As entrevistas dos candidatos no Jornal Nacional

Entrevistas televisivas em série, cada dia com o candidato de uma coligação, como as que o telejornal se propôs, demandam, necessariamente, a adoção de um mesmo e pré-determinado padrão de conduta por parte dos entrevistadores, seja qual for o entrevistado.

Ainda que, de acordo com o perfil, as alianças e a história de cada candidato, o feixe de perguntas necessariamente varie, a postura dos entrevistadores em relação aos inquiridos, o modo como formulam as perguntas e seu grau de incisividade devem apresentar a menor variação possível, sob pena de suscitar acusações de tendenciosismo, favorecimento e discriminação, as quais minam o alegado esforço para inteirar a massa de espectadores sobre as candidaturas que se apresentam ao país.

É fato que cada entrevista tem uma dinâmica própria, mas, se o entrevistado não tergiversa nas respostas ou não agride o perguntador, a obediência a um padrão minimamente igulitário de tratamento aos diferentes candidatos é condição sine qua non para assegurar confiabilidade. Quem assistiu às três entrevistas conduzidas por Fátima Bernardes e William Bonner com, respectivamente, os candidatos Dilma Rousseff (PT/RS), Marina Silva (PV/AC) e José Serra (PSDB/SP) sabe que tais regras básicas de conduta jornalística foram largamente negligenciadas.

 

Dilma e a entrevista-inquérito
Senão, vejamos: Dilma Rousseff, que inaugurou a série de entrevistas, foi submetida a algo mais parecido com um inquérito policial, durante o qual mal começava a formular um raciocínio já era cortada pelos entrevistados, um dos quais chegou às raias da grosseria, a ponto de ser interpelado por sua parceira de trabalho e esposa. Isso gerou um grave problema técnico para a entrevista, identificável por qualquer estudante de Jornalismo: interrupções excessivas que não deixavam o entrevistado se expressar e aproximavam o seu tempo de fala do dos perguntadores.

Em termos temáticos, a entrevista com a petista denotou menos o interesse em informar o espectador e mais a tentativa de pespegar em Dilma o rótulo de “autoritária” e de dependente de Lula. Tratou-se, assim, tanto em termos jornalísticos quanto eleitorais, de uma entrevista duplamente mal-sucedida.

Em primeiro lugar porque os Bonner poderiam perfeitamente – na verdade, deveriam – mostrar-se incisivos, perscrutórios, mas sem abrir mão da educação e da polidez no trato. Em segundo, porque perderam uma ótima chance de inquirir a candidata acerca de seus projetos para dar continuidade a uma administração que, embora apoiada pela maioria da população, não é desprovida de problemas. Ao final, o espectador terminou desinformado sobre o que realmente importa.

Marina e as reticências

O tom dos apresentadores já era outro no dia seguinte, na entrevista com a ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva. Enquanto Fátima, aparentando menos nervosismo, mantinha a postura entre firme e ponderada do dia anterior, Bonner, bem mais educado do que no dia anterior, já em sua primeira pergunta pediu perdão à candidata por inquirir sobre a falta de apoio de outros partidos que não o PV. Ainda assim, Marina, talvez receosa de se ver seguidamente cortada por ele sem poder formular seu raciocínio – como o fora Dilma -, passou a insistir em responder, ignorando os apartes do jornalistas e cobrindo sua voz. Por conta disso, teve lugar uma espécie de jogo de disputa de palavras entre os dois.

Do ponto de vista técnico, os Bonner subestimaram a um tempo a atual dinâmica de financiamento de campanhas quanto a urgência da agenda ambiental ao perguntar como a candidata faria para “convencer o eleitor de que a sua candidatura é para valer” e não apenas” para marcar posição nessa questão do meio ambiente?”. Tal impressão foi reforçada pelo dissimulado espanto de Fátima ante a descrição das graves conseqüências, para a sociedade brasileira, do aumento da temperatura da Terra, segundo Marina. Reforçou-se, assim, traços de uma postura do casal de jornalistas a qual eu descreveria como “reticente-leniente”.

Além disso, ao invés de se aprofundar a discussão dos abundantes temas espinhosos para a candidatura de Marina, os jornalistas perderam vários minutos discutindo o ex-partido de Marina, de forma particular o indevidamente chamado “mensalão do PT” – tema, aliás, recorrente nas três entrevistas. Ao final, não restaram dúvidas de que a postura e o grau de incisividade do casal para com a entrevistada fora outro, em relação ao do dia anterior.

 Serra e a subserviência global

Mas foi a entrevista com Serra que evidenciou, de maneira clara, o descritério “três pesos, três medidas” que o jornalismo global reservou aos candidatos. O ex-governador foi poupado não apenas de quase todos os temas espinhosos suscitados por sua péssima gestão, mas de sua polêmica passagem pelo Ministério da Saúde.

Enquanto Fátima fingia desempenhar, de forma tíbia e elegante, o papel de bad cop (mas “esquecendo” o mensalão tucano de Eduardo Azeredo e o quase-vice Arruda e preferindo evocar Roberto Jefferson), Bonner substitua a grosseria de segunda-feira por uma amabilidade tão exagerada quanto imprópria.

Os cortes bruscos e ríspidos com que ele seguidas vezes interrompeu a fala de Dilma deram lugar a intervenções em voz de travesseiro, incluindo um “o senhor me permita” quase ganido. Ao final, quando Serra, mesmo ciente há dias de que disporia de 30 segundos para se despedir, “estourou’ o tempo, a subserviência atingiu seu grau máximo, com o apresentador-galã se desmanchando em desculpas pela interrupção: “Me perdoe… me perdoe”. Patético.

Vitrine para seu candidato
 A assimetria de tratamentos verificada no trato com os candidatos na série de entrevistas do JN é particularmente grave por se dar no telejornal de maior audiência do país, em uma TV aberta – ou seja, que opera graças a concessão pública de um bem pertencente ao povo brasileiro. Claro está que isso não é o bastante para frear o ímpeto da Globo de manipular o jornalismo e tentar “vender” seu candidato utilizando-se do principal produto jornalístico da emissora como vitrine.

O cúmulo da cara-de-pau, na verdade, é que continuam alegando isenção e qualidade. E daqui a alguns anos, quando o esperneio dos críticos contra tal assimetria tiver passado, reescrevem o passado como fizeram com as Diretas-Já, editam uma fala ou outra e comemoram os 75 anos do padrão Globo de qualidade em grande estilo.

Mas o absurdo do “três pesos, três medidas” não se limita a interesses de fundo eleitoral e corporativo. Há também marcados traços ideológico-culturais a estimulá-lo. Numa campanha em que duas mulheres estão entre os três primeiros colocados nas pesquisas, a série de entrevistas do JN, através dos diferentes tratamentos dispensados aos candidatos, evidenciou ainda, uma vez mais, a premência da questão de gêneros e a persistência dos “valores” machistas em nossa – com o perdão do oximoro – cultura jornalística.

 

Machismo e questão de gêneros

Pois se a insistência do bad cop Bonner quanto ao alegado autoritarismo de Dilma trouxe, latente, o culto ao estereótipo de que mulheres, mesmo no comando, devem ser “femininas” e “delicadas” – como se isso tivesse alguma importância no exercício de cargos administrativos – e a feminilidade delicada de Marina acabasse por lhe render um tratamento que não poucas vezes soou paternal e leniente – como se de um ser essencialmente frágil e, fica implícito, medianamente competente se tratasse -, Serra, por outro lado, foi tratado como um autêntico patriarca.

A interação do casal de entrevistadores com ele – da qual o tímido o “ senhor me permita”, de Bonner, é expressão cabal de subserviência – claramente reverenciou “o político experiente”, “o administrador”, “o realizador”, encarnações do poder fálico decidido e destemido, o qual, ao contrário do que ocorre, na visão do JN, com as candidatas mulheres, não precisa mostrar a que veio.

Se isso não é uma demonstração cabal de ideário machista, a se somar a interesses classistas e empresariais, eu sou o Pato Donald.

Redação

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