Chorrinha

Não houve jeito: dessa vez ela definhou pra valer. Mas, num último gesto de grandeza de sua parte, talvez achando que seu último ato viesse a profanar a última morada de seu dono, aproveitou de mais um momento de solidão e desapareceu. Só foi reconhecida pela sua carcaça porque os urubus que aproveitavam o resto do que restava, também nobres, não tocaram na cabeça que guardou por anos o cérebro de tanta inteligência e nobreza. Assim acabou uma saga simples, trivial como qualquer outra, mas revestida de especialidade, justo pelos seus momentos derradeiros, da cadela Chorrinha.

Seu Pedrinho era uma figura engraçada. Do alto de seus mais de 75 anos de idade, não parava de flertar com as mocinhas e viúvas, especialmente quando já tinha engolido várias doses da “branquinha”, geralmente do alambique da Terra Preta; nesse momento, Seu Pedrinho, turbinado, acabava por arrancar risos das suas flertadas, não de aceite, mas de graças  já que invariavelmente aí estava com as calças na virilha e o velho cinturão de couro cru que nunca acertava por nas presilhas da calça, ao meio da barriga. Quando mais empolgado, sacava um facão que sempre trazia preso ao cinto pela bainha, riscava no chão e bradava seu grito de guerra: “Oh Pedrinho de Melicio é o homem que já foi dentro do Forno ou dá as calças as muiés!” E aí vinha a saraivada de gargalhada da mulherada que ele entendia como resposta positiva aos seus galanteios. Assim o conheci um pouco mais moço, uns dez anos atrás, assim se manteve pelos mais de dez anos em que praticamente não mais o vi, até a notícia de sua morte. Nunca se apartou de uma cadela. A última, sequer lhe deu um nome; era Chorrinha, e pronto. Sua grande companheira até a hora derradeira. Era ela quem avisava aos familiares dele que ele estava caído em alguma beira d’estrada; que lhe lambia as feridas para com isso curá-lo; que guardava ferozmente a casa e o próprio caído, mas que era um doce de animal quando entendia que quem chegava era amigo dele; e uma frouxa completa quando perseguida, maltratada.

Já próximo dos 80 de idade, Seu Pedrinho quase não mais saía; todavia, querer prender um bicho que nasceu e viveu sempre livre é complicado. Ninguém domava Seu Pedrinho! Nessas idas e vindas botou pra morrer, mas não se entregou. Já sem muita visão ainda arriscava dar umas saidinhas e sempre arranjava um meio de beliscar uma cachacinha, claro, mas as forças se esvaiam cada vez mais. Até que um dia desacordou de vez. Chorrinha latiu, se desesperou, foi na casa de seus familiares próximos várias vezes até que alguém lá chegou e o velho estava estirado. Procedeu-se ao enterro e Chorrinha no pé. Um seu neto convenceu-a a retornar pra casa. Foi, comeu alguma coisa e sumiu. E não mais retornou. Cinco ou seis dias depois, o coveiro veio notificar que a cadela fez morada em cima da cova no cemitério dos Mundés e ninguém conseguia movê-la de lá. Ao contrário, quando alguém se aproxima ela partia em cima numa ferocidade ímpar. Preocupado com a saúde do animal o coveiro foi avisar aos parentes do finado que foram até o cemitério, recolheram-na, levaram pra casa, deram-lhe banho, comida e, pra evitar surpresas, amarraram-na em uma corda. O desespero foi enorme: Chorrinha passou a latir dia e noite. Alguém soltou-a e ela incontinenti foi dar na cova de Seu Pedrinho. Foram quase dois meses tentando demovê-la da vigília e ela firme. Até que um neto de Seu Pedrinho, vendo-a cada vez mais definhando resolveu levar-lhe comida, dia sim, dia não. Mas já era tarde. Chorrinha não só precisava de comida; ela também precisava de consolo que ninguém lhe podia dar. Incialmente ainda mordiscava alguma coisa do que lhe era levado; mas, logo estava apenas bebendo alguns goles d’água quando trêmula, já mal podia se por de pé. Todos ficaram com pena, mas ela agia como se quisesse imolar a si própria; e assim foi até o dia em que sumiu para por termo à sua vida num verdadeiro sacrifício de quem deu a vida pelo amor que tinha a outro.

As pessoas que encontraram sua carcaça enterram-na no mesmo local onde foi encontrada e já ninguém mais lembra exatamente onde foi. Apenas ficou a história de uma fidelidade, literalmente, canina.

 
P. S. Isso já estava escrito há uns oito meses. Mas o posto sobre pobreza nos Estados Unidos e sempre presença de um cão junto aos deserdados filhos de Eva me fez lembrar disso aqui que ora publico. Os topônimos e a história são reais. Só modifiquei o nome dos personagens.
Redação

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