Maira Vasconcelos
Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).
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Celac: evento confirmou imagem positiva de Lula na mídia hegemônica argentina

Presidente é apresentado como um líder responsável, um contraponto à difundida irresponsabilidade atribuída aos governos kirchneristas

Ricardo Stuckert

Celac: evento confirmou imagem positiva de Lula na mídia hegemônica argentina

por Maíra Vasconcelos

Especial para Jornal GGN

Dos países latino-americanos, o Brasil é, de longe, o mais noticiado na mídia argentina. A diferença é bastante visível, se comparado com o espaço que os demais vizinhos ocupam nos meios locais, mesmo quando os acontecimentos são de inquestionável importância social. Como é o caso da convulsão político-social que o Peru atravessa, que já soma 57 mortos. E, como é de se esperar, as razões são econômicas, o Brasil é o principal sócio comercial da Argentina. A cobertura local da VII Cumbre da Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac), no último dia 24 de janeiro, em Buenos Aires, além dos holofotes voltados aos importantes acordos bilaterais entre os dois países, confirmou o grau de noticiabilidade do Brasil no país, e também o fato de que a imagem do presidente Lula da Silva nos meios argentinos tende a ser bastante positiva, até mesmo na mídia hegemônica.

Como se sabe, a linha editorial dos veículos massivos responde a interesses econômicos próprios e a figura do presidente Lula é usada para conciliar tais estratégias político-comunicacionais. As considerações são do especialista em meios de comunicação e professor da Universidade de Quilmes, em Buenos Aires, Martín Becerra (@aracalacana). “Acredito que, com uma estratégia bastante infantil, mas nem por isso menos eficaz, apresentam Lula como uma figura da centro-esquerda responsável, que faz acordos com a direita e, inclusive, em governos anteriores, cedeu a administração do ministério de economia, do banco central”, relembrou. Becerra é autor de De la concentración a la convergencia. Políticas de medios en Argentina y América Latina (2015), Los monopolios de la verdad (2009), Periodistas y magnates. estructura y concentración de las industrias culturales (2006), entre outros.

Se existe um tratamento amigável, digamos, à imagem do Lula, que é hoje o principal líder da centro-esquerda na região, esse gerenciamento político-discursivo dos meios massivos argentinos tem o intuito de difundir a ideia de que o kirchnerismo seria, exatamente, o oposto. “O Lula, um líder regional de centro-esquerda que é moderado, enquanto o kirchnerismo é apresentado como sendo o seu oposto, como o chavismo, como uma espécie de radicalização emocional e irresponsável da gestão econômica, da coisa pública”, disse Becerra. Ele ressaltou que, caso os governos kirchneristas tivessem cedido pontos-chaves da gestão econômica à direita, “provavelmente essa cobertura teria sido mais profissional, jornalisticamente falando, pois não é”, afirmou.

Com a ressalva das devidas aspas, poderia-se dizer que a mídia argentina hoje “é lulista”, como também foi nos primeiros dois governos do presidente (2003-2011). No entanto, como relembra o especialista Martín Becerra, à época dos processos da Lava Jato, e quando Lula foi preso em Curitiba, os grandes meios de comunicação trabalharam para construir a imagem do Lula como um político corrupto da centro-esquerda, ao mesmo tempo em que ressaltavam a figura do juiz e hoje senador eleito pelo Paraná, Sérgio Moro (União Brasil). Até o site do Clarín, maior grupo de meios do país, sabidamente antikirchnerista e de linha editorial de direita, publicou um artigo do New York Times, sobre o 8 de janeiro em Brasília, que dizia, “uma análise do ataque revela como o extremismo ameaça a maior democracia da América Latina”.

“Exceto quando aconteceu o processo liderado por Sérgio Moro, aquela perseguição judicial contra Lula, aí os meios dominantes, aqui na Argentina, Clarin, La Nacion, Infobae, e todos os que dependem deles, evidentemente fizeram uma cobertura anti-lulista, demonizaram o Lula. A direita levantou muito a figura do juiz Moro. Mas, exceto neste momento, têm sido muito cuidadosos com a figura do Lula”, explica Becerra.

A mídia argentina fez uma cobertura intensa nas eleições presidenciais brasileiras de outubro, que foi transmitida ao vivo, voto a voto, por dois canais de televisão, C5N e TN Notícias, de alcance massivo. A tentativa de golpe de Estado, no dia 8 de janeiro, em Brasília, ganhou destaque imediato no portal dos principais meios argentinos. A ponto de se ter, por exemplo, desde a manchete, até onze matérias seguidas sobre os atos terroristas instaurados por bolsonaristas extremistas nos prédios dos Três Poderes.

Para Martín, mesmo considerando a relevância jornalística desses acontecimentos, a cobertura argentina sobre o Brasil responde a uma questão estrutural de interesse econômico. Mesmo durante o governo Bolsonaro (2019-2022), os meios argentinos deram igual atenção ao país. “Me parece que é estrutural e não muda, para além dos governos de turno, inclusive com o extremismo de Bolsonaro, tampouco mudava. Para a Argentina, o Brasil é muito importante e determinante. Digamos, os meios argentinos, inclusive a elite política e econômica deste país, têm sempre um olho em cima do que acontece no Brasil. Uma mudança na economia brasileira repercute no crescimento ou no estancamento do PIB argentino. Isso é estrutural”, destacou Becerra. 

A proximidade ideológica entre os governos de Alberto Fernández e Lula também contribui para a noticiabilidade do Brasil na mídia local, ao menos, até as eleições presidenciais deste ano, caso ocorra uma alternância de poder, comentou Martín Becerra.

Celac: Lula como protagonista exclusivo

O retorno do Brasil à Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac), com a  presença do presidente Lula durante a VII Cumbre, em Buenos Aires, no último dia 24 de janeiro, ocupou espaço principal nos meios de comunicação da Argentina. “A cobertura foi de alto nível, certamente, mais pela presença do Lula do que por causa do Alberto Fernández. Senão, seria uma cumbre mais e cairia dentro das análises políticas da conhecida polarização. Mas, estando Lula, teve outros interesses”. A consideração é do jornalista Marcelo Falak, editor do caderno Internacional do jornal “Ámbito Financiero” e do digital “Letra P”. Em janeiro de 2020, o ex-presidente Jair Bolsonaro suspendeu a participação do Brasil na Celac, criada em 2011, que reúne 33 países da América Latina e Caribe.

Também para o professor e especialista em meios de comunicação Martín Becerra, a cobertura da Celac seria outra, caso o presidente brasileiro não viesse a Buenos Aires. A vinda de Lula terminou por encobrir a parcialidade que a mídia argentina, certamente, assumiria. “Se Lula não viesse seria noticiado como um novo fracasso diplomático do governo argentino, que está isolado do mundo, e todo esse refrão que conhecemos. Mas Lula, a sua presença, legitimou a Cumbre de uma maneira que eles não gostariam. O protagonista exclusivo foi Lula. Foi sua primeira viagem ao exterior, teve muitos elementos que contribuíram para a noticiabilidade da sua presença”, analisou.

Becerra comentou também que a estratégia amigável da grande mídia com a figura do Lula, como líder moderado da centro-esquerda, acabou ocultando a real intenção de cobrir a Celac parcialmente, segundo os interesses de oposição ao governo do Alberto. “Para os meios opositores, que são os meios dominantes na Argentina, paradoxalmente, esse exercício de enquadrar a imagem de Lula como líder responsável e oposto a irresponsabilidade teórica do kirchnerismo, justamente agora operou como uma espécie de tampão frente a cobertura tendenciosa que seguramente fariam se Lula não tivesse vindo a Argentina”, afirmou.

Uma prioridade chamada Brasil

Apesar da situação social que o Peru atravessa, a cobertura da mídia argentina é muito superior em relação aos acontecimentos políticos brasileiros. Além de considerar o “fenômeno Lula”, segundo Martín Becerra, e a importância econômica do Brasil para a Argentina, a pouca cobertura midiática sobre o Peru também expõe a crise de falta de recursos dos meios de comunicação.

“Há uma crise social e política enorme no Peru e a cobertura dos meios argentinos é muito menor. Mas é muito estranho, eu acho, porque expõe também a crise de recursos, para que os meios de comunicação não mandem enviados especiais a um país tão próximo como o Peru. Então, nessa economia de gastos, quando priorizam o que cobrir ou não, o Brasil aparece sempre priorizado.  E o que acontece no Peru é muito sério”, analisou Becerra.

A sociedade civil peruana que tem saído às ruas para protestar, pede a saída da presidente Dina Boluarte. O confronto dos manifestantes com a polícia, e o fechamento das estradas, já somam 57 mortos. No dia 19 de janeiro, os protestos que ocuparam as ruas da capital, com manifestantes vindos de todas as partes do país, foram chamados de “tomada de Lima”, e foi o maior, desde o início da insurreição social. Em um processo minimamente polêmico, o ex-presidente Pedro Castillo foi destituído do cargo, em dezembro do ano passado. Os governos da Colômbia, Argentina, México e Bolívia declararam que Castillo é vítima de um processo antidemocrático e de perseguição judicial.

Sobre o presidente Lula, Becerra destacou o nível de midiatização de sua figura. “O Lula em si, sem querer banalizar a questão, é um personagem em si mesmo. É midiático como pode ser, com sua devida distância, o “Pepe” Mujica do Uruguai. São essas personalidades que transcendem seu cargo, Lula é Lula. É uma figura que já está muito além do fato de que se são presidentes ou não, claro que quando são presidentes, têm ainda mais mídia”, concluiu.

A comunicação do governo Alberto em ano eleitoral

Em ano eleitoral, é de se esperar que o atual governo argentino aproveite a proximidade ideológica com o governo Lula, e a projeção midiática do presidente, em suas estratégias de comunicação. “Seguramente, aproveitará essa certa afinidade ideológica. Lula é pragmático e compreende que é ano eleitoral na Argentina e não pode criar inimizade com nenhum dos possíveis candidatos que possam surgir. Mas, além disso, evidentemente tem uma clara sintonia com o peronismo aqui na Argentina. Em termos políticos comunicacionais, seria desastroso por parte do governo argentino não capitalizar essa boa sintonia”, afirmou Martín Becerra.

Maíra Vasconcelos é jornalista e escritora, de Belo Horizonte, e mora em Buenos Aires. Escreve sobre política e economia, principalmente sobre a Argentina, no Jornal GGN, desde 2014. Cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina (Paraguai, Chile, Venezuela, Uruguai). Escreve crônicas para o GGN, desde 2014. Tem publicado um livro de poemas, “Um quarto que fala” (Urutau, 2018) e também a plaquete, “O livro dos outros – poemas dedicados à leitura” (Oficios Terrestres, 2021).

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

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