Brasil, 130 mil mortes: Estimativas sobre o número real de óbitos por COVID-19, por Sergio Guedes Reis

É estatisticamente muito difícil de argumentar em favor de um número atual de mortos por COVID que seja inferior a 85 mil, o que colocaria o Brasil já acima dos Estados Unidos em número de mortes/milhão de habitantes.

Moradores de Afuá, no arquipélago de Marajó, no Pará; registro regular de informações sobre os principais problemas que populações de comunidades vulneráveis enfrentam com a pandemia permite gerenciamento de riscos pelo poder público e pelas próprias comunidades – Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Brasil, 130 mil mortes: Estimativas sobre o número real de óbitos por COVID-19

por Sergio Roberto Guedes Reis

Na semana passada, o Brasil atingiu o impressionante patamar de 50 mil óbitos causados pela COVID-19. Infelizmente, contudo, esse número expressa uma contagem bastante conservadora do impacto do coronavírus na população brasileira. Assim como há uma imensa subnotificação de casos de contaminação por COVID-19 (estudos apontam para o número real de afetados entre 8 e 10 vezes mais do que as estatísticas oficiais), existe também uma grande subnotificação do número de óbitos. Alguns estudos têm utilizado o portal da transparência criado pelos cartórios como fonte primária para estimar o número real de mortes por COVID. Embora os registros ali disponibilizados permitam, de modo geral, comparar a evolução do número de mortes em 2020 com o ocorrido em 2019, há grande assimetria na tempestividade e na qualidade dos dados inseridos pelos cartórios país afora (ver por exemplo esta reportagem da Folha de São Paulo).

Uma fonte pública alternativa é o sistema Infogripe, disponibilizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O site oferta dados coletados pelo Sistema de Vigilância Epidemiológica da Gripe (SIVEP), do Ministério da Saúde, apresentando estatísticas semanais, para os últimos 10 anos, sobre o número de casos e óbitos por doenças respiratórias, com discriminação por existência ou não de sintomas e diagnóstico de gripe – e, em 2020, de COVID-19. A classificação mais genérica que o sistema disponibiliza diz respeito à SRAG, síndrome respiratória aguda grave, um gênero capaz de aglutinar doenças como a própria gripe, o COVID-19, o H1N1 e outras enfermidades respiratórias.

Um cálculo preciso do real número de mortes resultantes da COVID-19 só será possível daqui a alguns anos, quando o IBGE e o DATASUS publicarem dados oficiais referentes à contagem anual de mortes (o que permitirá a comparação mês a mês entre 2020 e a média dos anos anteriores – e, assim, identificar o que se costuma chamar de “excesso de mortalidade”, as mortes “a mais”, não esperadas, que ocorreram neste ano). Um primeiro esforço, contudo, pode ser feito a partir dos dados do Infogripe, dada a possibilidade de comparação anual, por semana, tal qual realizada na figura 1, abaixo:

O gráfico mostra claramente que está ocorrendo um pico sem precedentes do número de mortos por SRAG em 2020, em comparação com todos os anos anteriores. Esse pico começa a ocorrer na semana epidemiológica 10 (que se encerrou em 7 de Março). Em 2016, ano em que ocorreu uma epidemia de H1N1, ocorreram 7.546 mortes por “SRAG”. Até agora, em 2020, já foram detectadas mais de 90 mil óbitos por doenças respiratórias agudas. Mas não é só isso. A cada semana, o Infogripe atualiza os dados para cada semana epidemiológica, inclusive para as anteriores. Assim como nos boletins jornalísticos sobre mortes por COVID, mortes ocorridas em Março podem ser incluídas no sistema posteriormente. Mas no Infogripe, contudo, o óbito é registrado na semana em que ocorreu – o que permite identificar se o número de ocorrências ainda está crescendo ou não. Contudo, neste momento os dados do Infogripe são considerados “estáveis” – isto é, sem a expectativa de grandes alterações – apenas até a semana 18 (encerrada em 2 de Maio). Então, muito embora já haja dados disponíveis para as semanas seguintes (até a 25ª, encerrada no último dia 20/06), a expectativa é que, nas semanas seguintes, muitos novos óbitos venham a ser incluídos para as semanas 19 e posteriores. Por isso a linha que descreve a curva de óbitos para 2020 está tracejada a partir da semana 18 – quem tivesse baixado os dados na semana passada, por exemplo, teria observado uma “queda” a partir da semana 18 (o que é desmentido pelos dados desta semana, e assim por diante).

Há quem considere que os dados de SRAG sejam inadequados para pensarmos qual o número real de óbitos por COVID, já que, em face da falta de testes e da existência de protocolos inadequados, mortes por outros fatores (como doenças cardíacas ou acidentes vasculares) seriam erroneamente catalogadas como sendo por coronavírus. Embora haja estudos que, de forma preliminar, sugiram a existência desse fenômeno na cidade de São Paulo, não é possível afirmar categoricamente que as mortes a menos por outras doenças foram na verdade computadas como SRAG, não se sabe em que medida a desatualização na atualização dos dados impacta a análise e não há indícios de que se trate de um problema existente em âmbito nacional. Por exemplo, o cômputo do número de óbitos por gripe em todo o Brasil em 2020 (227 entre as semanas 7 e 25, sendo as últimas 7 semanas incompletas com relação aos dados disponíveis) está na média para o período 2010-2019 (250); ou seja, mesmo as mortes específicas por gripe, que podem ser comumente classificadas como “SRAG” (sem especificação), continuaram a ser classificadas como tais.

Além disso, os dados do portal da transparência dos cartórios (aqui) também sugerem que não houve diminuição global do número de óbitos por outras doenças. Considerando-se o período entre 1º de Março e 31 de Maio, nota-se que, em 2020, já foram registrados 165.888 óbitos por “outras doenças”. Em 2019, ocorreram 160.412. E embora tenham sido registradas cerca de 7 mil mortes a menos por pneumonia e 5 mil óbitos a menos por septicemia em 2020, foram contabilizadas 1,5 mil mortes a mais por insuficiência respiratória, 7,5 mil óbitos a mais por SRAG e mil mortes a mais por “causa indeterminada”. Como já comentado, esses dados são ainda menos precisos e completos do que os disponibilizados em outras fontes. Não há muito o que deduzir deles: doenças como a pneumonia podem carregar marcas de sazonalidade, variando em intensidade a cada ano por diversos fatores; óbitos por COVID, na verdade, podem ter sido registrados como “outras doenças” (e não o contrário), etc. O grande elemento novo em 2020 é a COVID-19. Não existe indício de que nenhum outro vírus respiratório se encontre particularmente ativo ou que seja capaz de resultar no tipo de impacto causado pelo coronavírus.

Jornais como o Financial Times têm buscado calcular o “excesso de mortalidade” em diversos países – uma forma de estimar o número real de mortes por COVID-19. Em muitos países, há bases de dados sobre mortalidade mais robustos do que os nossos. Por exemplo, o projeto Euromomo, levado a cabo por ministérios e secretarias de saúde de 24 países europeus, compartilha semanalmente dados oficiais de óbitos. No caso da Grã-Bretanha, ocorreram 65.700 mortes a mais em 2020, até 12 de Junho, comparado à média de anos anteriores (o número de cidadãos testados positivamente para COVID que morreram até esse período foi de 41,5 mil). Na Itália, morreram 47.700 pessoas a mais até 29 de Abril (oficialmente, morreram 27,6 mil por COVID). No Brasil, usando dados de cartórios, eles estimaram em 39,1 mil mortos até 29 de Maio (na nossa contagem oficial, haviam sido registrados até então 27,9 mil óbitos). De acordo com dados do Infogripe, até essa mesma data morreram, na verdade, 46,2 mil pessoas no Brasil por coronavírus. Esse dado do Infogripe, contudo, é o mais conservador possível: 1) não contabiliza sequer todas as mortes que ocorreram por COVID até essa data e que ainda não entraram no sistema (semanas 19 a 22); 2) e não inclui nem mesmo 1 morte dentre as dezenas de milhares que ocorreram a mais por SRAG em 2020, comparadas a anos anteriores, como sendo por COVID. O cenário, infelizmente, é muito pior do que pensamos, e os dados apresentados diariamente pela imprensa são, na verdade, um grande olhar no retrovisor, para um passado de pelo menos 6 semanas, feito por um indivíduo míope e sem óculos.

Como exercício, mostro abaixo, na figura 2, a evolução do número de óbitos por COVID (linha azul) e o EXCESSO semanal do número de óbitos por SRAG em 2020, comparado a 2016 (pior ano até então, e que inclui óbitos por H1N1). Novamente, o tracejamento nas linhas a partir de 2 de Maio indica que os dados, a partir de então, estão incompletos e só serão atualizados pelo Infogripe ao longo das próximas semanas. O uso de 2016 como referência expressa a escolha mais conservadora possível, já que foi um ano em que uma epidemia virológica importante também ocorreu. O que o gráfico mostra é que, na hipótese de que o excesso de mortes em 2020 por SRAG corresponda a óbitos po COVID, persiste uma expressiva subnotificação semanal. As barras amarelas expressam o percentual de notificação: nas primeiras semanas da epidemia, entre 50 a 60% do total de óbitos foi computado (não houve excesso de mortes na semana de 29 de Fevereiro, daí a ausência de barra para computar a notificação). Conforme mais testes passaram a ser feitos, cerca de 75% das mortes por COVID estariam sendo captadas no começo de Maio. Como já comentado, nada sugere que, há 1 mês e meio atrás, tenha havido estabilização do avanço da doença pelo Brasil – muito pelo contrário. E já naquele momento estariam ocorrendo cerca de 1.300 mortes por dia por COVID-19 (no cômputo do Ministério da Saúde para aquela semana, teria ocorrido, em média, menos de 500 mortes por dia por essa doença).

Se a hipótese que apresento for correta, quantas mortes por COVID-19, então, já ocorreram no Brasil? Como os dados do Infogripe estão atualizados até apenas o início de Maio, torna-se necessário realizar uma projeção estatística. Como mostra a figura 3, abaixo, o excesso de mortes por SRAG estimado como valor médio é de cerca de 147 mil óbitos (linha laranja). Se estabelecermos um intervalo de confiança de 95% para essa projeção média, chegaremos a um intervalo de mortes entre 117 mil e 178 mil mortes até 20 de Junho. A linha amarela, tracejada, aponta o acúmulo atual de SRAG em excesso (89 mil mortes). No Infogripe, já constam 55 mil óbitos por COVID-19, mesmo sem os dados totalmente atualizados a partir do começo de Maio. Se fizermos o mesmo exercício de projeção para as mortes oficialmente diagnosticadas por COVID, então teremos como valor médio esperado cerca de 104 mil mortes (mínimo de 85 mil e máximo de 123 mil – ver figura 4). Apenas na estimativa mínima – o limite inferior do intervalo de confiança para a projeção de mortes oficialmente classificadas como decorrentes de infecção por COVID – é que observaríamos um platô de óbitos na última semana (cerca de 1,4 mil ao dia). Trata-se de um cenário improvável, tendo-se vista que o número diário e a média móvel semanal de casos detectados continuou a crescer consideravelmente nas últimas semanas (de cerca de 17 mil casos/dia no final de Maio para mais de 30 mil casos/dia na última semana.
Além disso, se consideramos que apenas 9% dos casos de COVID estão sendo reportados e que o índice geral de mortalidade no Brasil é de cerca de 1%, então o número atual de mortes por COVID-19 seria de aproximadamente 130 mil pessoas. Um valor, portanto, dentro das estimativas apontadas neste estudo: acima do máximo calculado para o que virá a ser o cômputo oficial de mortes por COVID-19 quando todos os dados estiverem disponibillizados no sistema, e próximo da estimativa média de óbitos por COVID-19 se considerarmos como métrica para tanto o excesso de mortalidade por SRAG (o que significa que muitas das mortes genericamente classificadas como SRAG – nesse caso, 88% do total estimado como projeção média neste exercício, em vez dos 62% atuais – corresponderiam, de fato, a ocorrências po COVID-19).

Mas, em resumo, é estatisticamente muito difícil de argumentar em favor de um número atual de mortos por COVID que seja inferior a 85 mil, o que colocaria o Brasil já acima dos Estados Unidos em número de mortes/milhão de habitantes. Se admitirmos, contudo, que o contingente de 130 mil mortos é plenamente plausível diante dos dados de que dispomos, isso colocaria o Brasil muito próximo da liderança global no número absoluto de óbitos por COVID-19 em todo o mundo – e, dentre os 21 países para os quais já se computou o excesso de mortalidade, de acordo com o Financial Times, aquele com o maior percentual de subnotificação (160%, superando os 141% do Peru e os 122% do Equador). É preciso contar com uma gestão desastrosa em um patamar único para produzir um resultado tão trágico.

Independentemente da acurácia desses cálculos, é preciso reforçar que mesmo os números oficiais – os cerca de 55 mil mortos já contabilizados – expressam uma realidade absolutamente estarrecedora. Em 3 meses, morreram mais brasileiros por COVID do que por acidentes de trânsito ou homicídios em 2019, duas das principais causas mortis existentes – até o fim do ano, não é difícil supor que o número de óbitos supere até mesmo as perdas por doenças no aparelho circulatório (cerca de 350 mil óbitos/ano), a principal causa de mortalidade no Brasil. Isso, é claro, com a diferença de que as mortes por COVID são e foram, em larga medida, plenamente evitáveis. Ainda assim, parece ocorrer uma espécie de anestesiamento da população, de tal forma que as mais de mil (subestimadas) mortes diárias passaram a ser internalizadas e naturalizadas como mais um efeito colateral de se viver no Brasil – isso quando, há pouco tempo, nos impactávamos e nos solidarizávamos com os cortejos de caixões no norte da Itália ou com os corpos inertes espalhados pelas ruas de Guayaquil. Para a pequena minoria bolsonarista, vigora um misto de relativização absurda da tragédia (como se o Brasil, com suas 250 mortes/milhão de habitantes estivesse bem quando comparado aos 850 óbitos/milhão da Bélgica), de negacionismo das estatísticas (como se os dados produzidos pelo próprio governo federal, como os utilizados neste artigo, fossem falsos), de irresponsabilidade (como se o presidente, autoridade maior na proteção das fronteiras nacionais e na coordenação das políticas de saúde, fosse menos poderoso do que o síndico de um prédio), e de insensibilidade (como se as pessoas fossem descartáveis – e são, se forem do seu rebanho). Cada um desses argumentos contradiz o outro, mas essa é uma questão irrelevante nessa forma necrófila de se pensar. E enquanto formos politicamente guiados por ela, não há porque o Brasil não estar, finalmente, acima de todos – nos rankings mundiais do desprezo pela vida.

Redação

3 Comentários

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  1. Morreu de infarto mas com SUSPEITA de Covid e pááá,entra na estatística de mortos por Covid,aumenta os casos devido a maior disponibilização de testes e pááá,MAIOR ALARDE,analisando a tx de LETALIDADE(mortos x infectados) não chega a 1% dechances de morrer(incluso subnoticação de 10x)Pq o pânico?Pq parar a economia?PQ VCS NEGAM A CIÊNCIA EM RELAÇÃO AO VIRU$$$$ !!(respondi no final,václna)

    1. A ignorância é uma bênção. O SARS-COV2 é também uma doença vascular. Se a pessoa tiver um enfarto estando contaminada por COVID-19 é perfeitamente plausível associá-lo como causa mortis. É assim que funciona p/ qualquer infecção. Como vc não leu o texto, explico aqui novamente: houve já pelo menos mais 5 mil mortos entre março e junho diagnosticados por “outras doenças”, sem que tenha havido razão aparente p/ esse aumento. O único fator explicativo é o surgimento da COVID-19. Isso significa o contrário do que vc disse: muitas mortes por COVID-19 estão sendo atribuídas a outros fatores. Sobre a letalidade geral: se vc está tranquilo com a morte de 1% da população brasileira, ou 2,1 milhões de habitantes, então o que posso argumentar? Temos visões de mundo muito diferentes, de fato. Mas, fora isso, entenda o básico: não há recuperação econômica ou retorno ao “normal” enquanto o vírus não for controlado. Os países que abriram cedo demais não estão vendo recuperação econômica e estão perdendo muito mais vidas. É muito simples: empresas sempre podem ser reabertas e recuperadas. Vidas, não. Nem com cloroquina…

  2. A questão numérica,a partir de uma repetição contínua,parece ter um efeito zero sobre a percepção das pessoas,passa a ser somente um número,algo normal. Talvez a abordagem e a demonstração,estritamente estatística,levem a esse tipo de percepção. Se a mídia golpista,sempre especialista em transformar nada em tudo,transforma-se tudo em tudo e não divulgasse somente os números de forma fria,talvez o resultado fosse diferente.
    Mesmo quando critica o sujeito que ocupa a presidência da república por seu negacionismo,acaba,querendo ou não,publicizando esse negacionismo. Se,com seu aparato tecnológico,fizesse uma simulação como na Guerra dos Mundos de Orson Welles,talvez essa percepção mudasse.
    Mas nada disso ocorrerá. A mídia golpista,assim como setores que apoiaram o golpe,estão preferindo entregar os dedos a perder os anéis,qual seja,o poder surrupiado do povo brasileiro.

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