Bolsonaro, Mourão e a disputa interna do fascismo no governo

Robert Paxton enuncia os estágios do fascismo em seu artigo “Five stage of fascism”: começa como um movimento de revolta contra a democracia liberal em crise, se sedimenta em um partido político, alcança o poder em aliança com “forças exógenas” (como dirá João Bernardo), tem o exercício do poder (influenciado pela forma como e com quais apoios atingiu o poder, que influencia se se vai além de um mero autoritarismo) e, finalmente, radicalização ou entropia, com o consequente fim do regime.

João Bernardo, por seu turno, apresenta esquematicamente dois polos nos quais o regime fascista se equilibra e os quais tenta equilibrar: de um lado, o polo endógeno: partido e milícias, sindicatos e milícias; do outro, o polo exógeno: exército e igrejas. Para o ativista lusitano, ainda que acabe por vingar o polo exógeno no poder – como Salazar em Portugal -, não é isso que o exclui de ser um regime fascista, e não um “autoritarismo comum”.

Não se trata de transpor os fascismos do século XX para o século XXI e aplicar as mesmas análises. Contudo, há elementos que se repetem – daí porque chamar a extrema-direita de neofascista, e não por algum nome mais original.

Pensando nas experiências atuais, uma primeira mudança a ser notada é no “sindicato e milícias” da tipologia de Bernardo: com a desarticulação do movimento obreiro, graças às reformas neoliberais (ainda que a ênfase com que o capital siga lutando para desmantelar os sindicatos, seja em ataques diretos, seja no estímulo a movimentos identitários isolados, indica o quanto teme sua organização), o neofascismo passa a disputar não mais a representação junto às bases via sindicatos, mas via movimentos – MBL, surgido de afogadilho com o sucesso do MPL, em 2013; o Tea Party, nos EUA, os coletes amarelos na França, etc -, com os quais organiza suas milícias – reais e virtuais. Eu acrescentaria ainda três elementos, ausentes da análise histórica de Bernardo: a burocracia estatal, o capital internacional/transnacional, e o quarto poder, a mídia.

A burocracia estatal pode ser força suficiente para barrar ou acelerar dado movimento: em meu estágio na prefeitura municipal de Campinas pude ver como o corpo mole da burocracia, atuando em passo de tartaruga, é capaz, sem fazer alarde, de queimar o capital político de um secretário; a trinca Moro-TRF4-STF na farsesca condenação do Lula é uma mostra do quanto a burocracia azeitada com certos interesses trabalha feito trator e em tempo recorde.

O capital internacional, apesar de ainda ter país de origem e se apoiar em proteções desses governos, graças à desregulamentação financeira, está cada vez mais livre e forte para mudar de residência, conforme lhe for mais vantajoso – vide o caso do empresário James Dyson, um dos mais entusiastas patrocinadores do Brexit, que decidiu mudar sua empresa para Cingapura, diante do quadro desfavorável para seus negócios na terra da Rainha, por conta do… Brexit. Ao que tudo indica, há uma articulação global desse capital – pensada e organizada, e não apenas por influência do espírito da época -, de modo a enfraquecer ainda mais governos nacionais e garantir suas margens de lucro – por mais que posem de cosmopolitas e liberais, se a promessa de lucros for maior com a extrema-direita, adotam esse figurino sem qualquer titubeio.

A mídia talvez não entrasse nos polos de Bernardo por conta de que na primeira metade do século XX ela ainda estivesse se organizando, dependente do poder estatal e vinculada direta e claramente a ele. Nos tempos atuais, ainda que a dependência estatal exista, há um campo de “liberdade” para a mídia, utilizado como contrapoder a reivindicações sociais, que serve para pressionar governos a seguirem uma linha mais afim aos seus interesses – menos “populista”: essa dissociação entre imprensa e Estado é falsa (salvo em governos de esquerda), uma cortina de fumaça para o estado seguir com sua gestão totalitária da sociedade em favor do modo capitalista de produção e especulação. A impressão que tente passar seja no sentido inverso, a mídia é a correia de transmissão do poder entre o líderes e as massas – antes disso, o veículo garantidor das massas enquanto massas.

 

Trazendo esses esquemas para a eleição de Bolsonaro. O neofascista se elegeu por um partido-milícia, escudado por movimentos-milícias (e por milícias-milícias, estamos nós, reles mortais de fora do Rio de Janeiro, sabendo agora) e financiado pelo capital internacional e considerável fração do capital nacional. Teve ainda forte respaldo de parte do exército (garantido por seu “vice-caução”), de parte da igreja (católica e, principalmente, das evangélicas), da mídia (foi adotado pela Record da Universal do Reino de Deus ainda no primeiro turno, num passo simples mas esperto do bispo Macedo) e por parte da burocracia estatal (evidenciado, por exemplo, nos casos de juízes proibindo manifestações antifascistas nas universidades, sob argumento de propaganda eleitoral contra seu candidato). Outra parcela da grande mídia também o apoiou, antes movido pelos sentimentos de antiesquerdismo e antinacional (e pelo vice-caução), sem grande entusiasmo, como a Globo e a Folha, que desde o início deixaram claro que cobrariam caro não necessariamente por apoio ao governo, mas por uma postura “neutra” (leia-se apagada, sem fazer jornalismo de verdade, coisa que raramente fazem, tampouco sem fazer a publicidade disfarçada a que estão habituados).

Do outro lado, se opuseram os partidos de esquerda (ou parte deles), movimentos sociais, políticos tradicionais (cientes das mudanças nas correlações de forças com a ascensão desse “movimento”), alas minoritárias das igrejas e da burocracia estatal, e parte da imprensa internacional.

Ainda que certamente não faça ideia de quem seja Lampedusa, a proposta de Bolsonaro ia na linha da explicitada pelo autor italiano n’O Leopardo: é preciso que tudo mude, para que (quase) tudo siga como está. O que seu governo prometeu entregar foi a aniquilação da esquerda, o silêncio dos movimentos sociais e as riquezas e empresas nacionais. O uso de ilusionismo para entreter as massas (que não é irrelevante, diga-se de passagem), como a guerra ao “marxismo cultural”, à “ideologia de gênero”, a adoção do Escola sem Partido, o fim da transparência do Estado, conforme lei assinada pelo Mourão, garantiria que na economia tudo andaria da melhor forma possível.

Alguns erros de planejamento, entretanto, ocorreram: o Febeapá para distrair a atenção das tenebrosas transações começou a prejudicar a sacrossanta economia – os direitos humanos ainda passam como nota de rodapé na mídia internacional, porém a preservação do meio ambiente é tema bastante sensível -; a ingenuidade na lida com os profissionais da política tem sinalizado dificuldades na aprovação de sua agenda; e ao avaliar mal o jogo de forças da comunicação – subestimou o poderio da Globo e superestimou o poder de mobilização permanente da internet aliado à Record, SBT e Rede TV -, comprando briga aberta com a Rede Globo na distribuição das verbas estatais, pode ter cavado a cova de seu governo (está cada vez mais difícil dizer que o envolvimento de Flávio Bolsonaro com milicianos é algo só de Flávio e não de todo Bolsonaro, além da carta na manga da facada fake durante a campanha). Ao mesmo tempo, o vice Mourão posa de estadista democrata, adepto ao neoliberalismo, e já esquenta o assento no Planalto – FHC logo deve vir a público dizer que é o homem público “melhor preparado” para o “Brazil”.

Admito que não imaginava um governo tão incompetente, que não conseguiu sequer aproveitar os famigerados “cem dias de lua de mel”: Bolsonaro está pior do que Dilma em seu segundo mandato (e segundo mandato já é um pouco mais crítico, ainda mais aliado à vergonhosa inaptidão política da burocrata/tecnocrata Dilma). O que de início seria uma tática de parte da imprensa e do capital nacional para manter o governo acuado, por inoperância de Bolsonaro e seus cupinchas, se tornou em tiroteio aberto atingindo as janelas do Palácio do Planalto a cada edição do Jornal Nacional. Que Bolsonaro seria uma vergonha internacional, isso era evidente (durante as eleições, eu já comentava que ele seria engolido por Cabo Daciolo, caso os dois tivessem participado de todos os debates). Surpreende que não saiba o mínimo de negociação parlamentar, depois de três décadas como deputado e, principalmente, que não tenha conseguido manter a mobilização de suas milícias nem mesmo três meses, finda a corrida eleitoral. Cumprir sua (única) promessa de campanha, de liberar a posse de arma, logo no primeiro mês, queima boa parte do capital político que teria junto a seus eleitores mais fiéis, pois o antipetismo qualquer um abraça. Não foi capaz sequer de imitar Trump, que preferiu tensionar seu muro até o último ano, e tenta agora atribuir seu fracasso aos democratas: Bolsonaro poderia ter tentado via congresso aprovar nova legislação para armas e culpar a “velha política” por não conseguir, só então apelando para um decreto presidencial.

Em suma, Bolsonaro fica na presidência enquanto conseguir entregar as reformas econômicas, não vão esperar uma segunda fraquejada para ejetá-lo. Para tentar fugir das cordas, poderia tentar uma guerra na Venezuela – uma guerra costuma ser um bom instrumento de união nacional e calaboca geral de toda oposição. Porém não apenas o movimento foi abortado pelos EUA, até segunda ordem, depois do recado de Rússia e China, como não encontra respaldo da maioria das forças armadas do Brasil, nem da diplomacia – e os pretensos “falcões” do seu governo não chegam a galinhos garnizés trocando a primeira penugem. Não há sequer clima para forçar um atentado terrorista fake, para mobilizar a opinião pública. Ou seja, as elites já tem o botão de ejetar pronto para ser usado, com um bilhetinho de obrigado pelos seus serviços ao ex-capitão.

Cai bem a dúvida: como é possível esgotar seu capital político tão rápido? Além dessa incompetência geral sua e dos seus com política (e história, e matemática, e economia, e forças armadas, e geografia, e português, e por aí vai…), a forma como esse movimento neofascista se fez foi muito rápido e pouco enraizado: se aproveitou de uma crise do capitalismo, uma crise social, uma descrença com a política e um ambiente antiesquerda fabricado pela grande mídia para, via redes sociais, entrar com seu discurso e inchar rapidamente – impulsionado por erro de estratégia da direita e da mídia, que o pintaram como o candidato oficial do antipetismo, o extremo oposto a essa besta fera da estrela vermelha. Bolsonaro nunca foi líder (que não, talvez, de sua família e de alguns auxiliares muito suspeitos), foi um cavalo de Tróia que apareceu sem querer e a extrema-direita embarcou primeiro, com a direita uspiana indo logo em seguida, quando viu que era isso ou PT.

Há um ambiente propício ao neofascismo – no contexto mundial e nacional -, contudo Bolsonaro não está estabelecido nele, apenas se aproveitou de certo vácuo de lideranças e uma avenida aberta. O MBL e seus desdobramentos no mundo real talvez venham a se constituir efetivamente numa milícia do polo endógeno do fascismo, algo um pouco mais “orgânico”, mas eu não apostaria nisso: são marionetes muito fracas, incapazes de se adaptar conforme o contexto vir a exigir. Mais provável que o papel de milícia, caso chegue a se formar, caiba a agentes do próprio Estado. Essa talvez a grande falha do bolsonarismo, motivo para sua rápida queda: não conseguir manter as milícias ativas e, consequentemente, manter o caos (inclusive, é de se questionar os porquês de não conseguir manter sua base ativa). Como alertou Marcos Nobre: Bolsonaro cresceu no caos e só sobrevive no caos. Sem milícias e sem casos de violência aleatória, cometida por mascus se sentindo legitimados pelo presidente, e sem acobertamento de forças de segurança e do judiciário, a chance de um caos onde ele possa surfar diminui drasticamente.

 

Com Mourão, ascenderia ao poder o polo exógeno do fascismo, o exército. Bem relacionado com os poderes estabelecidos, é de se acreditar num governo menos errante, mais racional, previsível, que vai buscar mesmo a ordem, e não apenas discursar sobre sua necessidade – é de se acreditar que milícias amalucadas não tenham vez e as perseguições a opositores sejam organizadas: quem deve ser perseguido e com quais meios (judiciário, milícia, polícia). Será uma espécie de Alckmin de farda: verniz democrático, fala para ser bem recebido nos meios ingênuos e na mídia internacional, e porrada em opositor, tiro em quem eu não gosto (não convém esquecer que Alckmin foi o primeiro a autorizar e estimular execuções extra-judiciais por parte de seus subordinados com o “quem não reagiu está vivo”, Doria Jr e Witzel são apenas a reedição grosseira desse absurdo), panos quentes para os amigos e familiares – corrupção? Só se for de petista! -; o mesmo plano econômico, boas relações com o status quo, bons contatos com os mercados, as elites nacionais e internacionais, e o antiesquerdismo mantido aceso, porém sem se envolver diretamente.

Se Bolsonaro traz risco de vida às pessoas identificadas com a esquerda e os movimentos sociais, Mourão pode ser o cara a abrir a rota para o desmantelamento efetivo dos partidos de esquerda e movimentos sociais, por sair da linha de frente de ataque, e permitir que outras instâncias ajam nessa tarefa, em consonância com as leis do país ou conforme qualquer rito jurídico formal (vale lembrar que Gilmar Mendes – que com Bolsonaro pode ser visto como um aliado, mas apenas nesse caso, e olhe lá – já propôs a cassação do registro do PT). As esquerdas precisam urgentemente de uma análise de conjuntura ampla (para além de quem tem culpa na eleição e se deve ou não apoiar Maduro) e dos seus possíveis desdobramentos, e desde já se anteciparem na sua articulação, na retomada dos trabalhos de base e na construção de uma contranarrativa preventiva, tentando impôr determinadas pautas no debate público – caso não queiram, outra vez mais, ser atropeladas pelas elites e pelo neofascismo ascendente.

26 de janeiro de 2019

 

Redação

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