Zê Carota
Ganhou espaço nas redes sociais com suas intervenções. Textos curtos. Rápido no gatilho
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classificados, só os originais, por Zê Carota

classificados, só os originais

por Zê Carota

duas coisas são relativamente verdadeiras em jornais: data e classificados.

e digo relativamente, porque, no caso da data, na China estão em 4716, enquanto em Israel estão em 5771, ao passo que aqui voltamos a 1964, com 2018 sendo apenas uma fantasia – e censurada –, e classificados são publicidade; logo, é sempre a verdade como deveria ser, nunca como é.

em 1987, em Belo Horizonte, eu trabalhava como escriturário no extinto bcn, recebia um ordenado de merda, então, pra pagar as contas, a boia e os aditivos bacantes, precisava fazer bicos, e um dos muitos que fazia era como auxiliar de diagramação dos classificados de final de semana do jornal Estado de Minas.

a diagramação, propriamente, era algo tão divertido quanto seria um Kama Sutra para Concurseiros escrito pelo deltan dallagnol, com prefácio da cármem lúcia e revisão do bonner, consistindo em, separados os temas (vagas de emprego, prestação de serviços, orações e agradecimentos, amor, sexo etc) empilhar nas páginas do jornal os famosos “tijolinhos” de anúncio, cujo volume quintuplicava nos finais de semana. mas o gostoso era o atendimento ao público, que compensava toda a chatice.

não havia internet, computadores eram exclusividade de alguns setores corporativos, então as pessoas iam até o jornal para encomendar os anúncios, ou já escritos à mão em folhas e pedacinhos de papel, ou, caso das pessoas excluídas da alfabetização, ditados para a nossa redação dos mesmos, depois eu e colegas datilografávamos todos para as devidas gravação e impressão na gráfica.

querendo garantir ao máximo o êxito de seus anúncios, muitas pessoas nos pediam opiniões sobre seus textos, revisão gramatical e, especialmente para os anúncios amorosos, sugestões de palavras que ficassem mais bonitas para quem lesse, e era fascinante ver uma gente muito simples, vestindo roupas idem, mas com os corações trajando ceroulas, polainas, fraques, cartolas, ou espartilhos, anáguas, vestidos fartos em rendas e laços, chapéus emplumados, todos com “as sarças em brasa”, como diria o parnasiano Bilac, mentor intelectual daquele inconsciente coletivo de amantes.

comum a mulheres e homens, chuvas de citações de poemas e letras de canções, diferindo apenas num ponto: as mulheres sempre davam crédito, quando não aos autores, ao menos aos poemas e canções, enquanto muitos homens pretendiam-se co-autores, como um senhor que acrescentou umas redondilhas suas à letra de “Deusa da Minha Rua”, de Newton Teixeira, e quando eu lhe disse que gostava muito daquela canção, me respondeu com um falso modesto “ora, muito obrigado, jovem”.

cogitei acrescentar ao escrete de adjetivos com que se apresentava no anúncio um “ps: mente um cadinho”, mas deixei estar, confiando na inteligência das cavalheiras que viesse a conhecer.

houve a senhora que, passados dez anos de viuvez, decidiu “conhecer gente nova”, como me adiantou antes de ditar o que queria escrito no anúncio, que era: “Onésia, viúva séria e trabalhadeira, procura homem novo, só que mais velho, entre 55 e 65 anos, trabalhador e direito, para amizade e passeio. Fumar pode, beber, não”.

como pediu minha opinião, perguntei-lhe, de início, com todo respeito, se queria só mesmo amizade e passeio, ao que, depois de um tempo me fitando em silêncio, respondeu que “começa assim, né?”, e sorriu seu discreto sorriso de viúva séria e trabalhadeira.

pronto.

a necessidade de seriedade já estava posta, faltava apenas embutir a intenção, então redigi: “Onésia, mulher séria e responsável, procura homem entre 55 e 65 anos, distinto, trabalhador e sem vícios, para amizade ou união madura”.

depois de me pedir três leituras do texto, concedeu: “Do seu jeito, ficou do jeito que eu quero. Pode publicar”.

Dona Onésia, estimo tenha funcionado. um abraço.

às vésperas do carnaval, Dona De Lourdes, “mas pode chamar Dedê”, chega no balcão de atendimento e me passa o bilhete em que se lia: Dedê, do Nova Suíssa, realiza fantasias e adereços. Fone 5555-5555”, que, claro, me instigou, porque tanto poderia ser só mesmo uma frase mal construída para comunicar serviços de costura, quanto, sabe-se lá, o que também aludia o texto, apesar da aparência de Vovó Donalda da portadora. me fiz de bobo: “qual sua profissão?”, ao que respondeu “costureira, uai”, como se houvesse alguma dúvida. sem graça, mas aliviado, lhe perguntei por que do verbo “realiza”, me contou que adorava, nos anúncios ouvidos no rádio e na tv, “quando o speaker diz ‘uma realização (nome da empresa)’”.

foi um custo convencê-la de que “produz” era melhor do que “realiza”, porque eu não podia escancarar o motivo, então argumentei pelo preço, mais barato quanto menor fosse o número de letras, para o que suprimi o bairro, deixando apenas o telefone.

Dona Dedê, onde quer que a senhora esteja, me perdoe.

sei que não gostou da troca, mas acredite: se, por um lado, lhe privei da importância desejada, por outro, a livrei dos descaramentos dos dons juans de classificados.

essa crônica foi inspirada num fato grotesco ocorrido na semana passada, quando as três revistas GOLPISTAS deste país, veja, istoé e época, estamparam uma mesma capa, sem qualquer pudor em mascarar a propaganda do governo usurpador e corrupto que alçaram ao poder.

como dito logo no início da crônica, a verdade nunca esteve, está ou estará nas matérias de nossa mídia, mas, até outro dia mesmo, ela revelava alguma preocupação mínima com a opinião pública, valendo-se de todo um malabarismo retórico para maquiar de “jornalismo” as ordens e os anúncios que recebe.

não mais.

amoral, arrogante, escarniciosa, cospe sua corrupção em nossas caras.

 

os classificados originais também são pagos, exageram virtudes e omitem fatos.

porém, sempre soubemos disso, o espaço é pra isso, e o principal: não destroem um país e seu Povo.

 
Zê Carota

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6 Comentários

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  1. comentário

    zê, guri dos meus encantos literários, MAIOR ESCREVINHADOR ‘CRÔNICO’ do que restou deste país: sei lá em que dimensão me jogaste com estas falas tão, tão, tão prosaicas. indizivelmente RIQUÍSSIMAS, FORTUNOSAS por demais !!! como a simplicidade pode virar obra de arte nas mãos do artista … que não tenho estes dons, fico torta e troncha de encantos. beijão, guri da turca

  2. Belíssimo texto, de dar água nas mãos, na boca e nos olhos

     

    Ze Carota,

    E é justo que você tenha recebido belos e merecidos elogios.

    De minha parte diria que, se não pelo final, o texto já seria perfeito. Com o fecho, então, não sei como o descrever.

    Clever Mendes de Oliveira

    BH, 25/02/2018

  3. salve, zé!

    zé!

    amei a letra minúscula, não só eu,…

    lembrei qdo. era “copy desk” num jornal no interior e, acredite, “fazia” a sessão horóscopo cfe. o fregues… tinha um milico que ia apanhar as edições e, primeiramente, lia sobre seu signo e mt. me divertia escrevendo as coisas mais loucas que o cara saia ou numa felicidade ou num abatimento de dar dó, inclusive, “previ” algo “essa onda vai passar e novos ares haverão de chegar” que, certamente, teve outra interpretação… e eis que estamos vivendo  os mesmos tempos retrógrados!

  4. Original

    Maria Luisa Lusco-Fusco procura trovador para que todas as manhãs lhe conte historias deste e de outros reinos. Aceita-se fantasias, invenções, extravagâncias, loucos, poetas e/ou estropiados. Favor endereçar seus atributos para rua do sobe e desce e nunca aparece, numero 0, no Pais de Aruandas.

  5. Finalmente, te acho aqui no

    Finalmente, te acho aqui no GGN. Sou fã de carteirinha, agora falta conhecer o livro, do qual me considero aliás padrinho. Abraço grande!

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