As máscaras da civilização: resenha do livro de Jean Starobinski

O livro de Jean Starobinski, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, é imperdível e inesquecível. Uma daquelas obras escritas para serem lidas várias vezes. A obra é composta por seis ensaios aparentemente independentes, mas que tem como tema central a convivência humana e avaliação que desta foi feita pelos filósofos franceses do iluminismo.

No primeiro ensaio o autor se debruça sobre o vocábulo civilização, mostrando como ele surgiu e foi sendo definido desde que empregado pela primeira vez no século XVI na França. Importante notar como um “termo carregado de sagrado demoniza o seu antônimo. A palavra civilização, se já não designa um fato submetido ao julgamento, mas um valor incontestável, entra no arsenal verbal do louvor e da acusação. Não se trata mais de avaliar os defeitos ou os méritos da civilização. Ela própria se torna o critério por excelência: julgar-se-á em nome da civilização.”

Neste exato momento em que alguns veículos de comunicação querem nos fazer acreditar que a civilização ocidental branca anglo-americana tem o direito imperial de, mediante a colaboração de Google, Facebook e Microsoft, usar a internet  espionar todos (cidadãos, empresas e governos) em qualquer lugar  durante o tempo todo, a discussão levantada por Starobinski é fundamental.  Afinal, todos os povos do planeta estão sendo tratados como se fossem incivilizados e, portanto, desprovidos de direitos e garantias consagradas pela Lei Internacional ou por suas respectivas constituições e Leis nacionais.  Antes de julgarmos incivilizados a nós mesmos ou aos outros povos devemos nos lembrar de julgar nossa própria civilização. O que a civilização ocidental branca anglo-americana e/ou cristã tem feito pela humanidade a não ser provocar guerras, mortandade, sofrimento, destruição, violação massiva da privacidade individual, empresarial e governamental?

A desproporção tecnológica, econômica e militar entre os EUA e seus aliados, parceiros e inimigos é evidente. Ninguém faz frente aos EUA, país que tem poder para promover destruições inconcebíveis nos territórios de vários países ao mesmo tempo. Se usássemos o conceito de incivilizados para designar todos os povos (exceto o povo norte-americano, é claro) e, portanto, para designar como incivilizados a nós mesmos, ainda assim seriamos obrigados a admitir que a civilização norte-americana está profundamente doente. Quem é mais incivilizado? Povos barbados incapazes de fazer espionar e fazer mal aos norte-americanos ou os próprios norte-americanos que estão a destruir todo o legado do pós-Guerra, a esmagar Estados mal armados e a sacudir sociedades frágeis em nome de seu conceito de civilização?

Como o próprio autor sugere os problemas causados pelo duplo conceito civilização/incivilização não afetam somente a política externa, mas interna. Afinal, ao menor sinal de risco ou comoção social as classes que controlam o Estado tratam de discriminar os opositores como incivilizados a fim de poder mais rapidamente liquidá-los, aprisioná-los e transformá-los em degredados do espetáculo. Não foi o que ocorreu esta semana com José Genoino? Mesmo enfermo ele foi preso, exibido à multidão, humilhado publicamente por jornalistas, colunistas e moralistas de plantão. Após enfartar teve que implorar clemência ao mesmo presidente do STF que havia agido de forma generosa e humanitária para com o co-réu Roberto Jefferson? Ao fazer uma distinção entre os condenados, Joaquim Barbosa deu a entender que petista é incivilizado e, portanto, diferente do civilizado petebista.

Não poucos marxistas também se deixam seduzir pelo valor político e simbólico deste conceito ao mesmo tempo sagrado e profano. Como afirma Starobinski o “…mesmo se dará no vocabulário de Engels. Para ele, com base nas teorias de Lewis H. Morgan, a civilização é posterior à barbárie; é a civilização que inventa o Estado, a propriedade e a divisão do trabalho, a exploração das classes inferiores. O momento ulterior da dialética histórica nascerá da supressão desse modo de organização social: a sociedade sem classes…”

Após a revolução russa, cubana, chinesa, os comunistas não tiveram piedade daqueles que não se ajustavam á nova realidade. Aqueles que não aceitaram a autoridade do Partido e a coletivização da propriedade e da produção foram discriminados como contra-revolucionários ou inimigos da civilização. Milhares foram mortos, escravizados e enviados para o Gulag. Os Gulags capitalistas brasileiros também foram muitos, antes e depois do Estado Novo e após o golpe de estado de 1964. A Comissão da Verdade está estudando-os em profundidade neste momento. É fato, comunistas e capitalistas sempre julgaram seus inimigos internos pelo viés do duplo conceito civilizado/incivilizado

É por isto que o autor afirma que “.., a entrada em cena da palavra civilização (em uma época tardia do que chamamos hoje ainda de civilização ocidental), bem longe de ajudar a ordem constitutiva da sociedade civilizada, marca o início de sua crise. A pulverização do sagrado institucional, a impossibilidade para o discurso teológico de continuar a valer como  ‘concreto absoluto’ (Éric Weil) convidam a maior parte dos espíritos a buscar com toda urgência absolutos substitutivos. E é então que a própria noção de civilização propõe seus serviços. Mas, como ela se rompe e se cinde imediatamente entre um valor (ausente) e um fato (dificilmente aceitável), revela-se inapta para preencher a função até então destinada ao absoluto teológico.”        

No segundo ensaio o autor trata da adulação. Afirma que a “…decisão de julgar e de ser julgado traz já em si todas as virtualidades do desejo. Reconhecer qualidades virtuosas é, sem dúvida, um puro julgamento moral, mas fazê-lo, sob a forma do louvor ou da declaração de estima, é já, segundo a nossa língua, uma ‘gratificação’ e, para quem é seu objeto, um ‘ganho narcíseo’.”

Em ano pré-eleitoral nada melhor do que estudar a adulação. Afinal, as campanhas políticas não passam de demonstrações narcísicas encomendadas pelos candidatos. O resultado das urnas é quase sempre deplorável. Não ganha o candidato mais qualificado e com a melhor proposta de governo (se é que existe algo mais que vaidade nos discursos e promessas eleitorais), mas sim aquele que manipula melhor os preconceitos e desejos da população empregando refinadas técnicas de marketing. Se a adulação fosse proibida, a política não se tornaria estéril (algo que ela já tem sido), mas histericamente vazia.

Como afirma o próprio autor a “…adulação, como se vê, é um conceito com dupla função que permite tratar psicologicamente certos aspectos da vida social, mas também abordar sob o ângulo social certos aspectos da vida psicológica. A adulação define simultaneamente um tipo de discurso e um modo de circulação das riquezas. Tem seu campo de ação, como regra geral, por toda parte onde um poderoso, um rico, um superior, mantém uma ‘corte’, acolhe parasitas ou clientes.”

O narcisismo político-partidário floresce nos poderes Legislativo e Executivo com ajuda da imprensa, inclusive mediante campanhas pagas com verbas obtidas de maneira ilegal e criminosa. No Judiciário, a adulação não deveria produzir jurisprudência. Dever ser e ser em si, entretanto, são  coisas bem distintas. É por isto que esta semana vimos o espetáculo dado pelo presidente do STF com o uso de alguns réus do Mensalão à revelia da condenação e da legislação. Fato que levou o jurista Celso Antônio Bandeira de Mello a dizer publicamente “Joaquim Barbosa é um homem mau, com pouco sentimento humano.” Maldade e vaidade derivam uma da outra desde tempos imemoriais. Mas o narcisismo judiciário é recente, tem sido regado pela popular avidez por espetáculos e adubado com lucro pela imprensa. O prejuízo histórico do fenômeno, porém, somente poderá ser captado num futuro sempre incerto.

Nos dois ensaios seguintes Starobinski trata respectivamente da refinada e insolente literatura de Montesquieu e da ironia mordaz e destrutiva de Voltaire. Ambos escreveram suas  obras numa época em que a liberdade de consciência e criação artística não era garantida por Lei como hoje. Paradoxalmente foram bem mais livres do que os autores atuais, porque correram riscos e usaram artifícios para burlar a censura.

Montesquieu correu um risco calculado ao escrever suas Cartas Persas. Concedeu-se  imunidade por meio de um narrador vindo de fora “…livre de todo o laço e de toda obrigação.” Voltaire não foi tão polido, mas aprendeu a fugir ao menor sinal de risco. Este cigano irremediável  nos legou Cândido “…livro suplementar, no qual se faz o inventário do passado, e que vem depois do inventário: o livro fora da literatura, fora da filosofia, que zomba da literatura e da filosofia, e que, evidentemente, não pode fazer de outra maneira a não ser propor, por sua vez, uma outra literatura, uma outra filosofia.”

Por que Montesquieu e Voltaire continuam ser relevantes? Por vários motivos:

1° ambos ajudaram a enterrar o universo simbólico da Idade Média e a conformar o mundo em que vivemos;

2º o mundo que eles ajudaram a criar começou a afundar por causa do obscurantismo imperial que produziu um novo pesadelo global orwelliano  como se a incivilidade internacional  da potência única hegemônica incontestável pudesse se transformar em indício de civilização;

3° a coragem de ambos é inspiradora, principalmente  num tempo em que os escritores gozam de ampla liberdade e quase sempre produzem lixo etnológico, literatura pseudo-religiosa e análise política e estética capitalístico-conformista;  

4° num país em que os políticos ou são donos dos veículos de comunicação ou definem soberanamente o que a população deve ou não deve saber por meio do controle dos recursos de propaganda oficial precisamos de paradigmas iluministas para vencer as trevas;

5º precisamos combater o narcisismo judiciário antes que o mesmo nos julgue sem processo, nos condene sem direito de defesa e nos encarcere brutalmente sob os holofotes das câmeras num outro Estado Novo, um regime em que as armas a serviço das togas consigam suspender definitivamente as Leis em favor do espetáculo contínuo e lucrativo muito desejado pela imprensa.

Os outros ensaios do livro, que tratam da obra de Rousseau, da mitologia nos séculos XVII e XVIII e da literatura antiga são realmente inspirados e inspiradores. Mas como já adocei a boca do leitor, sugiro ao mesmo que leia o livro de Jean Starobinski. Ao contrário de alguns dos nossos medíocres escritores imortalizados pela ABL, o francês fez por merecer os direitos autorais que eventualmente arrecadar no Brasil.

Fábio de Oliveira Ribeiro

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