the Council”.

O PNDC durará de 1982 a 1989, com 18 membros, cinco desde a criação e outros que se incorporarão e substituirão os então ocupantes. Este Conselho terá a responsabilidade legislativa e a fiscalização e controle das atividades executivas, conforme distribuição entre seus membros. Estes serão definidos e escolhidos como representantes de etnias, de áreas geográficas e de atividades econômicas, sociais e militares. Assim, um Conselheiro, representando a etnia ashanti, tinha a supervisão das áreas de informação e jurídica. Uma senhora representava as mulheres e coordenava as atividades comerciais internas. Entre os Conselheiros havia pensamentos políticos e ideológicos distintos. Lembro de uma senhora nomeada na época que lá iniciei meu trabalho, considerada de esquerda e que supervisionava as ações pela democracia.

Rawlings teve vida política mais longa do que o Conselho Provisório; governou Ghana até 2001, mas com Congresso e como Presidente eleito desde 1992.

Temos, portanto, algumas alternativas à democracia parlamentar que duram de alguns meses a alguns anos, mas não sobrevivem como os congressos de renovação periódica.

Seriam outros modelos menos representativos? os conselhos não encontram aceitação popular? a democracia é mais um rito do que uma afirmação de soberania de um povo?

Minha convicção é que falta a cidadania, construída como elemento de soberania individual e de paridade entre todos os nacionais. Em próximo artigo discorrerei sobre a cidadania, um projeto para efetiva democracia brasileira.

Trato agora da segunda crise, voltada para a economia.

A CRISE DO CAPITALISMO

Não haveria sentido ocupar meus caros leitores com a história do capitalismo, desde as relações mercantis na Idade Média. Basta-nos entender o significado das “crises”.

Se, até o século XX, elas estavam associadas à produção e ao consumo, pilares da ciência econômica, a partir de meados do século passado, a crise passou a ser um instrumento para conquista do poder pelo capital financeiro.

Deste modo, crise não mais significa um momento econômico, mas um interesse político. Ou seja, além das desejadas alterações nas relações de produção, de consumo, de investimentos, há um aspecto midiático, de didática colonizadora.

Este fato faz surgir com as crises uma compreensão inteiramente distorcida dos fenômenos econômicos a ponto de “comentaristas”, em espetáculos na televisão e “análises” nos jornais, não terem qualquer pudor ao afirmar barbaridades do tipo: administrar o país é como administrar uma casa (sic). Entregava à senhora dona de casa, por exemplo, a capacidade de emitir moedas, seja em títulos seja em espécie. Apre!

O surgimento, evolução e quantidade de crises, desde as do petróleo, nos anos 1960, até a de 2008 são do conhecimento de todos e foram objeto de alguns artigos que já divulguei. Tratemos da situação nesta segunda década dos anos 2000.

Tomo as palavras do excelente analista econômico e do mundo árabe, Georges Corm, em tradução livre, do estudo apresentado em “Le nouveau désordre économique mondial” (La Découvert, Paris, 1993):

“o fracasso do liberalismo é constatado no crescimento das desigualdades, não só em escala mundial, mas no interior do bloco dos países mais ricos, que também veem aumentar o desemprego, a redução do nível de vida de suas classes médias e o alargamento das zonas de marginalidade, em particular nas grandes metrópoles do mundo industrializado”.

O sistema financeiro internacional, que abrevio na palavra “banca”, tem apenas dois objetivos e um grande inimigo. Seus objetivos, sobejamente conhecidos e que as medidas adotadas, com enorme frequência após o golpe de 2016, só fazem confirmar para quem se governa no Brasil, são:

1 – apropriação de todos os ganhos de todos os segmentos econômicos, públicos ou privados, seja em produção, em comércio, em serviços e transferi-los para o setor financeiro; e

2 – promover permanentemente a concentração de renda. Quando do empoderamento da banca, pelas medidas adotadas por Margaret Thatcher/Ronald Reagan, eu computava em torno de 90 famílias o controle de mais de um terço dos fluxos monetários internacionais. Hoje menos de 50 controlam quase a metade destes fluxos.

O grande inimigo da banca são os governos nacionalistas, que impõe medidas restritivas a seu empoderamento e suas transações internacionais. Vem daí a diuturna campanha contra Putin, da Federação Russa, contra Maduro, da maior reserva de petróleo do mundo na Venezuela, e contra qualquer dirigente que não se submeta às diretrizes “globalizantes” e “neoliberais” da banca.

E, não só pela própria maneira de escravizar, pela dívida, países e pessoas,  como pela farsa e corrupção que acompanham todos seus atos, a banca chama os multi-referendados pelo povo Hugo Chávez/Nicolás Maduro de ditadores, adjetivo não utilizado, por exemplo, para Salm bin Abdul Aziz, da Arábia Saudita.

O economista Ranulfo Vidigal (Tempos Modernos (?), no Monitor Mercantil, 17/11/2017) tratando do atual cenário do Brasil, escreve: “são tempos de alta concentração da renda e da propriedade e de extrema desigualdade social, pilhagem dos recursos públicos e naturais e especialização produtiva baseada na exploração agrícola e na extração mineral”. Não encontraria melhor descrição para a ação da banca.

O descaramento com que o atual governo, e aqui incluo os três tradicionais poderes, mais o Ministério Público e a grande mídia oligárquica, age, nas alterações das leis, nas decisões de perdão de dívidas, em sentenças judiciais, em perseguições jurídico-policiais, em difusão de calúnias, é consequência de sua submissão ao poder que criou os paraísos fiscais, recebe todos os ganhos ilícitos do mundo – das drogas, das corrupções políticas, dos tráficos de pessoas etc – e é o maior corruptor no Planeta.

Nosso proposta, para vencer esta crise, é a luta pela soberania nacional: soberania política, econômica, tecnológica, soberania em todas as expressões do poder.

Portanto as duas crises enunciadas se combatem com cidadania e soberania.

Pedro Augusto Pinho, avô, administrador aposentado 

 

 

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

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