As relações perigosas entre as Tecnologias da Informação e a história

A historiografia passou por várias modificações. Das longas narrativas antigas de feitos memoráveis de reis, imperadores e consuls (Heródoto, Tito Lívio, Flávio Josefo, etc…), passamos às longas narrativas sistemáticas que procuraram leis históricas (Karl Marx, Oswald Spengler, etc…) até chegarmos ao presente, onde predominam a história do cotidiano e da cultura http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882004000200002 e a micro-história https://pt.wikipedia.org/wiki/Micro-hist%C3%B3ria.

A evolução da história, contudo, começa agora a ser afetada pela internet https://www.facebook.com/CanalHistory/photos/a.1075480989145520.1073741888.118140234879605/1244573435569607/?type=3&theater. Afinal, algo irrelevante que ocorreu há apenas 19 anos – o lançamento de um jogo virtual incapaz de alterar profundamente politica, econômica e culturalmente a vida em sociedade – já é tratado como fato histórico. Na internet, contudo, o fato é considerado suficientemente relevante. Tanto que o jogo ganhou um verbete na Wikipédia https://pt.wikipedia.org/wiki/Diablo e seus criadores receberam crédito pelo grande feito http://www.mobygames.com/game/windows/diablo/credits. Há vídeos sobre o mesmo no Youtube https://www.youtube.com/watch?v=o1yQm9KuH6w e https://www.youtube.com/watch?v=VrKZt0T1bEU. A que ponto chegaremos? Impossível dizer.

Se procurar com cuidado, o internauta encontrará uma cópia fiel deste jogo “antigo” para jogar http://www.ebay.com/bhp/diablo-1. O preço do produto varia entre US$ 859,95 e US$ 5,99. Não há, portanto, razão para dizer que o que é antigo e raro é necessariamente caro. Na verdade, a julgar pelo menor preço do produto qualquer um pode adquirir uma cópia fiel do jogo e realizar a magia de fazer o fato histórico voltar a ser realidade presente. É aí, contudo, que começa o problema.

Mas para discutir o problema histórico levantado pelo jogo Diablo e a forma que ele foi tratado é preciso fazer uma pequena digressão:

“Nas culturas orais, os fatos e a permanência do conhecimento só podem ser memorizados quando eles são articulados mais ou menos com regularidade, e expostos na poesia falada. As funções são desempenhadas pela linguagem poética, pelo seu tom, seu ritmo, pela sua formularização e ritualização, nas quais o expectador toma parte ativamente. Só com o uso corrente da escrita fonética, e sua difusão generalizada além da classe erudita, foi possível, na antiga Grécia, a objetivação do passado como um tempo concluído e imitável, e que pode ser citado no respectivo presente. A conversão de uma mediação de comunicação acústica em um objeto visível deu o ‘sentido de uma realidade objetiva ao passado humano’ (Goody & Watt, 1981: 45-104). No lugar do presente imediato de um ‘absoluto estado espiritual’ (Havelock, 1963: 134), entra a objetivação temporal com ajuda da escrita fonética: o tempo pode ser designado, isolado, armazenado, chamado e usado livremente. A filosofia platônica faz valer a nova concepção de tempo na teoria das idéias e na teoria do conhecimento. Do tempo é observado o atemporal.” (Mimese e Cultura, Günter Gebauer e Christoph Wulf, editora Annablume, São Paulo, 2004, p. 60-61)

Segundo Günter Gebauer e Christoph Wulf a história se caracteriza pela distinção clara entre o passado e o presente que foi produzida pela escrita. Quando predominava a oralidade a barreira entre ambos não existia, pois passado e presente eram vivenciados ao mesmo tempo durante a recitação dos poemas épicos. Vivia-se então não um tempo histórico, mas um tempo mitológico.

Nós pertencemos a uma cultura escrita e histórica. Mas em razão das características das Tecnologias da Informação (computadores, softwares, internet, etc…) podemos realizar aqui e agora – ou seja, no presente – algo que é considerado fato histórico. Esta atividade, contudo, não modificará nada além da realidade percebida pelo jogador isolado. Ao contrário de uma tradição re-encenada e re-atualizada coletivamente, como o carnaval brasileiro, durante o tempo em que joga o jogador estará dentro e fora do tempo histórico compartilhado pelas outras pessoas. É inevitável, portanto, fazer duas perguntas inquietantes: é possível neste caso falar em história?  Estamos entrando num período “não histórico” semelhante ao que existia quando predominava a oralidade ou construindo um novo espaço-tempo mitológico para habitar fora da história?

Fábio de Oliveira Ribeiro

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador